Paulistas e Colonos de São Paulo nas Garras da Inquisição
Muito pouco se escreveu até hoje sobre a Inquisição em São
Paulo. Tema apaixonante mas pouco pesquisado, malgrado a existência de
documentação substantiva que permite-nos afirmar que este Monstrum Horribilem,
o famigerado Tribunal do Santo Ofício da Inquisição teve atuação muito mais
freqüente e repetida na Capitania de São Paulo, do que até agora os
historiadores revelaram.
Quando se fala da presença do Santo Ofício da Inquisição no
Brasil, imediatamente se pensa no Nordeste, posto ter sido a Bahia e Pernambuco
as Capitanias mais atingidas pela famigeradas Visitações de 1591 e 1618 (1).
Embora bem menos devassadas, também as Capitanias do Sul, inclusive São Paulo,
padeceram terríveis constrangimentos e perseguições por parte do incendiário
Monstro Sagrado, tanto que dos 20 moradores do Brasil a ser queimados nos Autos
de Fé de Lisboa, quando menos dois eram residentes nos planaltos de
Piratininga: Teotônio da Costa (1686) e Miguel de Mendonça Valhadolid (1731)
ambos in-culpados por praticar a Lei de Moisés. (2)
Após prolongadas pesquisas na Torre do Tombo, de Lisboa,
onde estão arquivados mais de 40 mil processos inquisitoriais e outro tanto de
denúncias e confissões pertencentes à alçada do Santo Ofício, localizamos
pessoalmente, até agora, 47 episódios envolvendo moradores da Capitania de São
Paulo - material em sua maior parte inédito e que aguarda que algum pesquisador
da terra lhe dê tratamento mais acurado e a divulgação que está por merecer.
Praticamente todos os crimes perseguidos pela Inquisição
foram praticados e denunciados em São Paulo, destacando-se 16 padres
solicitantes, oito sodomitas, sete bígamos, sete feiticeiros, três autores de
proposições heréticas, dois cristãos-novos e ainda dois episódios envolvendo
irregularidades no exercício do cargo de Familiar do Santo Oficio. Tais números
certamente estão sujeitos a acréscimos - sobretudo quanto à presença dos
criptojudeus, a minoria religiosa mais perseguida pela sanha inquisitorial - sobre
os quais o leitor interessado encontrará maiores informações notadamente nas
obras de José Gonçalves Salvador, Arnold Wiznitzer e Anita Novinsky.(3)
Dos residentes na Capitania de São Paulo cujos nomes e
desvios chegaram ao Tribunal do Santo Ofício, nos concentraremos inicialmente
nos inculpados em crimes da fé: sete acusações de feitiçaria, três denúncias de
proposições heréticas e dois casos de livres-pensadores. Numa segunda parte
deste ensaio analisaremos as histórias de vida de 16 padres residentes na
Capitania de S.Paulo envolvidos com melindroso pecado: a solicitação no
confessionário de suas penitentes para atos torpes, na época chamada de
"solicitatio ad turpia".
Deixaremos para outra ocasião o estudo dos demais desviantes
sexuais: os oito sodomitas (homossexuais masculinos) e os sete bígamos.
Os doze episódios atinentes aos chamados "crimes contra
a fé" ocorreram entre os anos de 1741 é 1781, portanto no período que
inclui a restauração da Capitania (1765) e a chegada de seu primeiro Bispo
(1764), época em que essa região, até então muito marcada pelo apresamento e
tráfico de índios, amplia sua base econômica, passando a incrementar, além da
policultura de subsistência, a florescente agroindústria açucareira e a
manufatura têxtil, as famosas redes paulistas tão disputadas pelos viajantes
coloniais. E nessa segunda metade do século XVIII que tem lugar a maior
ocupação das regiões de Atibaia, Sorocaba e Itu - exatamente as áreas mais
citadas nos medonhos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa.
