segunda-feira, 4 de setembro de 2017

ITU E ARARITAGUABA NA ROTA DAS MONÇÕES



ITU E ARARITAGUABA NA ROTA DAS MONÇÕES (1718-1838) (*)

Resumo:
Em 1.718 foram descobertas as primeiras minas de ouro na região Centro-Oeste
da colônia. A difusão da notícia fez com que inúmeras pessoas para lá se dirigissem. Ao mesmo tempo em que a descoberta das minas ampliou os horizontes dos que se lançaram à busca do precioso metal, também ocasionou alguns problemas, sobretudo o abastecimento dos que para elas se dirigiram. Não tardou para que esse novo mercado colonial fosse o mote para o início das longas expedições denominadas Monções. As monções eram expedições fluviais povoadoras e comerciais que partiam de Araritaguaba, uma freguesia de Itu, navegando pelo Tietê e pela rede de afluentes do Paraná e do Paraguai até ao Cuiabá. Atravessar tal percurso requeria uma base de apoio crucial para as expedições. Por sua localização geográfica, Itu, onde estava localizado o porto de embarque, propiciou as bases necessárias para a partida das expedições. Este trabalho analisa a participação de Itu na rota das Monções, quer fornecendo mantimentos para os viajantes, quer através da construção de canoas, remos e, ainda, propiciando a mão-de-obra necessária para as expedições. Assim, é possível perceber o efeito dinamizador das minas de Cuiabá sobre a vila de Itu, apontando para um panorama além das tradicionais imagens de despovoamento, estagnação e decadência da capitania paulista durante o século XVIII, ainda que não se desconsidere a existência de uma efetiva migração de paulistas. Para realizar este trabalho, recorro a um conjunto de fontes variado, composto por inventários, post-mortem, testamentos, relatos de viagem, processos judiciais e ordenanças. Palavras chaves: Monções, mercado interno, alimentos, fronteiras.

Abastecendo as Frotas


A relação da capitania de São Paulo com as minas de ouro constitui-se assunto
controverso na historiografia. Diversas imagens foram elaboradas e cristalizadas para a capitania de São Paulo após a descoberta do ouro – de despovoamento, decadência e abastecedora das regiões mineiras (1).Para alguns autores, como Paulo Prado, o despovoamento da capitania levou a uma tal situação de decadência que só seria superada com o advento do café. Em seus estudos, o autor traça para a história de São Paulo uma linha em que perpassa três períodos distintos: grandeza, decadência e regeneração. O primeiro deles, o da grandeza, abrange desde os primórdios da colonização - o período dos bandeirantes até o advento da mineração no final do século XVII; o segundo é resultante do despovoamento provocado pelas conquistas territoriais e pela descoberta das minas empreendidas pelos paulistas; o terceiro momento, o da regeneração, é o derenascimento econômico com o café (2). Para o historiador Alfredo Ellis Júnior, a descoberta do ouro nas Minas Gerais ocasionou uma migração em massa dos paulistas, de efeito catastrófico e maléfico, na medida em que os que partiam eram os melhores da terra. Arrancados do solo paulista seus mais eugênicos elementos, o resultado foi a decadência do planalto no século XVIII. Com a descoberta de jazidas em Mato Grosso e Goiás novamente se repetiu o fenômeno migratório. Desse modo, na opinião do autor, para São Paulo, Parnaíba, Itu, Sorocaba, Araritaguaba (Porto Feliz), Jundiaí, Atibaia, Moji das Cruzes e Guarulhos, o século XVIII representou um século de sono, “o sono letárgico dos catalépticos”(3). Maria Luiza Marcílio foi uma das primeiras estudiosas a chamar a atenção para a necessidade de análises que abarcassem o século XVIII, justamente o período da mineração. A seu ver, “as bases do sucesso da economia do café dos séculos XIX e XX precisavam ser buscadas no século XVIII e inícios do XIX” (4). Com a descoberta das minas de ouro na região Centro-Oeste da colônia e o início da rota das monções, Itu e Araritaguaba (Porto Feliz) passaram estar diretamente vinculadas ao caminho fluvial. O comércio das monções perdurou ao longo de quase todo o século XVIII e inícios da centúria seguinte. Acreditamos que analisar uma região que esteve atrelada à região das minas se faz importante para enfatizar outros aspectos da história colonial paulista.Por volta da metade do século XVII, a vila de Itu tornou-se um ponto estratégico para o apresamento de mão de obra indígena no sertão. Devido a isto, na virada do século XVII para o XVIII, Itu era uma vila com certa estrutura produtiva implantada. Um dos indicativos desta estrutura pode ser constatado na Relação das quantias oferecidas pelos moradores do bairro de Araritaguaba e demais bairros de Itu, atinente ao ano de 1.728, onde consta as taxas que os moradores pagavam de impostos, conforme o número de cativos que possuíam. Infelizmente, a Relação não informa que tipo de cativo, se indígena ou africano. Mas há indícios que boa parte deles eram indígenas.
