segunda-feira, 4 de setembro de 2017

As rodovias paulistas e as monções setecentistas



As rodovias paulistas e as monções setecentistas (*)


Estrada dos Romeiros, Rodovia do Estado, Estrada da Gruta, Estrada de Cabreúva, e outras tantas foram as denominações dadas popularmente ao longo do tempo para o trecho Itu - Cabreúva da Rodovia São Paulo - Mato Grosso, aberta ao público no dia 01 de maio de 1.922. Com essa inauguração completava-se o setor considerado o mais importante da rodovia de noventa e sete quilômetros de estrada - tronco que ligava São Paulo a Itu, e era considerada marco na implantação da malha rodoviária paulista.
A estrada estava incluída em um projeto de quase uma década. Em 1.913, o governo de São Paulo chefiado pelo conselheiro Francisco de Paula Rodrigues Alves (quadriênio 1912-1.916) encomendara a elaboração de um "Plano de Viação" para o Estado. A tarefa seria executada sob coordenação do engenheiro Clodomiro Pereira da Silva. Na mesma época, o então deputado estadual Washington Luís Pereira de Sousa, mais tarde famoso como autor do lema "governar é abrir estradas", em documento dirigido ao Secretário da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Paulo de Morais Barros, ressaltava a importância da abertura de novas rodovias e dizia que, em relação ao automóvel, "sabendo que esse veículo não é um concorrente perigoso da estrada de ferro, e é antes um auxiliar indireto, devemos concluir que fazer boas estradas, para todo o ano, que permitam o trânsito de automóveis, é um dever geral, neste momento de progresso da Viação".
No mesmo ano de 1.913 sancionou-se a Lei 1406, datada de 26 de dezembro, estabelecendo o regime penitenciário no Estado. Em seu artigo 6º essa Lei permitia que, enquanto não estivesse concluída a Penitenciária do Carandiru, os condenados trabalhariam de preferência na abertura, construção e conservação de estradas públicas de rodagem. A mesma Lei, em seu artigo 16, autorizava o governo a estabelecer o sistema de Viação do Estado em relação a estradas públicas de rodagem.
Durante o seu mandato como prefeito de São Paulo (1.914) Washington Luís já tinha traçado um grande programa rodoviário. O programa preocupava-se basicamente com as saídas do município, visando o futuro aproveitamento dos cinco troncos estaduais previstos nos Planos de Viação: 1. São Paulo - Rio de Janeiro, 2. São Paulo - Minas Gerais, 3. São Paulo - Mato Grosso, 4. São Paulo - Paraná e 5. estradas do litoral sul.
Ao assumir o governo paulista, Altino Arantes Marques (quadriênio 1.916/1.920) encontrou a questão rodoviária bastante amadurecida, e em seu mandato deu andamento a diversas obras. Entretanto, somente no governo de Washington Luís (quadriênio 1.920/1.924) é que o rodoviarismo ganhou notável incremento. É por isso que ele pode comemorar o primeiro aniversário de seu governo com a inauguração, a 01 de maio de 1.921, da estrada São Paulo - Campinas, cuja construção tinha sido iniciada em 1.9l6 sob os auspícios da Lei 1.406. A partir de então, tomaram-se medidas concretas para o estabelecimento de um plano definitivo de construção e conservação de estradas, criando-se, através da Lei 1835-C de 26/12/1.921, a Inspetoria de Estradas de Rodagem, subordinada à Diretoria de Obras Públicas da Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, e uma brigada de empreiteiros para o desempenho das tarefas de construção e conservação.

O caminho das monções

Nessa época retomaram-se os trabalhos de construção da São Paulo - Mato Grosso, que estavam paralisados. Para Washington Luís, a rodovia resgatava o caminho das Monções setecentistas, antigamente percorrido nas "estradas móveis" das águas dos rios Tietê, Paraná, Pardo, Taquari e Paraguai. O termo monções, na sua origem árabe, significava época ou vento favorável à navegação. Incorporado ao vocabulário do País, passou a referir-se às expedições fluviais povoadoras e comerciais que partiam do antigo porto de Araritaguaba, às margens do Tietê, atualmente Porto Feliz, com destino às minas de ouro nas cercanias de Cuiabá. Apesar de no século 18 ter sido feita a abertura de comunicação terrestre com essa região, na realidade, porém, enquanto perdurarem as grandes monções, ela nunca poderá ser muito mais do que um complemento do comércio fluvial. Se no movimento monçoeiro os rios foram imprescindíveis, eles não tiveram uma ação significativa sobre o movimento das bandeiras, como registrou Alfredo Ellis Júnior em O bandeirismo paulista e o recuo do meridiano: " O Tietê, o velho Anhembi, que à primeira vista parece ter sido o grande caudal que determinou o Bandeirismo, foi desconhecido de grande parte do movimento".
Dois séculos depois da descoberta de ouro junto à barra do Coxipó - Mirim, em 1.718, por Pascoal Moreira Cabral, a Rodovia São Paulo - Mato Grosso retomava o antigo itinerário do movimento monçoeiro.

