Um ‘tosco’ soldado conta histórias do Brasil
Apontamentos de viagem de José Juzarte, agora reeditados,
documentam os caminhos de uma Monção que cruzou o País em 1769
Por José Sebastião Witter
No Brasil estamos vivendo as antevésperas das comemorações
do Descobrimento de nossa terra. Continuarão, em todos os níveis, as discussões
das teses do acaso ao da intencionalidade desse achado português e tudo o que
sucedeu com a conquista de nosso território. Neste novo episódio, tudo o que
representou a saga dos Bandeirantes e as diferentes interpretações sobre a
expansão da terra brasileira. Em épocas como estas, da celebração das datas,
resultam muitas publicações. Entre inúmeras, algumas são de valor indiscutível.
Entre elas está o Diário da Navegação, de Teotônio José Juzarte, sargento-mor,
pouco letrado, que produziu um documento de grande valia para o conhecimento de
nosso Brasil.
O esforço conjunto da Prefeitura do Município de Porto Feliz
e do Centro de Memória da Unicamp permitiram a edição, que teve o apoio do
museu das Monções e da Diretoria de Educação e Cultura da cidade
portofelicense. Ao professor Jonas Soares de Souza coube a organização da obra.
Ele, com seu entusiasmo de pesquisador, recuperou os originais dispersos e
compôs uma nova edição, ressaltando o papel de seu autor, além de sua
apresentação e a introdução de Afonso D’Escragnolle Taunay. Com iconografia
primorosa no “Caderno de Ilustrações”, da página 113 e seguintes, o Diário nos
traz a trajetória de uma Monção desde Araritaguaba – hoje Porto Feliz – até o
forte do Guatemi, lá nas barrancas do Paraná.
Assim começa o relatório da viagem: “DIÁRIO DA NAVEGAÇÃO no
Rio Tietê, Rio Grande Paraná, e Rio Guatemi em que se dá Relação de todas as
coisas mais notáveis destes Rios, seu curso, sua distância, e de todos os mais
Rios, que se encontram, Ilhas, perigos, e de tudo o acontecido neste Diário,
pelo tempo de dois anos, e dois meses. Que principia em 10 de março de 1769.”
No princípio da obra, Juzarte faz uma descrição dos
acontecimentos que precedem o embarque de uma expedição e os preparativos
todos, feitos no povoado de Araritaguaba (Porto Feliz), nos dias que
antecederam sua partida. São detalhados os formatos dos barcos, chamados
“canoas”, além de tudo que nelas eram colocadas – desde animais até alimentos.
Na seqüência, as bênçãos do pároco e a partida. (A Semana das Monções, em Porto
Feliz, que está em sua 44ª edição, todos os anos reencena o episódio).
Depois dos comentários gerais e de ponderações sobre todos
os perigos e estratégias para vencer os rios, Juzarte vai, a partir de 13 de
abril, dia-a-dia noticiando o que se passou, desde Araratiguaba até Guatemi.
Descrição detalhada e rica permite ao estudioso rever, com os olhos do
sargento-mor, a região percorrida e ir conhecendo, cada passo do território por
onde avançam os membros dessa grande aventura. Embora o Diário de Juzarte tenha
tido várias outras edições, não sendo portanto um documento inédito, esta é uma
versão que ressalta aquele que o escreveu e a destaca como obra independente.
Como nos informa com clareza Jonas Soares de Souza, Juzarte
já fora publicado pela primeira vez no Tomo I dos Anais do Museu Paulista, em
1922. Depois, foi publicado na Revista do Arquivo Histórico Municipal de São
Paulo no seu volume 61 e mais uma vez por Taunay nos Relatos Monçoeiros, em
1953, pela Melhoramentos. Também é o organizador quem enfatiza ser esta edição
a primeira em volume autônomo.
Talvez valesse a pena recuperar de Taunay esta observação:
“... De todo olvidado estaria Teotônio José Juzarte não fora sua Relação, hoje
incorporada à biblioteca do Museu Paulista, notas de viagem, toscas e rudes de
soldado semi-analfabeto, mas cheias de interessantíssimos informes. Assim, a
recomendação constante do capitão-general veio salvar-lhe a memória do
esquecimento completo e torná-lo comparticipante daquele grupo de homens para
quem a ‘nonomis morior’ do conceito horaciano traduz uma promessa consoladora
até certo ponto.”
Completando eu lembraria que Juzarte se insere no conjunto
de obras que lembram o nossos 500 anos de existência e o grupo da Comissão dos
500 anos de Porto Feliz o traz para o projeto maior em andamento – Do Tejo ao
Tietê, que é a tentativa de discutir a continuidade ou não de expansão
portuguesa nos termos propostos em 1500.
É mais um esforço de cidadãos que relembram, em 1999, o
acontecido no século 18 e que tem muito a nos ensinar no limiar do terceiro
milênio.
DIÁRIO DA NAVEGAÇÃO, de Teotônio José Juzarte. Unicamp, 122
págs., R$ 12,50.
José Sebastião Witter é professor da USP e diretor do Museu
do Ipiranga.
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