segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Paulistas e Colonos de São Paulo nas Garras da Inquisição



Paulistas e Colonos de São Paulo nas Garras da Inquisição


Muito pouco se escreveu até hoje sobre a Inquisição em São Paulo. Tema apaixonante mas pouco pesquisado, malgrado a existência de documentação substantiva que permite-nos afirmar que este Monstrum Horribilem, o famigerado Tribunal do Santo Ofício da Inquisição teve atuação muito mais freqüente e repetida na Capitania de São Paulo, do que até agora os historiadores revelaram.
Quando se fala da presença do Santo Ofício da Inquisição no Brasil, imediatamente se pensa no Nordeste, posto ter sido a Bahia e Pernambuco as Capitanias mais atingidas pela famigeradas Visitações de 1591 e 1618 (1). Embora bem menos devassadas, também as Capitanias do Sul, inclusive São Paulo, padeceram terríveis constrangimentos e perseguições por parte do incendiário Monstro Sagrado, tanto que dos 20 moradores do Brasil a ser queimados nos Autos de Fé de Lisboa, quando menos dois eram residentes nos planaltos de Piratininga: Teotônio da Costa (1686) e Miguel de Mendonça Valhadolid (1731) ambos in-culpados por praticar a Lei de Moisés. (2)
Após prolongadas pesquisas na Torre do Tombo, de Lisboa, onde estão arquivados mais de 40 mil processos inquisitoriais e outro tanto de denúncias e confissões pertencentes à alçada do Santo Ofício, localizamos pessoalmente, até agora, 47 episódios envolvendo moradores da Capitania de São Paulo - material em sua maior parte inédito e que aguarda que algum pesquisador da terra lhe dê tratamento mais acurado e a divulgação que está por merecer.
Praticamente todos os crimes perseguidos pela Inquisição foram praticados e denunciados em São Paulo, destacando-se 16 padres solicitantes, oito sodomitas, sete bígamos, sete feiticeiros, três autores de proposições heréticas, dois cristãos-novos e ainda dois episódios envolvendo irregularidades no exercício do cargo de Familiar do Santo Oficio. Tais números certamente estão sujeitos a acréscimos - sobretudo quanto à presença dos criptojudeus, a minoria religiosa mais perseguida pela sanha inquisitorial - sobre os quais o leitor interessado encontrará maiores informações notadamente nas obras de José Gonçalves Salvador, Arnold Wiznitzer e Anita Novinsky.(3)
Dos residentes na Capitania de São Paulo cujos nomes e desvios chegaram ao Tribunal do Santo Ofício, nos concentraremos inicialmente nos inculpados em crimes da fé: sete acusações de feitiçaria, três denúncias de proposições heréticas e dois casos de livres-pensadores. Numa segunda parte deste ensaio analisaremos as histórias de vida de 16 padres residentes na Capitania de S.Paulo envolvidos com melindroso pecado: a solicitação no confessionário de suas penitentes para atos torpes, na época chamada de "solicitatio ad turpia".
Deixaremos para outra ocasião o estudo dos demais desviantes sexuais: os oito sodomitas (homossexuais masculinos) e os sete bígamos.
Os doze episódios atinentes aos chamados "crimes contra a fé" ocorreram entre os anos de 1741 é 1781, portanto no período que inclui a restauração da Capitania (1765) e a chegada de seu primeiro Bispo (1764), época em que essa região, até então muito marcada pelo apresamento e tráfico de índios, amplia sua base econômica, passando a incrementar, além da policultura de subsistência, a florescente agroindústria açucareira e a manufatura têxtil, as famosas redes paulistas tão disputadas pelos viajantes coloniais. E nessa segunda metade do século XVIII que tem lugar a maior ocupação das regiões de Atibaia, Sorocaba e Itu - exatamente as áreas mais citadas nos medonhos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa.

