O VIRADO PAULISTA (*)
Em seu excelente ensaio histórico sobre as monções que, a
partir do primeiro quartel do século XVIII, marcaram uma nova etapa na história
pátria, Sérgio Buarque de Holanda dedica especial atenção às questões
relacionadas com a alimentação dos monçoeiros. Dura pena sofreram aqueles
paulistas bem como gente de outras plagas que se aventurou Tietê abaixo, fosse
espontaneamente em direitura às minas auríferas, de pouco descobertas no
Cuiabá, fosse, mais tarde, compulsoriamente em rumo a praça forte de Nossa
Senhora dos Prazeres de Iguatemi, cemitério de paulistas, criado, e por muito
tempo mantido pelo Morgado de Mateus, capitão-general de São Paulo nos confins
das terras lusas com as do Paraguai.
Lembra aquele autor que, a bordo das canoas "a farinha
tinha em muitos pontos, papel semelhante ao que desempenhara o famoso biscoito
das galeras nas antigas viagens ultramarinas. Farinha de milho principalmente,
se é verdade que a mandioca só começa a ser cultivada, em escala apreciável, no
planalto, em fins do século XVIII que o produto conduzido a bordo, durante o
mesmo século, provinha, sobretudo, dos distritos de Itu e Araritaguaba, onde
sempre foram numerosas as roças de milho" [1]. Mas não era a farinha de
milho alimento exclusivo. Pelo contrário, ela era complementada pelo feijão e
pelo toucinho de porco. Dessa ração monçoeira, por assim dizer, aquele autor
refere-se a informações contidas em publicações de documentos antigos, que
registram a seguinte ração individual, para cálculo dos suprimentos necessários
durante as longas jornadas; cento e quinze gramas de toucinho por dia; nove
litros de farinha de milho por dez dias e quatro e meio litros de feijão pelos
mesmos dez dias [2]. Essa a ração atribuída, indistintamente a mareantes e
passageiros [3]. Sistematicamente, obedeciam à mesma rotina, o preparo das
refeições, dias após dias. "Antes do pôr-do-sol, costumavam os homens
arranchar-se e cuidar da ceia, que constava principalmente de feijão com
toucinho, o panem nostrum quotidianum dos navegantes, segundo expressão de um
deles, além da indefectível farinha de milho ou de mandioca), e algum pescado
apanhado pelo caminho" [4].
A tal ponto se integrara no regime alimentar paulista o
virado de feijão que, diz-se, o próprio dom Pedro, por razões óbvias, em uma de
suas visitas a São Paulo, comeu à moda da terra, em banquete público, feijão
preparado com toucinho e farinha [5].
Em introdução aos Relatos monçoeiros faz o saudoso mestre
Afonso de Escragnolle Taunay, um apanhado dessa característica invariável dos
hábitos alimentares de então. "O virado paulista de feijão era o grande
recurso dos monçoeiros; a famosa mistura de feijão preparado com toucinho e
farinha. A farinha de milho predominava muito sobre a de mandioca. No
aprovisionamento das monções vemos sempre figurar esse elementos essenciais. Os
alqueires de farinha de milho eram sempre um pouco mais que os de feijão o
número destes determinava outro idêntico de arrobas de toucinho. A
predominância da farinha de milho sobre a de mandioca era em geral muito
acentuada. Mas isso não era regra sem exceção, pois na monção de Rodrigo César
de Menezes, em 1726, foram embarcados cem alqueires de farinha de mandioca e
150 da de milho, para 65 de feijão e 23 de trigo" [6]. É evidente que,
quando havia exclusivamente farinha de mandioca para comprar, ao serem armadas
as monções, não prevalecia dúvida alguma. Abasteciam-na com farinha da famosa
raiz. Mas o costume mesmo era farinha de milho, não apenas para o
aprovisionamento inicial, como porque, durante a viagem, por ali ou por outras
rotas bandeirantes, era mais fácil de ser encontrada pronta, ou prepará-la
quando não existia disponível. E, no caso presente, explica-se, também, pelo
fato de ser Rodrigo César de Menezes recém-chegado de outras plagas, talvez já
habituado à farinha de mandioca e, ainda, com o seu paladar não identificado
com a farinha paulista.