A propósito, Joseph Barbosa de Sá, em sua narrativa sobre as monções do século XVIII, menciona a venda de índios Bororó e Pareci como escravos por volta de 1.728(5). Pouco tempo depois, em 1.732, o coronel João de Melo Rego, indagando ao governador da capitania a respeito de um registro em Araritaguaba, queria saber se “os bugres bororós e todo o gentio das vargens fora os índios Parecizes”, trazidos nas expedições monçoeiras, deveriam ser quintados em Araritaguaba (6). Considerando possíveis omissões de escravos na Relação, uma vez que a sobre eles incidiam impostos, trata-se de números expressivos. Em 1676, Parnaíba e São Paulo possuíam 3.000 e 15.000 índios, respectivamente (7). Portanto, quando se tem o início das monções, a vila teve como desenvolver as potencialidades econômicas que a ocasião ensejava. Evidente que à descoberta das minas se seguiu uma migração de moradores de Itu para regiões auríferas. Aos 12 de janeiro de 1.734, o capitão mor da vila de Itu, João de Mello Rego, informava ao capitão general da capitania que não havia remetido a nomeação dos capitães mores da vila porque precisava “saber com certeza os que [pretendiam] ausentar-se [da] vila para as Minas”. Informava ainda que talvez não houvesse gente suficiente para integrar as Companhias de Ordenanças “por haverem despejado muita gente” para aquela região (8). Mas se houve quem migrou em busca de ouro, outros optaram por aproveitar as oportunidades daquele momento na própria vila, dentre as quais estava o fornecimento de mantimentos aos que para ela se dirigiam. As viagens até Cuiabá eram demasiadamente longas,duravam quase cinco meses. Além dos temores de ataques indígenas, outra grande preocupação era com a alimentação durante o trajeto. Nos relatos de viajantes coevos, observa-se que os frutos obtidos mediante caça, pesca e coleta durante o trajeto não eram suficientes para o abastecimento das expedições. Na realidade o “panem nostrum quotidianum” dos monçõeiros era composto de feijão, toucinho, farinha de milho e, menos freqüentemente, de mandioca (9). Ao referir-se aos infortúnios que as expedições poderiam sofrer no caminho á Cuiabá, Gervásio Rebello relata que a perda de mantimentos era mais prejudicial que a de escravos, tanto mais se quer antes perder um negro, sendo estes tão necessários, que um alqueire de mantimento, feijão ou farinha. Exageros à parte, o fato é que o suprimento alimentar era primordial para a realização das monções. Por isso agricultores de Itu e Araritaguaba procuraram abastecer este nicho de mercado. Passados cem anos do início das primeiras monções, o capitão-mor de Porto Feliz, antiga freguesia Araritaguaba, referindo-se às expedições informou: “o que era aqui costume aprontar é feijão, farinha de milho, toucinho, carne de porco, farinha de mandioca, aguardente da terra” (1). Nas palavras de Saint- Hilaire, partia-se do Porto de embarque “ levando a quantidade de farinha de milho necessária para a viagem até [a fazenda] Camapoã ”, localizada no meio do trajeto, quando a tropa fazia nova aquisição de mantimentos, consertava-se canoas etc.