Hereges e libertinos

Desses doze episódios desviantes em questão de Fé ocorridos em São Paulo, comecemos pelo mais recuado cronologicamente - 1741 - quando um cidadão residente na vila de Araritaguaba (hoje Porto Feliz) é denunciado ao Santo Oficio como libertino. Eis como o dicionarista Antônio de Moraes e Silva, ele próprio denunciado à Inquisição de Coimbra por esse mesmo crime, definia o que era um libertino: "Indivíduo que é incrédulo na religião e ofende as suas práticas; pessoa que sacudiu o jugo da revelação, entendendo que a razão por si só pode guiar com certeza no que respeita a Deus, à vida futura etc., e por isso não segue os preceitos da religião, antes, pratica atos contrários aos seus princípios".(4)
Essa denúncia ocorreu entre os dias 20-25 de setembro de 1741, inculpando Lucas da Costa Pereira, natural do Funchal, então morador na Freguesia de Nossa Senhora da Penha de Araritaguaba, sita na margem esquerda do rio Tietê, a cinco léguas de Itu, célebre porto de onde partiam as moções rumo à hinterlândia (5).O acusado era "cirurgião aprovado" e constava ter percorrido "toda a América Meridional, assistindo em muitas terras, aldeias e arraiais da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, entre elas Pindamonhangaba e Taubaté". Devia beirar os 50 anos quando chegou à Inquisição de Lisboa a denúncia de que esse ci-rurgião madeirense "come carne nos dias proibidos, não ouve missa e é acostumado a ter atos sodomíticos, sendo agente, com vários negros boçais para cujo fim os sustenta com largueza"(6). Um de seus denunciantes ostentava nome pomposo: Capitão Salvador Mar-tins Bonilha, morador na mesma freguesia, que interpretou as práticas libertinas do cirurgião andarilho como "crime de judaísmo", acrescentando ao rol de suas culpa-s um hediondo sacrilégio muitas -vezes atribuído aos criptojudeus: "teria metido no fogo uma imagem do Menino Jesus!" . Zeloso, o Comissário do Santo Ofício local acondicionou num tufo de algodão a referida imagem carbonizada e a despachou além-mar para que os próprios delegados inquisitoriais avaliassem o sacrilégio. Solícitos em cortar o mal pela raiz, ordenam os Inquisidores a abertura de um Sumário - ordem que leva seis meses de viagem para chegar do Reino às margens do Tietê. Aos 20 de agosto de 1743 tem início o inquérito secreto "em um corredor do Convento do Carmo da Vila de Itu", desempenhando o cargo de Comissário do Santo Ofício o Padre Miguel Dias Ferreira e como escrivão o carmelitano Frei Diogo Antunes. Uma dezena de testemunhas confirma as acusações, insistindo, contudo, insistem mais no crime sodomia do que no de "libertino" ratificando a preferência do réu por negros boçais, incluindo entre seus cúmplices alguns nativos de Angola, Congo, Benguela, além de crioulos, aos quais "regalava-os com comida e aguardente, brindando-os ele primeiro..." Um sodomita reinol praticante da democracia racial em pleno período escravigista... Entre seus desvios religiosos, além dos já citados, constava "só querer comer toucinho com couves às sextas-feiras". Sacrilégio cabeludo para aquela época em que qualquer pecadilho levava os católicos a uma eternidade de dias nas chamas do purgatório.
Quando do início desse Sumário, o cirurgião Lucas já tinha se retirado de São Paulo, com destino às Minas de Goiás, tanto que somente por volta de 1747 é que a Inquisição conseguirá finalmente agarrar o sodomita libertino de Araritaguaba, sendo condenado primeiro à pena dos açoites, em seguida a dez anos de degredo nas galés del-Rei.