Ao longo da rota monçoeira, espalhavam-se pequenas roças de
milho e feijão, para vender aos navegantes. Também capados e galinhas. Da
viagem que fez às minas de Cuiabá, em 1727, o capitão João Antônio Cabral
Camelo deixou um relato onde se pode avaliar a disposição de tais postos de
eventual reabastecimento. Dia e meio de viagem, abaixo da barra do rio
Piracicaba, encontravam-se dois moradores, com roças de milho e feijão, além de
porcos e galinhas, para vender aos que passavam, de ida ou de volta de Cuiabá.
Dali ao rio Paraná, iam doze ou treze dias de navegação. No rio Paraná, abaixo
da barra do rio Verde estavam dois outros roceiros, com suas plantas de milho e
feijão em abundância e que vendiam pelo preço que desejassem; a primeira destas
duas roças, situada na margem esquerda, possuía uma capela em honra de São Bom
Jesus. Depois de transposto o varadouro de Camapuã, rodados o Coxim e o
Taquari, entravam no rio Paraguai e, logo adiante, alcançavam a barra do rio
Cuiabá.
Daí para cima, ao quarto ou quinto dia se chega ao Arraial
velho, ou registro, que vem a ser uma roça com muito bom bananal; dia e meio
acima desta roça está outra, também povoada, e desta até aos Morrinhos, que
serão sete ou oito dias de viagem, a outras duas que dão bastante milho e
feijão; porém, dos Morrinhos até a vila, que são seis ou sete dias, quase todo
este rio está cercado de roças e fazendas, como também quatro ou cinco acima da
mesma vila (Cuiabá) e em todas se plantam milho e feijão, em os dois meses do
ano março e setembro, dão, também, excelente mandioca, de que se faz farinha"
[7].
Tendo lá permanecido algum tempo, regressou o capitão Cabral
Camelo. Partindo de Cuiabá, com 14 dias de viagem chegou à primeira roça
situada no rio Taquari. Insegura a vida e incerto o destino daqueles roceiros
solitários e destemerosos. Continuando o trajeto, chega a roça do Caijuru:
passa em seguida o salto do Corau e o Nhanduí-mirim, encontrando as roças todas
despovoadas. É que os roceiros tinham sido mortos pelos índios Caiapós. Abaixo
do Caijuru existia gente nas roças. Chega ao Nhanduí e, no dia em que parte
dali, parte também o roceiro, amedrontado com as correrias da indiada.
Abaixo do Nhanduí estavam também despovoadas as roças como
também a primeira situada no rio Paraná. Na outra, pouco mais acima, estava lá
apenas um único homem. No Tietê, abaixo da foz do Piracicaba, existiam quatro
roças com gente e muitas outras despovoadas. Entre este ponto e Itú existia
apenas uma única roça. Entretanto, nas quatros últimas léguas para chegar à
vila de Araritaguaba, estava bem povoada a região marginal do Tietê [8].
Mas o capitão Camelo, sete anos mais tarde, em 1734, faz
nova viagem a Cuiabá, de onde retornou a pé, curtindo duras penas. Como é
óbvio, não podia um pedestre transportar os gêneros necessários ao consumo
normal durante a extensa caminhada, tal como viajando embarcado. E o feijão
faltava; a farinha era pouca; o toucinho escasso. Sacrifício imenso,
"porque o feijão, que era todo o nosso regalo, não se pode carregar todo o
necessário, e, assim, não comíamos mais que um pouco de angu, que se fazia para
os negros e brancos de uma pouca farinha com algum toucinho derretido, ou
desfeito em água; em Camapuã não foi menor a miséria, que o Caiapó nos queimou
a rancharia; etc." [9]. A fazenda do Camapuã, situada no divisor de águas
Paraná-Paraguai, entre as cabeceiras do Pardo e do Coxim, era por onde varavam
as canoas; por terra e, principalmente, onde se refaziam as reservas
alimentares das expedições. A situação era essa. De vez em quando, a bugrada
dava em cima daqueles roceiros isolados, e, de um ano para o outro, ou entre a
ida e a volta, os viajantes já não encontravam recursos onde e de que tinham-se
valido na passagem anterior.