(11). Para facilitar o sucesso das monções, a Coroa inclusive isentava de imposto os gêneros básicos consumidos na viagem (feijão, milho, e farinha) (12). Em suma, para a realização das expedições, era imprescindível o alimento fornecido por Itu e Araritaguaba. Tal era a importância que o conde de Azambuja, quando chegou em Araritaguaba, em 24 de maio de 1.751, teve que esperar mais de dois meses para partir para Cuiabá. Os preparativos para sua viagem, a cargo do Juiz de Fora da vila, Theotonio de Silva Gusmão, estavam adiantados, mas o conde não pôde seguir viagem imediatamente, pois foi preciso aguardar que “crescesse o milho e feijão, e se fizessem as farinhas e toucinhos”. Afinal, era preciso fornecer mantimentos a 190 homens. Em cinco de agosto de 1.751, quando finalmente partiu a frota para as Minas do Cuiabá, as 23 canoas da expedição saíram com “noventa sacos de mantimentos”(13). Uma outra fonte informa que a comitiva do Conde Azambuja embarcou com nada menos de 1.130 sacos de mantimentos (14). Dentre os que ficaram em Itu/Araritaguaba, em 1.728, algumas pessoas como Manuel de Araújo Beltrão, José Correia da Fonseca e Manuel Gomes da Costa solicitaram sesmarias com o objetivo de atender o mercado das rotas que iam às minas. Manuel Gomes da Costa requereu uma légua de sesmaria, alegando que queria “povoar e fazer um sítio no caminho do sertão das minas dos Goiás, onde pudesse fazer suas plantas para cômodo dos mineiros e aumento dos dízimos reais”. Neste mesmo ano, El Rei confirmou uma doação de sesmaria ao ituano Felipe Cardoso, visto que o suplicante “se achava com possibilidade de povoar terras e tinha feito à sua custa o caminho de Piracicaba até a vila de Itu, e socorrido gratuitamente com mantimentos aos que se exercitavam no caminho do Rio Grande”(15). Certamente, a concessão de sesmarias não quer dizer a ocupação efetiva da terra, mas não cremos que seja o caso de Manuel de Araújo Beltrão, José Correia da Fonseca, Manuel Gomes da Costa, Felipe Cardoso e João de Araújo Cabral, pelo menos. Estes homens devem ser os mesmos proprietários de escravos da Relação das quantias oferecidas pelos moradores do bairro de Araritaguaba e demais bairros de Itu, atinente ao ano de 1.728 (aliás, o mesmo ano da concessão das sesmarias), os quais possuíam sete, quatro, seis e dezesseis escravos, respectivamente (16). É muito pouco provável que Felipe Cardoso tenha fornecido mantimentos gratuitamente aos que transitavam pela sua propriedade. Seu argumento indica, antes, uma retórica para obter a sesmaria. Em 1.727, ao comentar sobre aqueles que tinham roças no trajeto para as minas, João Antônio Cabral Camello foi enfático: “vendem como querem”(17). Em 1.726, na Barra do Rio Coxim, em sua viagem rumo ao Cuiabá, o capitão general de São Paulo, Rodrigo César de Menezes, desembolsou 250 oitavas de ouro para adquirir mantimentos na roça de propriedade do ituano João de Araújo Cabral, que estabelecera sítio naquela localidade, justamente com o propósito de prover de mantimentos aqueles que rumavam para minas. Aliás, a expedição de Rodrigo César de Menezes, cujo propósito era a fundação da vila de Bom Jesus de Cuiabá, saiu de Araritaguaba com 308 canoas. Quando atingiu o destino final, Rodrigo Menezes mencionou que haviam chegado com vida 3.000 pessoas (18). Na ocasião, o capitão general adquiriu, em Itu e Araritaguaba, feijão, milho, farinha, açúcar, capados, peixe seco, barris para acondicionar açúcar e grãos, frasqueiras para aguardente, fumo “para os negros”, encerado para cobrir as canoas e chumbo. Com a compra de 23 canoas foram desembolsados 1:240$000 e com o pagamento da mão de obra de pilotos despendeu-se 639$000 (19). Há que se ressaltar que esses gastos são atinentes apenas à comitiva de Rodrigo César de Menezes. Desse modo, os exemplos de Manuel de Araújo Beltrão, José Correia da Fonseca, Manuel Gomes da Costa, Felipe Cardoso, João de Araújo Cabral e outros, conforme os relatos de Viajantes coevos, demonstram