Por conta das Visitas Pastorais realizadas no Bispado de São Paulo - pelo Padre Policarpo de Abreu Nogueira, entre 1765-1771, diversos são os desviantes a ter seus nomes enviados ao Tribunal da Fé de Lisboa. Entre eles, o tropeiro Luiz Carvalho Souto, também morador na freguesia de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araritaguaba, que como o cirurgião do Funchal, mantinha acesa nessa vila a chama iluminista da "seita dos libertinos'; sendo acusado de comer carne nos dias proibidos, não se confessar conforme ordenam os mandamentos da Santa Madre Igreja, defendendo ainda a herética proposição de que "o sexto mandamento (não pecar contra a castidade) não era pecado e nem levava ninguém ao inferno"(7). Centenas de colonos e moradores não só do Reino de Portugal mas também da Espanha foram igualmente denunciados ao Santo Ofício por defender publicamente a mesma convicção: que a "fornicação simples", como os teólogos chamavam às práticas sexuais de gente desimpedida fora do casamento, não eram moralmente condenáveis.Além destes dois libertinos das margens do Tietê, mais quatro moradores da Capitania de São à Paulo são denunciados por emitirem opiniões contrárias à ortodoxia católica. Em 1762, na vila de Taubaté, Pascoal Pereira, solteiro, defendia que "as almas condenadas haviam de ser remidas, e sua condenação não seria eterna"(8), opinião muitas vezes ressuscitada ao longo dos dois milênios da história cristã, e que teve em Giovanni Papini (1881-1956) seu mais recente defensor. Proposição herética altamente revolucionária - não obstante estar muito mais próxima da caridade cristã do que a intransigência do preceito canônico católico oficial - pois abria espaço para os réprobos (condenados ao inferno) de no futuro se beneficiarem da misericórdia divina - relativizando destarte o medo da condenação eterna.
Em 1770, na Devassa realizada pelo incansável Visitador Padre Policarpo de Abreu Nogueira, na Freguesia de Nossa Senhora do Bonsucesso de Pindamonhangaba, saiu denunciado Pedro Antonio "negociante de negros e animais", acusado de também defender que "Jesus não deixou o 6° Manda-mento como pecado entre os solteiros, e só o deixou por São Pedro instar .:"(9)certamente alegando ter sido o Príncipe dos Apóstolos o único dos Discípulos a ter a sogra citada no Evangelho. Pelo visto, a defesa de que a "fornicação simples não era pecado" foi das proposições heréticas mais constantes não só na Península Ibérica, como também na América Latina, inclusive em São Paulo Colonia,(10) vertente heterodoxa reforçada pela generalizada e até hoje cantada opinião em verso e prosa de que "não existe pecado debaixo do Equador".
No ano seguinte, o mesmo sacerdote comunica a Lisboa que na visita à Freguesia de São João de Atibaia saiu denunciado o sitiante Francisco Camargo Pimentel, por repetir o mesmo impropério: que "o 6° Mandamento não era pecado"(11). Até na remota Itapeva, "situada junto à estrada real na vizinhança do Rio Verde, pequena vila com matriz dedicada a Sant'Ana,(12) havia leigos que ousavam interpretar a Doutrina à sua moda, em flagrante conflito com o ensinamento de Roma.
Em 1777 chega aos Estaus do Tribunal do Rossio a informação inculpando mais um paulista: constava que Manoel José, vendedor de fazendas secas, defendia que "no inferno não se padeciam tormentos e os padres diziam isto para aterrorizar, pois (o castigo) era so-mente o não ver Deus"(13). Opinião absolutamente contrária aos dogmas da Sagrada Teologia que afirmava "sofrerem os réprobos no grande lago da ira de Deus, duas sortes de castigos: a pena do dano, que consiste na privação da visita de Deus e a pena do sentido, o tormento de arder num fogo que nunca se extinguirá!"(14)
Ainda mais um paulista tem seu nome registrado nos volumosos e temidos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa, inculpado de proferir heresias relativas à moral sexual. Manoel Xavier Lacerda, "morador em Jacuí, Capitania de São Paulo", vivia amancebado com uma cunhada, e defendia que por esta causa não devia ser excomungado conforme determinavam as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (§969 e seguintes), alegando haver muitos homens amancebados com suas comadres, cunhadas e parentes, "e se Deus não houvesse de dar o céu aos homens por causa do 6° Mandamento, que guardasse o céu para palheiro, acrescentando que o 6° Manda-mento não era pecado pois se o fosse ninguém se salvaria", defendendo ainda abertamente a herética proposição de que "a fornicação simples não era pecado".(15) Êta paulistaiada petulante!