Em meio ao terceiro quartel do século XVIII, ou melhor, no
ano de 1769, uma importante monção foi despachada em rumo à praça forte de
Iguatemi, nas lindes paraguaias. Comandava-a Teotônio José Juzarte. Desde os
preparativos em Arantaguaba (Porto Feliz), o responsável pelo sucesso da viagem
em que iam cerca de oitocentas pessoas multiplicava-se em providências indispensáveis,
em cuidados e planos de toda espécie, inclusive e principalmente, naqueles
referentes à alimentação. "O mantimento de que se fornecem estas
embarcações para a viagem não excede a feijão, farinha de mandioca ou de milho,
toucinho e sal, que é o cotidiano sustento, exceto alguma caça, ou peixe, se o
há". Mas necessário era prever a quantidade de cada um dos gêneros em
função do número dos que integravam a monção e o tempo que seria consumido na
viagem. E inclusive o acondicionamento. "Este mantimento, feita a conta do
que se precisa para cada canoa, durante a viagem, se acomoda em sacos
cilindrados que tem um pé de diâmetro e cinco ou seis de comprido esta figura é
a que convém para se acomodarem melhor, pelo seu comprimento e pouco
diâmetro". Em seguida Juzarte anota o sistema de alimentação quanto ao
horário e condições do alimento. "Durante a dita viagem se costuma
cozinhar à noite, o que se há de comer no outro dia, e porque não se pode
acender fogo ao jantar, come-se frio o feijão que ontem se cozinhou" [10].
E lá se foi a expedição rio abaixo. Desceu o Tietê, rodou o
Paraná. Com quarenta dias de viagem alcançava a barra do Iguatemi. Era já
dolorosa a situação dos expedicionários, no que tangia à alimentação. Porque
sofrimentos de outra natureza já tinham principiado no mesmo dia, ou de
véspera, da partida do porto monçoeiro. "Nesta altura – dizia – Juzarte –
já se não perdoava a macaco, capivara ou outro qualquer bicho, para se comer,
porque a ração se diminuía, e a fome apertava, a farinha já ia corrupta pelas
umidades, e essa pouca, o feijão também pouco, podre, e já nascendo por conta
das muitas umidades, toucinho quase nenhum, nestes termos, além dos muitos
enfermos que já tínhamos cuidávamos em abreviar a jornada" [11]. A coisa
era assim: difícil com bastante feijão, toucinho e farinha de milho; horrorosa
sem aqueles alimentos.
Na travessia do lago Xaraes, em viagem realizada por volta
de 1786. Lacerda e Almeira durante sete dias, passou "com um pouco de
farinha de milho e marmelada, já ardida que de São Paulo vem para todas as
Minas para negócio, etc." E mais adiante ao entrar no rio Paraguai, vindo
de Cuiabá, dá o seu testemunho sobre a valia do complexo alimentar bandeirante.
"Vi então, por experiência própria que o melhor guisado do mundo, e o mais
inocente, é o feijão e toucinho pouco cozidos. Este é o bom efeito da
sobriedade" [12].