Hereges e libertinos
Desses doze episódios desviantes em questão de Fé ocorridos
em São Paulo, comecemos pelo mais recuado cronologicamente - 1741 -
quando um cidadão residente na vila de Araritaguaba (hoje Porto Feliz) é
denunciado ao Santo Oficio como libertino. Eis como o dicionarista Antônio de
Moraes e Silva, ele próprio denunciado à Inquisição de Coimbra por esse mesmo
crime, definia o que era um libertino: "Indivíduo que é incrédulo na
religião e ofende as suas práticas; pessoa que sacudiu o jugo da revelação,
entendendo que a razão por si só pode guiar com certeza no que respeita a Deus,
à vida futura etc., e por isso não segue os preceitos da religião, antes,
pratica atos contrários aos seus princípios".(4)
Essa denúncia ocorreu entre os dias 20-25 de setembro de
1741, inculpando Lucas da Costa Pereira, natural do Funchal, então
morador na Freguesia de Nossa Senhora da Penha de Araritaguaba,
sita na margem esquerda do rio Tietê, a cinco léguas de Itu, célebre porto de
onde partiam as moções rumo à hinterlândia (5).O acusado era "cirurgião
aprovado" e constava ter percorrido "toda a América Meridional,
assistindo em muitas terras, aldeias e arraiais da Bahia, Rio de Janeiro e São
Paulo, entre elas Pindamonhangaba e Taubaté". Devia beirar os 50 anos quando
chegou à Inquisição de Lisboa a denúncia de que esse ci-rurgião madeirense
"come carne nos dias proibidos, não ouve missa e é acostumado a ter atos
sodomíticos, sendo agente, com vários negros boçais para cujo fim os sustenta
com largueza"(6). Um de seus denunciantes ostentava nome pomposo: Capitão
Salvador Mar-tins Bonilha, morador na mesma freguesia, que interpretou as
práticas libertinas do cirurgião andarilho como "crime de judaísmo",
acrescentando ao rol de suas culpa-s um hediondo sacrilégio muitas -vezes
atribuído aos criptojudeus: "teria metido no fogo uma imagem do Menino
Jesus!" . Zeloso, o Comissário do Santo Ofício local acondicionou num tufo
de algodão a referida imagem carbonizada e a despachou além-mar para que os
próprios delegados inquisitoriais avaliassem o sacrilégio. Solícitos em cortar
o mal pela raiz, ordenam os Inquisidores a abertura de um Sumário - ordem que
leva seis meses de viagem para chegar do Reino às margens do Tietê. Aos 20 de
agosto de 1743 tem início o inquérito secreto "em um corredor do Convento
do Carmo da Vila de Itu", desempenhando o cargo de Comissário do Santo
Ofício o Padre Miguel Dias Ferreira e como escrivão o carmelitano Frei Diogo
Antunes. Uma dezena de testemunhas confirma as acusações, insistindo, contudo,
insistem mais no crime sodomia do que no de "libertino" ratificando a
preferência do réu por negros boçais, incluindo entre seus cúmplices alguns
nativos de Angola, Congo, Benguela, além de crioulos, aos quais
"regalava-os com comida e aguardente, brindando-os ele primeiro..."
Um sodomita reinol praticante da democracia racial em pleno período
escravigista... Entre seus desvios religiosos, além dos já citados, constava
"só querer comer toucinho com couves às sextas-feiras". Sacrilégio
cabeludo para aquela época em que qualquer pecadilho levava os católicos a uma
eternidade de dias nas chamas do purgatório.
Quando do início desse Sumário, o cirurgião Lucas já tinha
se retirado de São Paulo, com destino às Minas de Goiás, tanto que somente por
volta de 1747 é que a Inquisição conseguirá finalmente agarrar o sodomita
libertino de Araritaguaba, sendo condenado primeiro à pena dos açoites, em
seguida a dez anos de degredo nas galés del-Rei.
