domingo, 15 de outubro de 2017

A origem da cidade: de Araritaguaba a Porto Feliz

E o ouro para Portugal


Araritaguaba

Foi no reinado de d. João V, O Magnânimo, que a capela de Nossa Senhora da Penha de Araritaguaba ganhou a condição de freguesia, desmembrada da paróquia da vila de Itu, e recebeu o seu primeiro vigário, padre Felipe de Campos Bicudo.
Freguezia
 Freguesia era o nome que se dava na antiga América Portuguesa, e ainda hoje em Portugal, à menor divisão administrativa, correspondente à paróquia civil de países como o Reino Unido e República da Irlanda. Corria o ano de 1728 e a Capitania Real de São Paulo era governada pelo capitão-general Antonio da Silva Caldeira Pimentel. Nessa época o território da capitania era bem maior e muito diferente do território do atual Estado de São Paulo.
Capela em 1700
O historiador ituano Francisco Nardy Filho, com base no Livro Tombo da Igreja Matriz de Porto Feliz, pesquisado por ele na década de 1950, afirma que a capela fora construída por Antonio Cardoso Pimentel em 1700. O próprio Nardy alerta para o fato de o registro ter sido feito no Livro Tombo em 1747 pelo segundo vigário de Araritaguaba, padre Francisco de Campos, após ter ouvido a informação de testemunhas oculares da fundação da capela. A ocupação da área situada à margem esquerda do rio Tietê, onde fora erguida a capela, remonta ao final do século 17. Certamente já se conhecia a possibilidade de alcançar o sertão a oeste e até de se chegar às terras da coroa espanhola, ou às montanhas de prata de Potosi (Bolívia), singrando inicialmente águas do Tietê a partir de Araritaguaba.
1628 Cespedes Xeria
Foi o que fez em 1628 a comitiva de dom Luiz de Céspedes y Xeria, nomeado governador do Paraguai pelo rei Filipe IV de Espanha, que tinha como destino a cidade de Asunción. Cabe lembrar que no período de 1580 a 1640 Portugal estava unido a Espanha. Xeria fez um precioso mapa dessa viagem, documento que se encontra sob a guarda do Archivo General de Índias, localizado na cidade de Sevilha, Espanha. Trata-se de documento importante para o conhecimento dos inícios da colonização do território paulista e do mais antigo testemunho iconográfico da utilização de Araritaguaba como porto.
Monções
Mas, a Freguesia de Nossa Senhora da Penha de Araritaguaba teve impulso com o movimento das monções. O termo monção designava a navegação fluvial para o oeste, realizada principalmente pelos paulistas durante o século 18. O historiador Sérgio Buarque de Holanda chamou a atenção para a existência de elementos semelhantes entre as viagens oceânicas portuguesas e as fluviais dos paulistas: regularidade, periodicidade e duração. Todos os anos, nos meses de março e abril, as viagens para o Oriente coincidiam com as jornadas fluviais para Cuiabá, aproveitando as cheias dos rios e a facilidade da navegação. A rota entre Araritaguaba e Cuiabá durava de cinco a sete meses, mesmo tempo da rota entre Portugal e Índia. As frotas monçoeiras chegaram a reunir centenas de canoas, que transportavam desde sal até artigos de luxo, como licores e sedas, de forma que se tornaram essenciais para o abastecimento das minas de ouro nos primeiros tempos.