que certas pessoas optaram pelo estabelecimento no caminho das minas do Cuiabá e Goiás com vistas a abastecer os que a elas se dirigiam. O movimento em torno do Porto Geral em Araritaguaba, também denominado Porto dos Cuiabanos, deveria ser intenso em certas épocas do ano. Aliás, o desenvolvimento de Araritaguaba esteve estritamente relacionado ao seu porto. Em 1.734, o Provedor-Mor João de Mello Rego, correspondendo-se com o Conde de Sarzedas, informou que:  “(...) o bairro de Araritaguaba [estava] sem capitão e sem alferes, sendo mui necessários naquele distrito por ser Porto Geral das Minas do Cuiabá” (20). Em 1.720, em Araritaguaba, “foi erigida uma capela dedicada a Nossa Senhora da Penha” e em 1.728, a capela foi elevada à freguesia. Em 1.747, a capela era pequena demais para “reunir os moradores, cujo número aumentava de ano para ano”. Por isso, erigiu-se uma nova capela, cuja construção terminou em 1.750. Em 1.797,  “atendendo a uma representação de seus moradores”, a freguesia de Araritaguaba foi elevada à categoria de vila recebendo o nome de Vila de Porto Feliz. Dentre outros motivos, os moradores desejavam que a freguesia tivesse o estatuto de vila“(...) não só pelo fundamento de haver nela três mil e seis pessoas de confissão (...) mas também por ser um Porto freqüentado de Comerciantes de minas de Cuiabá, e Mato Grosso, e de diferentes expedições de Sua Majestade para os vastos sertões que decorrem da mesma freguesia até a fronteira da cidade de Paraguai da América Espanhola, tendo por isso toda a capacidade, e disposição para vir a ser em poucos anos uma das vila opulentas desta Capitania” (21). Pelo fato de as expedições fluviais rumo ao Cuiabá partirem de Araritaguaba, bem como pelo de as expedições terrestres passarem por Itu/Araritaguaba, estimulou-se a proliferação de sítios voltados ao abastecimento das expedições. No mapa elaborado por Theotônio Juzarte e em suas próprias palavras nas proximidades do Armazém Real e Porto Geral, o rio Tietê “é de um e outro lado acompanhado de sítios”. Mais precisamente, havia 57 propriedades, ou seja, significa 57 sítios nas proximidades do porto. Provavelmente, seus moradores estavam ali pelas possibilidades econômicas que a localidade oferecia. Infelizmente, o cronista não fornece muitos dados sobre esses moradores, de forma que podemos apenas fazer algumas conjecturas sobre eles. Dentre os moradores daqueles sítios, sete atuavam como pilotos na rota das monções: Antônio Cardoso Pimentel, Miguel Oliveira, João Pinheiro, João Gonçalves, João Gonçalves Vieira, João Pedroso Oliveira e João Portes de Almeida. Os quatro últimos mencionados conjugavam o ofício de piloto com as fainas agrícolas, como indica o cruzamento dos nomes fornecidos por Juzarte com os das listas nominativas. Outra localidade também estritamente vinculada às monções era o Bairro Potunduva. Em 1.769, Juzarte referiu-se ao local como “rancho de Potunduva” (22). Por sua vez, Alfredo Taunay informou que  “(...) todos os moradores viviam do tráfego das monções. Era como se ali existisse algumas famílias de caboclos cujos homens se empregavam como proeiros, remeiros e varejistas dos canoões das flotilhas a trafegarem entre Porto Feliz e Cuiabá. Após alguns dias de penosa navegação a jusante da velha Araritaguaba, vencendo corredeiras e itaipavas, descansavam as monções, geralmente, um dia em Potunduva” (23). Não por acaso, Juzarte denominou aquele local de “rancho”. Chegou lá no dia 20 de abril, depois de sete dias “de penosa navegação” a partir do Porto Geral