Feiticeiros, Curadores e Mandingueiros

Entre 1762-1781 chegam à Inquisição lisboeta sete denúncias contra moradores da Capitania de São Paulo envolvidos com a prática de diferentes tipos de sortilégios, sendo três curadores, três feiticeiros e um portador de uma "bolsa de mandinga" , três dos quais viviam em Guarapiranga, e os restantes em Santos, Cotia, Mogi das Cruzes e Sorocaba. Todos os protagonistas destes episódios, em sua maior parte são descendentes de africanos, e suas história permaneceram até hoje ignoradas na poeira dos arquivos inquisitoriais, e é com alegria que os resgatamos à luz do dia, fornecendo aos estudiosos das religiões afro-brasileiras informações inéditas sobre práticas divinatórias e cerimônias cabalísticas praticadas em São Paulo na segunda metade dos Setecentos.
As chamadas bolsas de mandinga ou patuás eram amuletos apreciadíssimos pelos colonos afro-luso-ameríndio-brasileiros, tendo levado às barras do Tribunal da Fé mais de uma dezena de escravos e libertos não só do Brasil, como também de Portugal(16), sendo este o motivo da realização de um Sumário de culpas na Visita Pastoral de Sorocaba no ano do Senhor de 1767. "Vi-la considerável e florescente, é ornada com uma igreja paroquial da invocação de Nossa Senhora da Ponte, um recolhimento de mulheres, um Hospício de Bentos, uma Ermida de Santo Antônio e outra dedicada a Nossa Senhora do Rosário, cuja construção os pretos continuam".(17) Famosa por sua feira de muares, em Sorocaba se concentrava buliçosa população de tropeiros, vaqueiros, tangedores e viandantes, os principais aficcionados desta devoção a um tempo sincrética e sacrílega, à qual se atribuía o poder de "fechar o corpo" contra todo tipo de perigos físicos ou malefícios diabólicos.
O acusado era conhecido tão somente pelo nome de João, Mu-lato Escravo. Ao ser agarrado pela autoridade eclesiástica, aberto o patuá que trazia no pescoço, dentro se encontrou um pedaço de sangüíneo (espécie de guardanapo utilizado na missa para limpar as derradeiras gotas do sangue de Cristo conservadas no cálice), um pedacito de corporal (toalhinha destinada a abrigar partículas do corpo de Cristo caídas no altar), além da folha de um missal com oração e gravura de Jesus, uma hóstia consagrada - que segundo declarou o réu, fora-lhe ofertada por um sacristão - "e muitas outras coisas, como raízes, dentes de cobra, etc. que por não serem da Igreja, foram queimadas".(18) Diz o documento que "o sangüíneo ainda cheirava vinho" sugerindo ter sido recentemente surrupiado da sacristia. Ao ser inquirido por que razão trazia a dita hóstia consagrada, respondeu o mulato João que "era para comungar na hora de sua morte", inspiração piedosa, porém sacrílega, posto que até poucos anos, apenas os sacerdotes tinham o privilégio de tocar no preciosíssimo corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só um estudo comparativo dos outros réus do Brasil, que por trazerem semelhantes bolsas de mandinga foram presos e processados nos cárceres secretos da Inquisição, poderá esclarecer porque este escravo de Sorocaba teve melhor sorte, sendo arquivado este Sumário sem que os Inquisidores determinassem seu aprisionamento. Aliás, salvo erro, nenhum dos residentes em São Paulo acusados pela prática de feitiçaria chegou de fato a ser encarcerado pela Inquisição, nem mesmo a perigosa bruxa Inácia, negra crioula, escrava de Manoel Pereira Camargo, residente em Cotia. infamada de ter morto a muitas pessoas graças a seus medonhos feitiços.(19)