Por conta das Visitas Pastorais realizadas no Bispado de São
Paulo - pelo Padre Policarpo de Abreu Nogueira, entre 1765-1771, diversos são
os desviantes a ter seus nomes enviados ao Tribunal da Fé de Lisboa. Entre
eles, o tropeiro Luiz Carvalho Souto, também morador na freguesia de Nossa
Senhora Mãe dos Homens de Araritaguaba, que como o cirurgião do Funchal,
mantinha acesa nessa vila a chama iluminista da "seita dos libertinos';
sendo acusado de comer carne nos dias proibidos, não se confessar conforme
ordenam os mandamentos da Santa Madre Igreja, defendendo ainda a herética proposição
de que "o sexto mandamento (não pecar contra a castidade) não era pecado e
nem levava ninguém ao inferno"(7). Centenas de colonos e moradores não só
do Reino de Portugal mas também da Espanha foram igualmente denunciados ao
Santo Ofício por defender publicamente a mesma convicção: que a
"fornicação simples", como os teólogos chamavam às práticas sexuais
de gente desimpedida fora do casamento, não eram moralmente condenáveis.Além
destes dois libertinos das margens do Tietê, mais quatro moradores da Capitania
de São à Paulo são denunciados por emitirem opiniões contrárias à ortodoxia
católica. Em 1762, na vila de Taubaté, Pascoal Pereira, solteiro, defendia que
"as almas condenadas haviam de ser remidas, e sua condenação não seria
eterna"(8), opinião muitas vezes ressuscitada ao longo dos dois milênios
da história cristã, e que teve em Giovanni Papini (1881-1956) seu mais recente
defensor. Proposição herética altamente revolucionária - não obstante estar
muito mais próxima da caridade cristã do que a intransigência do preceito
canônico católico oficial - pois abria espaço para os réprobos (condenados ao
inferno) de no futuro se beneficiarem da misericórdia divina - relativizando
destarte o medo da condenação eterna.
Em 1770, na Devassa realizada pelo incansável Visitador
Padre Policarpo de Abreu Nogueira, na Freguesia de Nossa Senhora do Bonsucesso
de Pindamonhangaba, saiu denunciado Pedro Antonio "negociante de negros e
animais", acusado de também defender que "Jesus não deixou o 6° Manda-mento
como pecado entre os solteiros, e só o deixou por São Pedro instar
.:"(9)certamente alegando ter sido o Príncipe dos Apóstolos o único dos
Discípulos a ter a sogra citada no Evangelho. Pelo visto, a defesa de que a
"fornicação simples não era pecado" foi das proposições heréticas
mais constantes não só na Península Ibérica, como também na América Latina,
inclusive em São Paulo Colonia,(10) vertente heterodoxa reforçada pela
generalizada e até hoje cantada opinião em verso e prosa de que "não
existe pecado debaixo do Equador".
No ano seguinte, o mesmo sacerdote comunica a Lisboa que na
visita à Freguesia de São João de Atibaia saiu denunciado o sitiante Francisco
Camargo Pimentel, por repetir o mesmo impropério: que "o 6° Mandamento não
era pecado"(11). Até na remota Itapeva, "situada junto à estrada real
na vizinhança do Rio Verde, pequena vila com matriz dedicada a Sant'Ana,(12)
havia leigos que ousavam interpretar a Doutrina à sua moda, em flagrante
conflito com o ensinamento de Roma.
Em 1777 chega aos Estaus do Tribunal do Rossio a informação
inculpando mais um paulista: constava que Manoel José, vendedor de fazendas
secas, defendia que "no inferno não se padeciam tormentos e os padres
diziam isto para aterrorizar, pois (o castigo) era so-mente o não ver Deus"(13).
Opinião absolutamente contrária aos dogmas da Sagrada Teologia que afirmava
"sofrerem os réprobos no grande lago da ira de Deus, duas sortes de
castigos: a pena do dano, que consiste na privação da visita de Deus e a pena
do sentido, o tormento de arder num fogo que nunca se extinguirá!"(14)
Ainda mais um paulista tem seu nome registrado nos volumosos
e temidos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa, inculpado de proferir
heresias relativas à moral sexual. Manoel Xavier Lacerda, "morador em
Jacuí, Capitania de São Paulo", vivia amancebado com uma cunhada, e
defendia que por esta causa não devia ser excomungado conforme determinavam as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (§969 e seguintes), alegando
haver muitos homens amancebados com suas comadres, cunhadas e parentes, "e
se Deus não houvesse de dar o céu aos homens por causa do 6° Mandamento, que
guardasse o céu para palheiro, acrescentando que o 6° Manda-mento não era
pecado pois se o fosse ninguém se salvaria", defendendo ainda abertamente
a herética proposição de que "a fornicação simples não era
pecado".(15) Êta paulistaiada petulante!
