O sertanismo e a fundação da cidade(*)
Durante os anos 1610‑1750, Itu foi principalmente um
ponto de apoio e ligação na vasta rede de comunicações e aviamentos organizada
para a preação dos índios, a busca do ouro, a cata das pedras preciosas e o
abastecimento dos núcleos de mineração. Itu começou a ser fundada por um
sertanista que decidira abandonar o bandeirismo pela agricultura. Ao fundar
Utuguaçu (Cachoeira Grande, depois grafada simplesmente Ytu ou Itu), em 1610,
Domingos Fernandes estava criando um núcleo populacional, com suas roças e
criações, que foi um ponto de apoio e ligação na vasta rede de rios, trilhos e
caminhos (ou sítios, arraiais, freguesias, povoados, vilas e cidades) que se
criaram com a expansão do povoamento do planalto paulista, das regiões de Minas
Gerais, Goias, Mato Grosso, Paraná e de todo o sul do país. Primeiro, durante o
século XVII, foram as bandeiras formadas para prear índios ou buscar metais e
pedras preciosas. Depois, durante a primeira metade do século XVIII, foram as
monções, formadas para comerciar nos núcleos de mineração em Cuiabá, Goiás e
outras partes da Colônia.
Simultaneamente, foi‑se criando uma sociedade peculiar
na área de Itu. A despeito da predominância dos negócios dos sertanistas,
bandeirantes ou comerciantes, em suas idas e vindas por longos espaços e
tempos, formaram‑se roças e criações no lugar. Fixaram‑se famílias e gerações,
meio ligadas aos movimentos das bandeiras e monções, meio ligadas à terra, à
casa, às roças e criações. Mesclaram‑se os portugueses e os índios, escravos e
forros, mestiços ou não, nas bandeiras, monções, roças ou criações. Assim,
enquanto se estendia a rede de povoamento e negócios, pelas longas lonjuras,
formava-se a base de uma sociedade peculiar, a sociedade caipira. Foi a
sociedade caipira que se formou em Itu, ao longo dos anos 1610‑1750, à medida
que o lugar se articulava e rearticulava na vasta rede de caminhos, trilhos,
estradas, rios, sítios, arraiais, freguesias, povoados, vilas e cidades que os
portugueses, os índios, mamelucos, negros e mulatos iam formando perto, longe e
distante.
Essas características básicas da sociedade formada não
só em Itu mas no planalto paulista, nos séculos XVII e XVIII, estão anotadas ou
analisadas nos estudos realizados por Afonso E. Taunay, Alcântara Machado, Caio
Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Francisco Nardy Filho
e outros. As observações feitas por alguns desses autores mostram muito bem o
contexto histórico, isto é, econômico, geográfico, social e cultural, em que se
formou a sociedade de Itu, como parte da imensa rede de vias e. lugares que
assinalaram o povoamento do sertão.
No começo, a preação dos índios e a busca de metais e
pedras preciosas foram as preocupações predominantes. "Iniciada a
colonização, é por São Paulo que se farão as primeiras penetrações do
continente: para o altiplano central (Minas Gerais), para a grande depressão
interior do continente (bacia do Paraguai), para os campos do Sul. Penetração
exploradora e preadora de índios, a principio; prospectora de minas e povoadora
afinal" ( 1 )
"Durante a maior parte do século XVII, as terras
a oeste do rio Paraná foram consideradas grandes reservatórios de índios
domesticados ou brabos, que os paulistas iam prear para as suas lavouras"
(2).
Depois, pouco a pouco, decai o bandeirismo e expandem‑se
as atividades de comércio, as monções, destinadas ao aviamento dos núcleos
populacionais formados em tomo das atividades de mineração. "Nas frotas de
comércio ‑ frotas que chegaram a abranger, por vezes, trezentas ou quatrocentas
canoas ‑ ia o bastante para que não morressem de fome os moradores de Cuiabá, e
depois os de Vila Bela e de outras localidades nascidas da expansão cuiabanas e
à medida em que se empobreciam as antigas jazidas. Os mantimentos que entre
eles se cultivavam e os animais domésticos que se criavam, serviam unicamente
para impedir que desfalecese os trabalhos de mineração e para que essa fonte de
riqueza não entrasse em fatal colapso" ( 3 )
São vários e muitos os acontecimentos da vida de Itu
relativos às idas‑e-vindas das pessoas e mercadorias ligadas às bandeiras e às
monções. Em 1635, "Tomé Fernandes da Costa e seu irmão Fernandes Cabral,
filhos de Domingos Fernandes, ainda jovens, filhos‑família, fazem uma entrada
no sertão aprisionando muitos índios, que são conduzidos para Utu‑guaçu"
(4) .