Sobre alguns destes feiticeiros e curadores dispomos de interessantes informações sobre o modus operandi no exercício de suas artes divinatórias. Vários deles viviam sob o jugo da escravidão, como o negro José, escravo de Francisco Andrade, morador na Freguesia de Santana de Mogi das Cruzes, contra o qual é feito um Sumário onde 19 testemunhas fornecem interessantes detalhes etnográficos sobre suas mistificações(20).É acusado de "curar feitiços no Distrito a fora, adivinhando quem os botou, usando de uma panela (de barro) nova, onde colocava caveiras de caranguejos (e de outros animais) com água, e na boca mete um dedal de prata dizendo certas palavras, tendo um frango preto ao lado da panela." Uma testemunha dá outras informações: disse que as caveiras usadas por José eram de pássaros (corvos) e que durante o "trabalho"; falava palavras em sua língua nativa, desenterrando com uma faca, dentro ou fora das casas, assim como pelas encruzilhadas das estradas, misteriosas botijas ou saquinhos repletos de ossos de sapo, penas, vidros, cabelos, pimenta, agulhas e outros espantosos ingredientes. Tinha também o costume de tirar água da dita panela e aspergir com a boca pela soleira da porta, ou esguichando-a no chão quando abria os ditos buracos para desenterrar feitiços - mantendo sempre o galo preto a seu lado, do qual, certa feita, tirou três penas do rabo, com elas fazendo uma cruz quando no ato de descobrir malefícios. A um doente recomendou o uso de defumadores. Tudo leva a crer que o escravo José gozava de boa consideração por onde passava, tanto que na época em que morou na Freguesia da Sé, na cidade de São Paulo, freqüentou ilustres re-sidências, tendo tratado de Dona Antonia Pinta do Rego, e em Mogi a Maria de Cândida Siqueira, além de outros brancos e a incontáveis negros.
Enquanto este negro de Mogi das Cruzes era expert em desenterrar feitiços, na vila de Santos outro escravo é denunciado exatamente pelo contrário: por ser autor de terríveis malefícios. Chamava-se Felipe - e encontrava-se preso por ordem do Capitão do Forte da Praça de Santos, sob a acusação de ter feito um feitiço tão forte e peçonhento contra seu senhor, o qual "só tem calma mediante os exorcismos da Igreja": Provavelmente pressionado por violenta tortura, o preto Felipe confessou ter praticado os seguintes malefícios: primeiro misturou na comida de seu amo um bocadinho de pó de defunto e dente de jacaré, provocando-lhe fortes dores nas cadeiras e barriga. Em seguida, enterrou debaixo da porta de sua casa um pássaro mirrado, dois ovos de galinha e uma raiz grossa de butá (planta da família das Menispermáceas, também chamada "falso paratudo", raiz medicinal preta por fora e amarela por dentro). Disse ter feito este feitiço "para seu senhor ir mirrando, e que quando os ovos apodrecessem, também lhe apodreceriam as entranhas e que a raiz do butá era para ele conservar a vida e não morrer logo". O negro era o Cão! Disse mais, que fora o preto crioulo Manoel, então trabalhando nas minas de Mato Grosso, quem lhe ensinara tais artes cabalísticas, o qual, certa vez, chamando pelo Diabo à meia noite, em vez de apenas um, apareceram dois Demônios, entrando um no corpo do escravo Felipe e o outro se apossando de seu senhor. Fantasioso, este feiticeiro de Santos garantia que, enquanto esteve