segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Um ‘tosco’ soldado conta histórias do Brasil



Um ‘tosco’ soldado conta histórias do Brasil

Apontamentos de viagem de José Juzarte, agora reeditados, documentam os caminhos de uma Monção que cruzou o País em 1769

Por José Sebastião Witter

No Brasil estamos vivendo as antevésperas das comemorações do Descobrimento de nossa terra. Continuarão, em todos os níveis, as discussões das teses do acaso ao da intencionalidade desse achado português e tudo o que sucedeu com a conquista de nosso território. Neste novo episódio, tudo o que representou a saga dos Bandeirantes e as diferentes interpretações sobre a expansão da terra brasileira. Em épocas como estas, da celebração das datas, resultam muitas publicações. Entre inúmeras, algumas são de valor indiscutível. Entre elas está o Diário da Navegação, de Teotônio José Juzarte, sargento-mor, pouco letrado, que produziu um documento de grande valia para o conhecimento de nosso Brasil.
O esforço conjunto da Prefeitura do Município de Porto Feliz e do Centro de Memória da Unicamp permitiram a edição, que teve o apoio do museu das Monções e da Diretoria de Educação e Cultura da cidade portofelicense. Ao professor Jonas Soares de Souza coube a organização da obra. Ele, com seu entusiasmo de pesquisador, recuperou os originais dispersos e compôs uma nova edição, ressaltando o papel de seu autor, além de sua apresentação e a introdução de Afonso D’Escragnolle Taunay. Com iconografia primorosa no “Caderno de Ilustrações”, da página 113 e seguintes, o Diário nos traz a trajetória de uma Monção desde Araritaguaba – hoje Porto Feliz – até o forte do Guatemi, lá nas barrancas do Paraná.
Assim começa o relatório da viagem: “DIÁRIO DA NAVEGAÇÃO no Rio Tietê, Rio Grande Paraná, e Rio Guatemi em que se dá Relação de todas as coisas mais notáveis destes Rios, seu curso, sua distância, e de todos os mais Rios, que se encontram, Ilhas, perigos, e de tudo o acontecido neste Diário, pelo tempo de dois anos, e dois meses. Que principia em 10 de março de 1769.”
No princípio da obra, Juzarte faz uma descrição dos acontecimentos que precedem o embarque de uma expedição e os preparativos todos, feitos no povoado de Araritaguaba (Porto Feliz), nos dias que antecederam sua partida. São detalhados os formatos dos barcos, chamados “canoas”, além de tudo que nelas eram colocadas – desde animais até alimentos. Na seqüência, as bênçãos do pároco e a partida. (A Semana das Monções, em Porto Feliz, que está em sua 44ª edição, todos os anos reencena o episódio).
Depois dos comentários gerais e de ponderações sobre todos os perigos e estratégias para vencer os rios, Juzarte vai, a partir de 13 de abril, dia-a-dia noticiando o que se passou, desde Araratiguaba até Guatemi. Descrição detalhada e rica permite ao estudioso rever, com os olhos do sargento-mor, a região percorrida e ir conhecendo, cada passo do território por onde avançam os membros dessa grande aventura. Embora o Diário de Juzarte tenha tido várias outras edições, não sendo portanto um documento inédito, esta é uma versão que ressalta aquele que o escreveu e a destaca como obra independente.
Como nos informa com clareza Jonas Soares de Souza, Juzarte já fora publicado pela primeira vez no Tomo I dos Anais do Museu Paulista, em 1922. Depois, foi publicado na Revista do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo no seu volume 61 e mais uma vez por Taunay nos Relatos Monçoeiros, em 1953, pela Melhoramentos. Também é o organizador quem enfatiza ser esta edição a primeira em volume autônomo.
Talvez valesse a pena recuperar de Taunay esta observação: “... De todo olvidado estaria Teotônio José Juzarte não fora sua Relação, hoje incorporada à biblioteca do Museu Paulista, notas de viagem, toscas e rudes de soldado semi-analfabeto, mas cheias de interessantíssimos informes. Assim, a recomendação constante do capitão-general veio salvar-lhe a memória do esquecimento completo e torná-lo comparticipante daquele grupo de homens para quem a ‘nonomis morior’ do conceito horaciano traduz uma promessa consoladora até certo ponto.”
Completando eu lembraria que Juzarte se insere no conjunto de obras que lembram o nossos 500 anos de existência e o grupo da Comissão dos 500 anos de Porto Feliz o traz para o projeto maior em andamento – Do Tejo ao Tietê, que é a tentativa de discutir a continuidade ou não de expansão portuguesa nos termos propostos em 1500.
É mais um esforço de cidadãos que relembram, em 1999, o acontecido no século 18 e que tem muito a nos ensinar no limiar do terceiro milênio.

DIÁRIO DA NAVEGAÇÃO, de Teotônio José Juzarte. Unicamp, 122 págs., R$ 12,50.
José Sebastião Witter é professor da USP e diretor do Museu do Ipiranga.

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