Em 1678, "parte de Itu, embarcando no porto de
Pirapitingui, uma monção formada por seis canoas grandes com destino ao
Paraguay. . . " ( 5 ).
No dia 11 de fevereiro de 1698 chegou a Itu o
governador Artur de Sá Menezes, "procedendo investigações referentes às minas",
além de outras providências, e "encontrou o povo em preparativos de uma
frota de gente que partia para as minas Itaverava" ( 6 ) .Em 1719 "os
irmãos João e Lourenço Leme, acompanhados de seus escravos e índios seguem para
Cuiabá" ( 7 ) . Em maio de 1725 " chegam a Itu 15 índios conduzindo
duas peças de artilharias para Cuiabá" ( 8 ) . Em janeiro de 1728,
"em combate com os índios payaguás são mortos os ituanos Miguel Antunes
Maciel e Antonio Antunes Lobo, ficando prisioneiros um filho e um escravo de
Antunes" ( 9 ). Em 1733 partiu de
Itu uma "grande expedição" que "ia fazer guerra ao gentio
payaguá", expedição essa formada por 842 soldados, três batelões e 108
canoas (10). Foram muitas as bandeiras e monções que passaram por Itu ou
partiram desse lugar, em busca de índios, minerais e pedras preciosas; ou para
comerciar com os habitantes vivendo nos núcleos de mineração“. As monções deram
também notável incremento ao progresso de Itu; partiram as monções de
Araritaguaba ( Porto Feliz ) , porém, era em Itu que elas se organizavam. Itu
era o empório em que os que iam partir se abasteciam do que lhes era necessário
‑ roupas, fazendas, ferramentas e outros artigos e gêneros " ( 11 ).
Esse foi o contexto no qual, pouco a pouco, formou‑se
uma sociedade de tipo especial. Ao lado das atividades econômicas ligadas às
bandeiras e às monções, desenvolveu‑se uma economia voltada para a subsistência
de famílias e bairros rurais, apoiadas em suas roças e criações. Assimilaram‑se
técnicas e soluções indígenas; ou reformularam‑se as técnicas e soluções
trazidas pelos portugueses, no confronto com a cultura indígena. "A
sociedade constituída no planalto da capitania de Martim Afonso manteve‑se por
longo tempo ainda, numa situação de instabilidade ou de imaturidade, que deixa
margem ao maior intercurso dos adventícios com a população nativa. Sua vocação
estaria no caminho, que convida ao movimento; não na grande propriedade rural,
que cria indivíduos sedentários" (
12 ).
"É inevitável que nesse processo de adaptação, o
indígena se torne seu principal iniciador e guia. Ao contato dele, os colonos,
atraídos para um sertão cheio de promessas, abandonam, ao cabo, todas as
comodidades da vida civilizada. O simples recurso às essas vias de comunicação
abertas pelos naturais do país já exige uma penosa aprendizagem que servirá,
por si só, para reagir sobre os hábitos do europeu e de seus descendentes mais
próximos. A capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço; o
senso topográfico levado a extremos; a familiaridade quase instintiva com a
natureza agreste, sobretudo com seus produtos medicinais ou comestíveis, são
algumas das imposições feitas aos caminhantes nessas veredas estreitas e
rudimentares. Delas aprende o sertanista a abandonar o uso de calçados, a
caminhar em "fila india", a só contar com as próprias forças durante
o trajeto. Salvo na proximidade imediata das maiores povoações, nenhum
progresso fundamental será possível antes que se generalize o emprego de
cavalares e muares para extensos percursos. Nada indica que os trabalhos de
reparo e conservação das estradas mais importantes, trabalhos feitos, a
princípio, de mão comum pelos moradores, e quase só até onde chega o poder
efetivo das câmaras municipais, pudesse modificar apreciavelmente a fisionomia
e o caráter próprio desses caminhos"
( 13 ) .
1-Caio Prado Junior, Formação do Brasil Contemporâneo,
5' edição, São Paulo, Editora Brasiliense, 1975, p. 61.
2-Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e fronteiras.
Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1957, pp. 165‑6.
3-Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 174.
4-Francisco Nardy Filho, A cidade de Itu, 4 vols., São
Paulo, Escolas Profissionais Salesianas, 1928, 1930, 1950 e 1951, vol. 4, p.
11.
5-Idem, ibidem, p. 13.
6-Idem, ibidem, p. 18.
7-Idem, ibidem, p. 26.
8-Idem, ibidem, p. 31.
9-Idem, ibidem, p. 33.
10-Idem, ibidem, p. 40.
11-Francisco Nardy Filho, op. cit. e “Evolução da
cidade de Itu”, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 de abril de 1957.
12-Sérgio Buarque de Holanda. Monções, Rio de Janeiro,
Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1945, p. 12.
13-Idem, ibidem, pp. 14‑15.
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