Estrada-monumento

O trecho Cabreúva - Itu da Rodovia São Paulo - Mato Grosso foi construído entre 1.920 e 1.922. "Uma estrada de rodagem, talvez a mais bela e bem acabada que existe no Estado de São Paulo, vai ser inaugurada justamente no dia em que se verifica o segundo aniversário do atual governo", dizia o jornal República, de Itu, na edição de 30 de abril de 1.922.
O traçado da nova estrada acompanhava, na margem oposta do Tietê, quase que o mesmo traçado da antiga "Estrada do Imperador". Nos séculos 18 e 19 através desse caminho era transportado para São Paulo e Santos, em lombo de burros, a produção ituana de açúcar e café . Isto perdurou até a construção da Estrada de Ferro Ituana, que seria inaugurada em 1.873. A abertura do trecho foi um trabalho difícil. A picada na mata surgiu a golpes de facões e machados. O braço humano escavava à picareta a encosta íngreme e carregava as carrocinhas basculantes transportadoras de terra. A beleza do leito acidentado do Tietê acabou sendo revelada durante a construção da nova estrada, que pouco a pouco ganhava forma. Washington Luís estava tão interessado nas obras que as inspecionou pessoalmente no dia 18 de fevereiro de 1.922. O tamanho da comitiva que o acompanhou naquele dia dá conta da importância da obra para o governo. Com o presidente do Estado estava o seu ajudante de ordens, major Afro Marcondes; o secretário da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Heitor Penteado; o deputado federal Carneiro da Cunha; o diretor das Obras Públicas, Alfredo Braga; o presidente da Associação Permanente de Estradas de Rodagem, Antônio Prado Júnior e o engenheiro da Diretoria de Obras Públicas, Cássio Vidigal. No ponto em que marcava o estágio mais avançado das obras a comitiva presidencial encontrou-se com o engenheiro fiscal da construção da ponte sobre o Tietê, Paulo Dutra da Silva, e com autoridades do município de Itu. Finalmente, a 01 de maio de 1.922 Washington Luís inaugurou a estrada, comemorando com pompa o aniversário do segundo ano de mandato. O próximo trecho, de Itu a Porto Feliz e Tietê, seria inaugurado no ano seguinte, em 1.923.
No seu governo Washington Luís desenvolveu um extenso programa comemorativo do centenário da Independência (1.822/1.922). Estudioso da História de São Paulo e autor de livros e artigos sobre o assunto, ele tinha como projeto privilegiado a idéia de realçar o papel dos paulistas na construção da Nação. Na estrada Vergueiro (São Paulo - Santos), ao longo da serra, construiu-se uma série de monumentos com tríplice finalidade: celebrar o centenário da Independência (1.822/1.922); lembrar permanentemente aos passantes o "esforço hercúleo dos paulistas" desde a época colonial até aos nossos dias para estabelecer a ligação entre o litoral e o planalto central; e servir de abrigo para os viajantes. Quatro monumentos principais foram então projetados pelo arquiteto Victor Dubugras: Cruzeiro Quinhentista; Marco de Lorena; Rancho da Maioridade e Pouso de Paranapiacaba
Por sua vez, a rodovia São Paulo - Mato Grosso, especialmente o trecho entre São Paulo e Porto Feliz, poderia também rememorar a importância dos paulistas na conquista e formação do território nacional. Em sua última fala pública, em Itu no ano de 1.955, Washington Luís de certa forma deixou patente esta dimensão da estrada: "E esta de Itu é a celebrada estrada, que partida de São Paulo, chegava ao antigo porto de Araritaguaba e ia a Mato Grosso, esse Mato Grosso onde a audácia e a perseverança da gente paulista foram descobrir as minas de ouro de Cuiabá, que enriqueceram a metrópole de então, e, sobretudo, alargaram a capitania de São Vicente, fazendo alongar para oeste imensamente as fronteiras do território brasileiro".
Para o trecho Cabreúva - Itu, que desde a sua inauguração já era considerado como o "mais belo", Washington Luís idealizou e mandou construir muradas, mirantes e bancadas. Não eram monumentos como aqueles construídos pelo arquiteto Victor Dubugras ao longo da serra. Mas eram recursos que tinham a finalidade de facilitar aos passantes a visão de um monumento natural muito maior: o Tietê e os portentosos jequitibás das margens do lendário rio. Nos mirantes o viandante poderia ver o Tietê como a "estada móvel" que conduzira os paulistas ao coração do país e o jequitibá como o símbolo da magnitude do PRP - "É verdade que o Partido Republicano Paulista não proclamou a República; mas amparou, ajudou a constituição e o seu funcionamento. Desse partido foram membros os maiores dentre os maiores homens que trabalharam durante o regime republicano no Brasil", afirmaria mais tarde Washington Luís.
Prosseguindo o caminho, a poucos quilômetros de Itu o viajante alcançaria Porto Feliz, às margens do Tietê. Nas proximidades do antigo porto geral da velha Araritaguaba, um vistoso monumento em mármore rosa, executado em 1.920 pelo escultor Amadeo Zani, o lembraria das fantásticas expedições fluviais do século 18 e da constante motivação do homem para vencer distâncias, descobrir o desconhecido e construir o novo.

(*) Jonas Soares de Souza – professor, historiador da USP.

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