de Araritaguaba. Através da documentação é possível perceber que alguns moradores de Itu e Araritaguaba, além de conexões comerciais com a região das minas no centro-oeste, eram também plantadores de mantimentos, e, mais do que isso, perseguindo a trajetória de seus descendentes alguns vieram a tornar-se grandes senhores de engenho. O alferes Antônio Soares da Costa, que dizia “viver de negociar em Goiás”, era um desses que aliava negócios e a atividade agrária. Além de uma tropa composta por 30 bestas e cavalos, possuía um sítio adquirido através de carta de sesmaria, onde, no ano de 1.776, colheu com o trabalho de seus 32 escravos, 1.000 alqueires de milho e 100 de feijão. Produzia açúcar e aguardente, mas “pouca”. Fora isso, tinha 20 cabeças de gado, oito bezerros, 20 porcos e 10 leitões, duas moradas de casas, uma na vila de Itu e outra na freguesia de Araritaguaba. O número de escravos, a quantidade de porcos que possuía e o volume de sua produção nos levam a crer que Antônio Soares da Costa negociava mantimentos para Goiás. Além disso, o fato de possuir uma morada de casas na freguesia de Araritaguaba pode ser indicativo também de um envolvimento com o comércio monçoeiro, já que era na freguesia que estava o porto dos cuiabanos. A produção obtida por Antônio Soares da Costa o colocava como um dos três dos maiores plantadores de milho de Araritaguaba, juntamente com Domingos da Rocha Abreu e Luis Araújo Coura, que atuavam na rota das monções. Em ano impreciso, mas certamente na primeira metade do século XVIII, Domingos da Rocha Abreu se transferiu da povoação de São Martinho de Outeiro, Arcebispado de Braga, para São Paulo, onde se casou com Dona Francisca Cardoso de Siqueira, “moça de distinta família”. Posteriormente, estabeleceu-se na freguesia de Araritaguaba, aonde veio a falecer no ano de 1.784. Além de ter tido muito respeito junto à comunidade em que vivia, “homem de conhecida verdade”, como se verifica no testamento do negociante Manuel Antônio Amorim, de quem, aliás,foi testamenteiro, Domingos levou uma vida abastada na freguesia. Nas listas nominativas de 1.767, informa-se que ele vivia de “negócio mercantil” e possuía 6000 cruzados (2:4000$000) em bens, estando entre os cinco mais abastados da freguesia de Araritaguaba. De seu consórcio com Dona Francisca nasceram dez filhos. O mais velho, Manoel Cardoso de Abreu, em 1.765, então com quinze anos, iniciou suas viagens ao Cuiabá para auxiliar o pai nos negócios, o que fez até o ano de 1.773, tal como relata em sua crônica, redigida dez anos depois. Ainda em 1.776, Manoel fora destacado para a Colônia do Iguatemi (24). Dentre os outros filhos de Manoel da Rocha Abreu, havia Alexandre, que também adentrou a rota das monções, pois em 1.767 estava junto com seu irmão Manoel em viagem ao Cuiabá. A filha Ana Joaquina se casou com José Antônio Peixoto e morou em Cuiabá. Outras filhas eram Maria Madalena da Rocha, Luiza da Rocha, e, finalmente, Ana Francisca da Rocha  (25). Talvez os cabedais de Domingos da Rocha Abreu o tivessem possibilitado casar bem suas filhas. Luiza da Rocha casou-se com o alferes Guilherme da Silva Claro, que por algum tempo atuou na Colônia do Iguatemi. Maria Madalena uniu-se em matrimônio a Francisco Simões dos Reis, que em 1.798 estava formando seu engenho, e produziu 200 arrobas de açúcar, além de possuir 17 escravos. Ana Francisca, em 1.782, consorciou-se com o senhor de engenho Francisco Correia de Moraes Leite, que foi capitão-mor da vila de Porto Feliz durante vinte e três anos, entre 