Feiticeiros, Curadores e Mandingueiros
Entre 1762-1781 chegam à Inquisição lisboeta sete denúncias
contra moradores da Capitania de São Paulo envolvidos com a prática de
diferentes tipos de sortilégios, sendo três curadores, três feiticeiros e um
portador de uma "bolsa de mandinga" , três dos quais viviam em
Guarapiranga, e os restantes em Santos, Cotia, Mogi das Cruzes e Sorocaba.
Todos os protagonistas destes episódios, em sua maior parte são descendentes de
africanos, e suas história permaneceram até hoje ignoradas na poeira dos
arquivos inquisitoriais, e é com alegria que os resgatamos à luz do dia,
fornecendo aos estudiosos das religiões afro-brasileiras informações inéditas
sobre práticas divinatórias e cerimônias cabalísticas praticadas em São Paulo
na segunda metade dos Setecentos.
As chamadas bolsas de mandinga ou patuás eram amuletos
apreciadíssimos pelos colonos afro-luso-ameríndio-brasileiros, tendo levado às
barras do Tribunal da Fé mais de uma dezena de escravos e libertos não só do
Brasil, como também de Portugal(16), sendo este o motivo da realização de um
Sumário de culpas na Visita Pastoral de Sorocaba no ano do Senhor de 1767.
"Vi-la considerável e florescente, é ornada com uma igreja paroquial da
invocação de Nossa Senhora da Ponte, um recolhimento de mulheres, um Hospício
de Bentos, uma Ermida de Santo Antônio e outra dedicada a Nossa Senhora do
Rosário, cuja construção os pretos continuam".(17) Famosa por sua feira de
muares, em Sorocaba se concentrava buliçosa população de tropeiros, vaqueiros,
tangedores e viandantes, os principais aficcionados desta devoção a um tempo
sincrética e sacrílega, à qual se atribuía o poder de "fechar o corpo"
contra todo tipo de perigos físicos ou malefícios diabólicos.
O acusado era conhecido tão somente pelo nome de João,
Mu-lato Escravo. Ao ser agarrado pela autoridade eclesiástica, aberto o patuá
que trazia no pescoço, dentro se encontrou um pedaço de sangüíneo (espécie de
guardanapo utilizado na missa para limpar as derradeiras gotas do sangue de
Cristo conservadas no cálice), um pedacito de corporal (toalhinha destinada a
abrigar partículas do corpo de Cristo caídas no altar), além da folha de um missal
com oração e gravura de Jesus, uma hóstia consagrada - que segundo declarou o
réu, fora-lhe ofertada por um sacristão - "e muitas outras coisas, como
raízes, dentes de cobra, etc. que por não serem da Igreja, foram
queimadas".(18) Diz o documento que "o sangüíneo ainda cheirava
vinho" sugerindo ter sido recentemente surrupiado da sacristia. Ao ser
inquirido por que razão trazia a dita hóstia consagrada, respondeu o mulato
João que "era para comungar na hora de sua morte", inspiração piedosa,
porém sacrílega, posto que até poucos anos, apenas os sacerdotes tinham o
privilégio de tocar no preciosíssimo corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só um
estudo comparativo dos outros réus do Brasil, que por trazerem semelhantes
bolsas de mandinga foram presos e processados nos cárceres secretos da
Inquisição, poderá esclarecer porque este escravo de Sorocaba teve melhor
sorte, sendo arquivado este Sumário sem que os Inquisidores determinassem seu
aprisionamento. Aliás, salvo erro, nenhum dos residentes em São Paulo acusados
pela prática de feitiçaria chegou de fato a ser encarcerado pela Inquisição,
nem mesmo a perigosa bruxa Inácia, negra crioula, escrava de Manoel Pereira