Um dos primeiros testemunhos, no século XIX, da alimentação
à base do virado paulista foi Mawe sem dúvida. "A alimentação usual dos
habitantes é a seguinte: para o almoço, uma variedade de leguminosa chamada
feijão cozido, e depois misturado com farinha de milho; para o jantar, feijão
cozido com carne de porco gordo, e algumas folhas de repolho, uma espécie de
pirão feito com caldo de carne de porco derramado num prato de farinha sendo
comido com a mão, que é muito apreciado para a ceia, umas pobres hortaliças
também cozinhadas com porco" [13]. Estava o autor da viagem pela zona de
Cantagalo, na província fluminense. Esse comer com a mão, a que Mawe se refere
deve ser pelo processo de fazer "capitão", juntando farinha ao virado
até que seja obtida a consistência necessária para manter íntegro um pelote de
virado feito com as pontas dos dedos, sobre o prato, para tornar possível
leva-lo à boca. É o que ouvi contar, na minha infância, sobre como "os
antigos faziam".
Voltemos às monções cuiabanas. Hercules Florence registrou,
no relato de sua viagem fluvial até o Amazonas, em 1826, o ritmo das refeições
diárias. "Navegamos todo o dia parando só para tomar refeição. De manhã,
nossa gente almoçava farinha de milho desmanchada em água fria e açucarada. Ao
meio-dia abicava-se para jantar. Comia-se a essa hora um prato de feijões feito
de véspera com toucinho e que, depois de aquecidos, misturam-se com farinha de
milho" [14]. Feijão e farinha e toucinho também não deviam faltar nas
monções. Quando bem calculadas as necessidades, o que levavam bastava, até
arribarem em local de reabastecimento, se tudo corria bem, sem atrasos
inesperados. E nas viagens para Cuiabá, e além, as grandes expedições possuíam
parece, um único grande centro de reabastecimento: Camapuã. "Como de Porto
Feliz – comprova-o Hercules Florence – partíramos levando a quantidade de
farinha de milho necessária para a viagem até Camapuã, a fim de não carregar
demais as canoas, tivemos que encomendar 120 alqueires de farinha foi toda
batida a poder de braço, nos simples pilões de uso doméstico.
O velho hábito do feijão com farinha de milho cristalizou-se
no complexo alimentar de nossa população rural. Na penúltima década do século
passado. Ina Von Binzer, jovem professora alemã que ensinou filhos de
fazendeiros paulistas e fluminenses, de uma fazendo do estado do Rio de
Janeiro, próximo ao de São Paulo, mandava contar, em carta a uma sua
compatriota, entre as muitas coisas que aqui ocorriam, que andava
"namorando a farinha de milho e a de mandioca que vem à mesa em cestas de
pão e que os brasileiros misturam com feijões cheios de caldo, etc." [16].
Até ao paladar de uma jovem professora germânica completamente desabituada a
coisas que tais, acabou sabendo bem o nosso feijão com farinha. E alguns
torresminhos misturados...
Notas:
1. Sérgio Buarque de Holanda, Monções. Rio de Janeiro. 1945,
p.186.
2. Departamento do Arquivo do Estado, Documentos
interessantes, v.7, São Paulo, p.46
3. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p.195
4. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p.186
5. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p.187
6. Afonso de E. Taunay, Relatos monçoeiros, São Paulo
7.
Afonso de E. Taunay, op. cit., p.115-122
8.
Afonso de E. Taunay, op. cit., p.132
9.
Afonso de E. Taunay, op. cit., p.133
10.
Afonso de E. Taunay, op. cit., p.219
11.
Afonso de E. Taunay, op. cit., p.252
12. Francisco José de Lacerda e Almeida. "Diário de
viagens de..." São Paulo. 1841, p.66
13. John Mawe, Viagem ao interior do Brasil, Rio de Janeiro,
1944, p.129.
14. Hercules Florence, Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas,
São Paulo, 1948, p.96
15. Hercules Florence, op. cit., p.106
16. Ina Von Binzer. Alegrias e tristezas de uma educadora
alemã no Brasil, São Paulo, 1946, p.27.
(Schmidt,
Carlos Borges. "O virado paulista". Diário de São Paulo, 21 de
junho 1959)
(*)http://jangadabrasil.com.br/outubro50/cp50100c.htm
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