1.797 e 1.820. No ano de 1.798, Francisco Correia de Moraes Leite exportou 1000 arrobas de açúcar através do Porto de Santos, e em 1.818, com os seus 46 escravos, produziu 3000 arrobas de açúcar, 600 alqueires de milho, 150 de feijão e 40 de arroz. Essa produção o colocava como o segundo maior produtor de açúcar da Vila. Em 1.824, Francisco Correia de Moraes Leite de posse de seus 65 escravos produziu 1600 arrobas de açúcar, 1000 alqueires de milho, 150 de feijão e 40 de arroz. Um dos filhos de Ana e Francisco foi o brigadeiro Joaquim José de Moraes Abreu, que ocupou os cargos de membro do Conselho da Província, vereador da Câmara Municipal de São Paulo, deputado provincial e vice-presidente da Província de São Paulo. Nas listas nominativas de 1.767, Domingos Rocha Abreu foi descrito como vivendo de negócio mercantil, em 1.769 vendeu pregos, fios de sapateiro, barbantes e agulhas para a costura de barracas para canoas que iam para a Colônia do Iguatemi . Mas nas listas de 1.776, já viúvo, era tesoureiro e agricultor. Neste ano, havia colhido em seu sítio 700 alqueires de milho e 60 de feijão. Faziam parte do seu patrimônio quatro cabeças de gado, 12 bezerros, 16 porcos, oito leitões, dois cavalos, 25 escravos e uma morada de casas. É muito difícil precisar se no decorrer de sua vida, Domingos Rocha Abreu abandonou a atividade comercial para dedicar-se somente à agricultura, mas suas ligações com a rota Araritaguaba-Cuiabá e o caráter familiar de seus empreendimentos mercantis são evidentes. Tinha filhos nas expedições monçoeiras e uma de suas filhas morava em Cuiabá, o que lhe possibilitaria conseguir acumular capital, traduzido sem seus vinte e cinco escravos e nas uniões matrimoniais de suas filhas. Este também foi o caso de Luís Araújo Coura, que vivia de “negócio para o Cuiabá”, embora nas listas nominativas de 1.767 possuísse um cabedal muito inferior ao de Domingos da Rocha Abreu, apenas 600$000. Neste ano, um de seus filhos, Luís, estava ausente no Cuiabá, onde o pai tinha negócios. Passados sete anos, em 1.774, as listas nominativas designam Coura como um agricultor, possuindo “um sítio coberto de capim com mil braças de terras de testada com meia légua de sertão”, no qual com seus 41 escravos, colheu 500 alqueires de milho e 100 de feijão. Tinha três cavalos, nove cabeças de gado, dois bezerros, e uma morada de casas. Em1.776, no sítio em que morava, colheu-se 1000 alqueires de milho, 150 de feijão, 40 de arroz, 60 de amendoim, e havia seis cabeças de gado, 12 porcos, dois cavalos e 33 escravos e, por fim,uma morada de casas. Neste ano, seu filho Luís também estava ausente no Cuiabá. Obviamente, o volume de mantimentos colhidos em sua propriedade e a quantidade de escravos de que dispunha, ainda que esta tenha diminuído, demonstra uma produção voltada ao mercado. Luiz Araújo Coura vivia de negócio para o Cuiabá. É possível que Luiz Araújo Coura negociasse duas vezes: vendendo em Cuiabá e abastecendo as mesmas expedições que para lá se dirigiam. Não pudemos detectar o tipo de negócio que Coura efetuava, pois infelizmente seu inventário não arrola mercadorias, nem faz menção à existência de “contas de livros”. Com efeito, o montante de dinheiro amoedado e de dívidas ativas em seu inventário poderia significar que ele seria um comerciante usurário, isto é, emprestasse dinheiro a juros, mas não apenas isto, já que apenas três pessoas lhe deviam, todas moradoras nas minas do Cuiabá. Pode ser que mantivesse negócios no Cuiabá, tal como mencionado na lista nominativa de 1.767.