Camargo, residente em Cotia. infamada de ter morto a muitas pessoas graças a
seus medonhos feitiços.(19)
Sobre alguns destes feiticeiros e curadores dispomos de
interessantes informações sobre o modus operandi no exercício de suas artes
divinatórias. Vários deles viviam sob o jugo da escravidão, como o negro José,
escravo de Francisco Andrade, morador na Freguesia de Santana de Mogi das
Cruzes, contra o qual é feito um Sumário onde 19 testemunhas fornecem
interessantes detalhes etnográficos sobre suas mistificações(20).É acusado de
"curar feitiços no Distrito a fora, adivinhando quem os botou, usando de
uma panela (de barro) nova, onde colocava caveiras de caranguejos (e de outros
animais) com água, e na boca mete um dedal de prata dizendo certas palavras,
tendo um frango preto ao lado da panela." Uma testemunha dá outras
informações: disse que as caveiras usadas por José eram de pássaros (corvos) e
que durante o "trabalho"; falava palavras em sua língua nativa,
desenterrando com uma faca, dentro ou fora das casas, assim como pelas
encruzilhadas das estradas, misteriosas botijas ou saquinhos repletos de ossos
de sapo, penas, vidros, cabelos, pimenta, agulhas e outros espantosos
ingredientes. Tinha também o costume de tirar água da dita panela e aspergir
com a boca pela soleira da porta, ou esguichando-a no chão quando abria os
ditos buracos para desenterrar feitiços - mantendo sempre o galo preto a seu
lado, do qual, certa feita, tirou três penas do rabo, com elas fazendo uma cruz
quando no ato de descobrir malefícios. A um doente recomendou o uso de
defumadores. Tudo leva a crer que o escravo José gozava de boa consideração por
onde passava, tanto que na época em que morou na Freguesia da Sé, na cidade de
São Paulo, freqüentou ilustres re-sidências, tendo tratado de Dona Antonia
Pinta do Rego, e em Mogi a Maria de Cândida Siqueira, além de outros brancos e a
incontáveis negros.
Enquanto este negro de Mogi das Cruzes era expert em
desenterrar feitiços, na vila de Santos outro escravo é denunciado exatamente
pelo contrário: por ser autor de terríveis malefícios. Chamava-se Felipe - e
encontrava-se preso por ordem do Capitão do Forte da Praça de Santos, sob a
acusação de ter feito um feitiço tão forte e peçonhento contra seu senhor, o
qual "só tem calma mediante os exorcismos da Igreja": Provavelmente
pressionado por violenta tortura, o preto Felipe confessou ter praticado os
seguintes malefícios: primeiro misturou na comida de seu amo um bocadinho de pó
de defunto e dente de jacaré, provocando-lhe fortes dores nas cadeiras e
barriga. Em seguida, enterrou debaixo da porta de sua casa um pássaro mirrado,
dois ovos de galinha e uma raiz grossa de butá (planta da família das
Menispermáceas, também chamada "falso paratudo", raiz medicinal preta
por fora e amarela por dentro). Disse ter feito este feitiço "para seu
senhor ir mirrando, e que quando os ovos apodrecessem, também lhe apodreceriam
as entranhas e que a raiz do butá era para ele conservar a vida e não morrer
logo". O negro era o Cão! Disse mais, que fora o preto crioulo Manoel,
então trabalhando nas minas de Mato Grosso, quem lhe ensinara tais artes cabalísticas,
o qual, certa vez, chamando pelo Diabo à meia noite, em vez de apenas um,
apareceram dois Demônios, entrando um no corpo do escravo Felipe e o outro se
apossando de seu senhor. Fantasioso, este feiticeiro de Santos garantia que,