preso, uma cobra se encarregava de guardar os feitiços que enterrara na casa de seu amo. Ao ser-lhe arrancada do pescoço sua bolsa de mandinga, assim foram identificados seus ingredientes: um dedo de criança(21), lasquinhas de unha, osso de defunto, pó de sapo, raiz de mil homens (planta da família das Aristolóquias, usada como contraveneno nas picadas de cobra), unicórnio (chifre de rinoceronte). Irônico, o Capitão do For-te da Praça de Santos conclui assim sua denúncia: "Se o escravo Felipe é feiticeiro, que o Santo Ofício conclua..."(22)
Encerramos esta primeira coleção das histórias dos moradores de São Paulo denunciados ao Tribunal da Inquisição pelo crime de feitiçaria com três acusações registradas na vila de Guarapiranga (município de Ribeirão Bonito, zona do Paranapiacaba), no ano de Senhor de 1772. Diferentemente de todos os demais casos, aqui o delatado é um branco, Bento de Lima Prestello, sobrenome de origem italiana, e seu denunciante, Isidoro da Silva Costa, residente na Capela de São Miguel, no mesmo distrito. Disse que este curador viera das minas do Sabará, da freguesia de Santo Antônio da Roça Grande, e assim praticava seus ri-tuais heterodoxos: "punha na mão do enfermo umas raízes contra benignos ("doença que não apresenta caráter grave"), para saber se tinha ou não feitiços, e se a mão tremia, tinha; benzia então o enfermo dizendo: Jesus, Nome de Jesus, Deus te fez, Deus te curou, Deus acanhe a quem te acanhou. Deus te tire o mal que no teu corpo entrou: o ar de lua, ar de figueira, ar de pereira, ar de perlezia, ar de corrupto, ar de inveja, ar de feitiçaria, ar de enchaque, ar de maleitas e mais coisas que não estou ciente pelos poderes da Virgem Maria, São Pedro e São Paulo, que o corpo de Fulano fique são e salvo como na hora em que foi nascido, assim como Nosso Senhor sarou das cinco chagas. Padre-Nosso, Ave Maria". Além desta reza forte, o curador Prestello é acusado de exorcizar os endemoniados - privilégio exclusivo dos sacerdotes detentores da autorização episcopal - "fazendo adivinhações com uma grande bolsa, batendo os pés no chão como fazem os exorcistas, e com uma cruz de contas fazia cruz na cabeça da pessoa enferma que tinha espírito maligno, dizendo umas palavras incompreensíveis e também batia com a bolsa na parte dolorida do enfermo".(23)
Nesta mesma ocasião são denunciados como feiticeiros mais dois moradores da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga: o escravo identificado como João, Preto Mina, useiro em receitar remédios cabalísticos, o qual, ao ser procurado por um tal Pedro Teixeira, respondeu que "não podia curar sem falar com sua gente" - provavelmente referindo-se a seus ancestrais desencarnados, aos quais os nativos da Costa da Mina atribuem poderes preternaturais. Embora africano nato, este João de Guarapiranga já incluía em seus rituais inovações apropriadas da tradição luso-brasileira: "fez uma cruz no chão e no seu meio pôs uma pedra de sal e pingava-lhe uma pinga de cachaça, dando logo asso-bios na tal cruz, e saudava a todos com Louvado Seja Cristo! e como não entendiam os tais assobios, explicava o preto de boca".
Além de João Mina, outro feiticeiro de Guarapiranga é citado na mesma denúncia: José Gonçalves, preto forro, o qual "fazia adivinhações por diferente modo - com uma boceta (caixinha de guardar rapé) dava assobios e depois aplicava os remédios ensinados por sua gente"(24).