Ou, ainda, que o é mais provável, que combinasse o empréstimo a juros, mantivesse negócios no Cuiabá e, como vimos, produzisse gêneros para o mercado, o que, neste último caso é sugerido pela quantidade de escravos. Em suma, Coura diversificava seus investimentos, mas pode ser que todos estiveram ligados à rota das monções, o que, evidentemente, contribuiu para seu enriquecimento, na medida em que teria 600$000 réis em bens em 1767 e ao falecer sua fortuna era quase 10 vezes maior (26). Certamente, uma forma de Coura manterem seus bens foi encontrada no comércio das monções. Uma das dívidas mencionadas no testamento da viúva foi a do Capitão Luís de Araújo Filgueira, filho do casal formado por Luís Araújo Coura e Luisa Pedrosa, no valor de 715$940. Trata-se do mesmo filho que estava ausente nas minas do Cuiabá nos anos de 1.767 e 1.776, pois nas listas nominativas destes anos, e nos inventários de Coura e de Pedrosa, não há outro filho denominado Luís. Em 1.791, quando da realização do inventário, Luís novamente se encontrava no Cuiabá. Pouco antes de morrer, Luisa fez seu testamento, no qual afirmou:“Declaro que não tenho recebido da carregação que levou meu filho Luiz de Araújo para as minas de Cuiabá no ano de 85 mais do que constar dos recibos assinados por mim”. Isso demonstra que a família, entre 1.766 e 1.791, realizava negócios com Cuiabá. Os quase vinte e cinco anos em que a família Coura ficou envolvida em atividades comerciais lhes assegurou uma situação econômica pelo menos estável (27). Portanto, semelhantemente ao caso de Domingos da Rocha Abreu, é possível destacar o caráter familiar do negócios com Cuiabá e a possibilidade de enriquecimento através deles. Enriquecimento que permitiu que alguns de seus filhos fizessem casamentos vantajosos, embora se perceba, na família Coura, um gradual empobrecimento de alguns de seus membros ao longo das gerações, ainda que alguns tenham se tornado senhores de engenho, conforme os maços de população. De qualquer forma, o movimento proporcionado por comerciantes, viandantes e gados que se dirigiam à região mineira do Centro Oeste, além de dinamizar a economia, às vezes ocasionava alguns transtornos à vila de Itu. Em 12 de dezembro de 1.747, através de uma missiva ao governador Dom Luís Mascarenhas, o juiz de fora Theotônio da Silva Gusmão reclamava que as cavalarias que conduziam cargas para o Cuiabá destruíam pontes e caminhos da vila, e para reconstruí-las novamente “os donos das cavalarias e cargas” não ajudavam “em nada”. Tendo em vista os prejuízos causados, o juiz propunha que “o negócio das cavalarias pagasse algum subsídio para a Câmara, ou para o bem Comum”, que “empregou as rendas dela” na construção de pontes e caminhos. Além destes percalços, o juiz relatava a destruição dos matos, provocada pelo movimento das canoas, que eram arrastadas até chegaram ao porto de Araritaguaba para embarque. Prosseguia enfatizando que a vila ficava sem tábua por “falta de paus”, uma vez que toda a madeira existente era utilizada na construção de canoas (28). A proposta do subsídio gerou revolta por parte de alguns, que não hesitaram em se queixar diretamente ao governador. Ao saber da queixa, o juiz de fora argumentou que, embora os “andantes para o Cuiabá” fossem muitos, “somente cinco os seis mascates armados (...) [foram] os fomentadores [da] oposição”. A seu favor informou que na vila de Itu vários