enquanto esteve preso, uma cobra se encarregava de guardar os feitiços que
enterrara na casa de seu amo. Ao ser-lhe arrancada do pescoço sua bolsa de
mandinga, assim foram identificados seus ingredientes: um dedo de criança(21),
lasquinhas de unha, osso de defunto, pó de sapo, raiz de mil homens (planta da
família das Aristolóquias, usada como contraveneno nas picadas de cobra),
unicórnio (chifre de rinoceronte). Irônico, o Capitão do For-te da Praça de
Santos conclui assim sua denúncia: "Se o escravo Felipe é feiticeiro, que
o Santo Ofício conclua..."(22)
Encerramos esta primeira coleção das histórias dos moradores
de São Paulo denunciados ao Tribunal da Inquisição pelo crime de feitiçaria com
três acusações registradas na vila de Guarapiranga (município de Ribeirão
Bonito, zona do Paranapiacaba), no ano de Senhor de 1772. Diferentemente de
todos os demais casos, aqui o delatado é um branco, Bento de Lima Prestello,
sobrenome de origem italiana, e seu denunciante, Isidoro da Silva Costa,
residente na Capela de São Miguel, no mesmo distrito. Disse que este curador
viera das minas do Sabará, da freguesia de Santo Antônio da Roça Grande, e
assim praticava seus ri-tuais heterodoxos: "punha na mão do enfermo umas
raízes contra benignos ("doença que não apresenta caráter grave"),
para saber se tinha ou não feitiços, e se a mão tremia, tinha; benzia então o
enfermo dizendo: Jesus, Nome de Jesus, Deus te fez, Deus te curou, Deus acanhe
a quem te acanhou. Deus te tire o mal que no teu corpo entrou: o ar de lua, ar
de figueira, ar de pereira, ar de perlezia, ar de corrupto, ar de inveja, ar de
feitiçaria, ar de enchaque, ar de maleitas e mais coisas que não estou ciente
pelos poderes da Virgem Maria, São Pedro e São Paulo, que o corpo de Fulano
fique são e salvo como na hora em que foi nascido, assim como Nosso Senhor
sarou das cinco chagas. Padre-Nosso, Ave Maria". Além desta reza forte, o
curador Prestello é acusado de exorcizar os endemoniados - privilégio exclusivo
dos sacerdotes detentores da autorização episcopal - "fazendo adivinhações
com uma grande bolsa, batendo os pés no chão como fazem os exorcistas, e com
uma cruz de contas fazia cruz na cabeça da pessoa enferma que tinha espírito
maligno, dizendo umas palavras incompreensíveis e também batia com a bolsa na
parte dolorida do enfermo".(23)
Nesta mesma ocasião são denunciados como feiticeiros mais
dois moradores da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga: o
escravo identificado como João, Preto Mina, useiro em receitar remédios
cabalísticos, o qual, ao ser procurado por um tal Pedro Teixeira, respondeu que
"não podia curar sem falar com sua gente" - provavelmente
referindo-se a seus ancestrais desencarnados, aos quais os nativos da Costa da
Mina atribuem poderes preternaturais. Embora africano nato, este João de
Guarapiranga já incluía em seus rituais inovações apropriadas da tradição
luso-brasileira: "fez uma cruz no chão e no seu meio pôs uma pedra de sal
e pingava-lhe uma pinga de cachaça, dando logo asso-bios na tal cruz, e saudava
a todos com Louvado Seja Cristo! e como não entendiam os tais assobios,
explicava o preto de boca".
Além de João Mina, outro feiticeiro de Guarapiranga é citado
na mesma denúncia: José Gonçalves, preto forro, o qual "fazia adivinhações
por diferente modo - com uma boceta (caixinha de guardar rapé) dava assobios e
depois aplicava os remédios ensinados por sua gente"(24).