Porto das Monções
O porto das monções ganhou notoriedade no reinado de d. João V, O Magnânimo ou Rei-Sol Português. João Francisco Antonio José Bento Bernardo de Bragança, seu nome de batismo, reinou de 1º de janeiro de 1707 até morrer em 31 de julho de 1750. Quando começou a reinar, Portugal estava implicado na guerra da sucessão espanhola, ou seja, a briga entre as famílias Habsburgo e Bourbon pela Coroa da Espanha. O envolvimento no conflito custou os olhos da cara e arrasou as finanças do país. O novo rei tinha pressa em restaurar o prestígio e o poder de Portugal e ao mesmo tempo praticar relações diplomáticas cautelosas para mantê-lo bem distante de qualquer novo conflito. O segundo objetivo d. João V alcançou por meio de providencial aliança com a Inglaterra, o que, nos momentos de crise, garantia eventual socorro de soldados e da Marinha Real inglesa. Quanto ao primeiro objetivo, a restauração do prestígio e poder do reino, ele alcançou graças à colônia brasileira. E é aqui que ganha relevância o antigo porto de Araritaguaba, na margem esquerda do rio Tietê. O início do seu reinado coincidiu com o primeiro grande salto na produção de ouro do Brasil.
Ouro
Em 1708 começaram a chegar ao porto de Lisboa navios carregados de arcas de jacarandá abarrotadas com o metal precioso, anunciando um ascendente ciclo de riqueza poucas vezes visto na Europa. Nos seus quase 45 anos de reinado d. João V não saberia o que era uma Coroa pobre, graças à colônia de além mar. Cerca de dois milhões de libras em ouro, uma soma equivalente à metade do orçamento de defesa da Grã-Bretanha era oficialmente enviada de navio do Brasil para Lisboa todo ano, e um imenso comércio de contrabando trazia mais um terço dessa quantia, calcula um historiador inglês. O ouro das Minas Gerais continuava jorrando quando Pascoal Moreira Cabral, que estava a prear índios nos sertões do oeste de São Paulo, encontrou novas fontes do metal em 1718, nas margens do riacho Coxipó-Mirim.
Ouro...ouro..ouro
Não demorou mais que quatro anos para o sorocabano Miguel Sutil e seu sócio português João Francisco, O Barbado, descobrir outros mananciais de ouro na mesma região. Tão logo a notícia correu, na corte o rei exultou e na colônia desabrochou uma nova fase da corrida ao ouro. Parte desse ouro passou pelo porto das monções. Um cronista da época registrou o movimento – “Das Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de toda a capitania de São Paulo abalaram-se muitas gentes, deixando casas, fazendas, mulheres e filhos”. Em apenas um ano, só de São Paulo foram mais de 2.000 pessoas.
Porto Feliz o melhor caminho
E o melhor caminho para chegar a Cuiabá, a “Terra Prometida”, certamente era a rota fluvial que tinha início no porto de Araritaguaba. Nos primeiros tempos a viagem chegava a durar sete meses, que era o mesmo tempo que se gastava para ir de Lisboa a Goa, nas Índias, contornando o Cabo da Boa Esperança. Essas expedições de São Paulo a Mato Grosso, movidas à busca do ouro, ficaram conhecidas como monções. A mais famosa e maior delas, que deixou o porto de Araritaguaba em 1726 e singrou águas dos rios Tietê, Paraná, Pardo, Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai, Porrudos (São Lourenço) e, finalmente, Cuiabá, era composta de 3.000 pessoas acomodadas em 300 canoas. Algumas imensas, outras de dimensões mais acanhadas, as monções aos poucos se firmaram como expedições comerciais e de povoamento. As monções ajudaram a ocupar e proteger as fronteiras do Brasil, a desenvolver o comércio, a agricultura, a criação de gado e a germinar muitos povoados, hoje cidades, que foram plantados ao longo do caminho fluvial de aproximadamente 3.500 quilômetros. Basta citar duas: Tietê, logo no início da jornada, e Cuiabá, o destino final.