Por mais de dois séculos esta dezena de feiticeiros, libertinos, hereges e curadores ficaram esque-cidos na poeira dos arquivos. Ao resgatar-lhes a memória, duas foram nossas intenções: estimular outros pesquisadores a rever cuidadosamente os manuscritos ori-ginais que aqui nos contentamos em resumir, além de indicar sua localização arquivística, facilitando o trabalho de futuros estudiosos. Nossa intenção mais profunda é chamar a atenção de todos, pesquisadores e leitores, para o perigo representado pela hegemonia dos monstros sagrados - sejam os Minotauros, Chibungos, Inquisições e espectros quejandos, que à moda dos mistificadores, quiromantes e prestidigitadores do além, pretendem ser os donos de uma verdade revelada que no mais das vezes não passa de simplória alienação quando não condenável charlatanismo. Concluo a primeira parte deste ensaio fazendo minhas a palavras luminares do Dr. Antônio Gonçalves Gomide, que em 1814 publicou um corajoso opúsculo desmascarando a falsa santidade de uma beata mineira, sua contempo-rânea: "Talvez me argúiam dizendo: que te importa a piedosa fraude em que vivem satisfeitos os crédulos? Privá-los desta ilusão não é tirar-lhes um entretenimento que os consola? Respondo: A verdade é o principal elemento da vida social. A impostura aos ignorantes equivale à opressão da força sobre os mais fracos. O filósofo deve achar e promulgar a verdade.(25)

NOTAS

Agradeço ao CNPq a dotação que me permitiu realizar pesquisas na Torre do Tombo. Este artigo faz parte de um estudo mais amplo intitulado "Moralidade e Sexualidade no Brasil Colonial" e uma versão modificada foi originalmente publicada no D.0. Leitura, SP, 10 (120), maio de 1992.
1. Siqueira, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial, São Paulo, Editora Ática, 1978.
2. Wiznitzer, Arnold. Os judeus no Brasil Colonial, São Paulo, Editora Pioneira, 1966:147
3. Salvador José G. Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro. São Paulo, 1976; Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo, Livra-ria Editora Pioneira, 1969. Novinsky Ani-ta W. Inquisição. Inventários de bens confiscados a Cristãos-Novos. Lisboa, Imprensa Nacional. 1977.
4. Moraes e Silva, Antonio. Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa, Empreza Literária Fluminense, s/d.
5. Aires de Casal, Manuel. Corogratia Brasílica. (1817) São Paulo, Livraria Edi-tora Itatiaia/USP 1976: 114
6. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Inquisição de Lisboa, Caderno do Nefando n° 19, fl. 411, 20-9-1741
7. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129, Araritaguaba, 25-9-1765.
8. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 126, Taubaté, 8.6.1762.
9. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129, Pindamonhangaba, 10-12-1770.
10. Vainfas, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989.
11. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129, Atibaia, 18-2-1771.
12. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
13. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129, Itapeva, 4-10-1777
14. Guillois, Abade Ambrósio. Explicação Histórica, Dogmática, Moral, Litúrgica e Canônica do Catecismo. Porto, Livraria Internacional, 1878: 426.
15. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 131, Jacuí, 27-7-1781.
16. Mott, Luiz. ' A Vida Mística e Erótica do Escravo José Francisco Pereira. "Tempo Brasileiro, (92-93), Jan/Jun. 1988: 85-104. Souza, Laura de Mello. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
17. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
18. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129, Sorocaba, 1767
19. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 130, Denúncia do Comissário Salvador Camargo Lima, 1781.
20. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 126, Mogi das Cruzes, fl. 32, 1762
21. Mott, Luiz. "Dedo de Anjo, Osso de Defunto: Os restos mortais na feitiçaria afro-luso-brasileira. "D.O. Leitura São Paulo, 8 (90) novembro 1989: 1-3.
22. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129, Santos, 7-10-1776.
23. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129, Guarapiranga, 10-5-1772.
24. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129, Guarapiranga, 10-5-1772.
25. Gomide, Antonio Gonçalves. Impugnação analítica ao exame feito em uma rapariga que julgaram santa na capela da Piedade, Comarca de Sabará. Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1814.

Nenhum comentário:

Postar um comentário