Por mais de dois séculos esta dezena de feiticeiros,
libertinos, hereges e curadores ficaram esque-cidos na poeira dos arquivos. Ao
resgatar-lhes a memória, duas foram nossas intenções: estimular outros
pesquisadores a rever cuidadosamente os manuscritos ori-ginais que aqui nos
contentamos em resumir, além de indicar sua localização arquivística,
facilitando o trabalho de futuros estudiosos. Nossa intenção mais profunda é
chamar a atenção de todos, pesquisadores e leitores, para o perigo representado
pela hegemonia dos monstros sagrados - sejam os Minotauros, Chibungos,
Inquisições e espectros quejandos, que à moda dos mistificadores, quiromantes e
prestidigitadores do além, pretendem ser os donos de uma verdade revelada que
no mais das vezes não passa de simplória alienação quando não condenável
charlatanismo. Concluo a primeira parte deste ensaio fazendo minhas a palavras
luminares do Dr. Antônio Gonçalves Gomide, que em 1814 publicou um corajoso
opúsculo desmascarando a falsa santidade de uma beata mineira, sua
contempo-rânea: "Talvez me argúiam dizendo: que te importa a piedosa
fraude em que vivem satisfeitos os crédulos? Privá-los desta ilusão não é
tirar-lhes um entretenimento que os consola? Respondo: A verdade é o principal
elemento da vida social. A impostura aos ignorantes equivale à opressão da
força sobre os mais fracos. O filósofo deve achar e promulgar a verdade.(25)
NOTAS
Agradeço ao CNPq a dotação que me permitiu realizar
pesquisas na Torre do Tombo. Este artigo faz parte de um estudo mais amplo
intitulado "Moralidade e Sexualidade no Brasil Colonial" e uma versão
modificada foi originalmente publicada no D.0. Leitura, SP, 10 (120), maio de
1992.
1. Siqueira, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade
Colonial, São Paulo, Editora Ática, 1978.
2. Wiznitzer, Arnold. Os judeus no Brasil Colonial, São
Paulo, Editora Pioneira, 1966:147
3. Salvador José G. Os Cristãos-Novos: Povoamento e
Conquista do Solo Brasileiro. São Paulo, 1976; Cristãos-Novos, Jesuítas e
Inquisição. São Paulo, Livra-ria Editora Pioneira, 1969. Novinsky Ani-ta W.
Inquisição. Inventários de bens confiscados a Cristãos-Novos. Lisboa, Imprensa
Nacional. 1977.
4. Moraes e Silva, Antonio. Dicionário da Língua Portuguesa.
Lisboa, Empreza Literária Fluminense, s/d.
5. Aires de Casal, Manuel. Corogratia Brasílica. (1817) São
Paulo, Livraria Edi-tora Itatiaia/USP 1976: 114
6. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT),
Inquisição de Lisboa, Caderno do Nefando n° 19, fl. 411, 20-9-1741
7. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129,
Araritaguaba, 25-9-1765.
8. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 126,
Taubaté, 8.6.1762.
9. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129,
Pindamonhangaba, 10-12-1770.
10. Vainfas, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro,
Editora Campus, 1989.
11. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129,
Atibaia, 18-2-1771.
12. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
13. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129,
Itapeva, 4-10-1777
14. Guillois, Abade Ambrósio. Explicação Histórica,
Dogmática, Moral, Litúrgica e Canônica do Catecismo. Porto, Livraria
Internacional, 1878: 426.
15. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 131,
Jacuí, 27-7-1781.
16. Mott, Luiz. ' A Vida Mística e Erótica do Escravo José
Francisco Pereira. "Tempo Brasileiro, (92-93), Jan/Jun. 1988: 85-104. Souza, Laura de Mello. O
Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
17. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
18. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129,
Sorocaba, 1767
19. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 130,
Denúncia do Comissário Salvador Camargo Lima, 1781.
20. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 126,
Mogi das Cruzes, fl. 32, 1762
21. Mott, Luiz. "Dedo de Anjo, Osso de Defunto: Os
restos mortais na feitiçaria afro-luso-brasileira. "D.O. Leitura São
Paulo, 8 (90) novembro 1989: 1-3.
22. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129,
Santos, 7-10-1776.
23. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129,
Guarapiranga, 10-5-1772.
24. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 129,
Guarapiranga, 10-5-1772.
25. Gomide, Antonio Gonçalves. Impugnação analítica ao exame
feito em uma rapariga que julgaram santa na capela da Piedade, Comarca de
Sabará. Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1814.
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