Esbanjando o ouro das monções
 A riqueza que passou no porto das monções pode ser aquilatada, de certa forma, pela imponência da volumetria da Igreja Matriz de Nossa Senhora Mãe dos Homens, inaugurada em 1750, ano da morte do Rei-Sol Português. Se ainda hoje ela se destaca no perfil do casario e prédios, imagine a magnitude do visual nos séculos 18, 19 e boa parte do século 20. Um quinhão imensamente mais gordo de tanto ouro foi diretamente para a Inglaterra e contribuiu para consolidar o poderio econômico inglês. Mas, parte do ouro que transitou por Araritaguaba ficou em Portugal. Com aquela fortuna nas mãos, d. João V deu asas a seu projeto de exaltação real, ao desejo de erguer igrejas, conventos e palácios. Com tanto metal foi possível concretizar o complexo de 46.500 metros quadrados do Convento e Palácio em Mafra, 40 quilômetros a noroeste de Lisboa, com vista para o Atlântico. A riqueza jorrando do Brasil, e parte dela tendo circulada pelo porto das monções, permitiu ao rei erguer um rival do Escorial, palácio dos reis de Espanha, ou até mesmo de Versalhes.
O rei esbanjou ouro
De seu quase meio século de reinado pode-se dizer que a única empreitada com valor prático, em vez de “espiritual”, foi a construção de um novo aqueduto, o das Águas Livres, imensa construção que ainda hoje marca indelevelmente o cenário de Lisboa. Grande parte de suas edificações veio abaixo com o grande terremoto, seguido de um tsunami sem precedentes, no Dia de Todos os Santos em 1755. Para reconstruir a Lisboa destruída, mais recursos e muito ouro foram reclamados do Brasil. Quando se visita hoje a Baixa Lisboeta e o imenso complexo de palácio, igreja e convento de Mafra, quando se avista a silhueta do aqueduto na capital portuguesa, quando se lê Memorial do Convento, de José Saramago, ou até mesmo quando se vê a ópera Blimunda baseada naquele livro, vem na imaginação o intenso vai-e-vem de expedições, a azáfama de gente e o volume de riqueza que sacudiram as terras agora tomadas pelo singelo parque que abraça o outrora famoso “porto das monções”, lugar de memória por excelência.
Porto Feliz, porto feliz
As monções ocupam um capítulo importante da história colonial do Brasil, marcando a consolidação do território, a colonização do interior e a formação de um mercado interno. Na história local, é o capítulo que explica o surgimento da povoação e o desenvolvimento de Araritaguaba (que quer dizer “lugar onde as araras pousam para comer”, em tradução livre do termo criado pelos índios guaianás).
1797 vila
A 13 de outubro de 1797, no final do século das monções, a freguesia alcançou a categoria de vila, ganhando a autonomia do termo da vila de Itu. Como unidade política e administrativa autônoma equivalente à município, a vila deveria ter câmara de vereadores e cadeia, definir seu território e erguer o pelourinho. Pelourinho era uma coluna de pedra erguida sempre em frente ao edifício da câmara, no centro da vila, simbolizando a esfera de jurisdição própria das câmaras. Representava a autonomia e a presença da justiça. Diante do pelourinho eram castigados e expostos os infratores da lei. A nova vila recebeu o nome de Porto Feliz e o seu pelourinho foi erguido no largo da igreja matriz, onde estava reservado o terreno para a câmara e cadeia. Antonio Manuel de Melo Castro e Mendonça, governador da capitania a serviço de Sua Majestade a rainha d. Maria I, ordenara a criação da vila e no mesmo texto do ato oficial justificou a escolha do nome Porto Feliz: “por ser um porto freqüentado de comerciantes das minas de Cuiabá e Mato Grosso, e de diferentes expedições de Sua Majestade para os vastos sertões que decorrem da mesma freguesia até a fronteira da cidade de Paraguai da América espanhola, tendo por isso toda a capacidade e disposição para vir a ser em poucos anos uma das vilas mais opulentas desta capitania”.
Cidade
Sessenta anos depois, a 16 de abril de 1858 a vila de Porto Feliz seria elevada à categoria de cidade sob a mesma denominação: Porto Feliz. O Brasil gozava então de três décadas e meia de independência política e o império tinha a sua frente o jovem d. Pedro II. Contudo, a profecia do governador Antonio Manuel de Melo Castro e Mendonça teimava em não se cumprir. Em que pese o soerguimento da economia açucareira e um tímido surto de crescimento, a vislumbrada opulência tardava em dar sinais de vida.
                                                                       Jonas Soares de Souza.