homens mandavam “negócio para o Cuiabá”, mas que nenhum deles se queixou da proposta do subsídio,“ antes alguns foram rogais na postura”. Acreditava o juiz que os queixosos eram “os estranhos forasteiros”. Para desgosto do juiz, o governador respondeu que o tributo requerido era “muito prejudicial aos viandantes do caminho do Cuiabá, que assaz lhes bastam os direitos que pagam”. Informava também que o imposto era oposto aos desejos d’El Rei em conservar e aumentar os“moradores daqueles confins”. Em tom autoritário, disse ao juiz: “(...) ponha as coisas no estado em que estavam e de nenhuma forma convenha [colocar] em prática o dito novo imposto, pelo prejuízo que do contrário se segue aos viandantes que para as ditas minas costumam viajar, e a todos os mais que para elas quiserem ir estabelecer-se, que em vez de se lhes franquear melhor o caminho, e favorecê-los, como Sua Majestade recomenda, se lhes aumenta por este modo os direitos e conseqüentemente se lhes dificulta o ingresso que para as ditas minas intentam fazer, e tanto carecem de gente para as povoar, evitando-se por esta forma qualquer mal intento, que os castelhanos (com quem confinamos por aquela parte) queiram intentar, que é o fim a que se dirige, o mandar sua Majestade franquear o dito caminho, de cuja freqüência tiram estes moradores suas conveniências, que a não ser isso que seria do pobre povo de Itu?”. Nas palavras de Gusmão, observa-se ainda que em certas ocasiões, o fornecimento de mantimentos às monções comprometia os preços dos alimentos comercializados na vila, já que, como asseverou, em função das expedições que partiam às minas, a população ficava “exaurida
de mantimentos (...) vindos [os] da terra a comê-los mais caros” (30). Portanto, verifica-se em Itu e Araritaguaba a ocorrência de um de processo inflacionário nos preços de mantimentos. Exatamente o mesmo ocorrido na vila de São Paulo, por ocasião da descoberta de jazidas nas Minas Gerais, quando a população preferia vender gado e mantimentos para aquelas localidades onde conseguia um preço maior para os produtos (31). Assim, além dos ituanos tirarem suas conveniências daquele caminho, Mascarenhas tece comentários sobre a importância para El Rei do comércio com a região das Minas. Comércio que, para além da cobrança de impostos, era de primordial importância para o aumento de moradores da região fronteiriça e, por conseguinte, para a guarda dos domínios coloniais, ameaçados pelos castelhanos. Os interesses da Coroa nessa região eram tão zelados que o Conselho Ultramarino foi enfático ao ser consultado a respeito da criação de uma capitania, abrangendo as minas de Cuiabá e Mato Grosso:“(...) se procure fazer a Colônia de Mato Grosso tão poderosa que se contenha os vizinhos em respeito e sirva de ante mural a todo o interior do Brasil”(32). Neste reordenamento de fronteiras, a vila de Itu adquiriu uma posição estratégica para a Real Coroa. Quase toda a correspondência com as autoridades de Cuiabá e Goiás era efetuada através das expedições monçoeiras. Mesmo os índios e o ouro vindos de Cuiabá eram quintados na vila, bem como, ao que tudo indica, eram inicialmente registradas as bestas procedentes de Curitiba (33) e dos campos de São Pedro do Sul (34). Além disso, todo o envio de armas aquela região era feito através de monção.
Geralmente, as expedições reais ocorriam anualmente e, da mesma maneira que as expedições comerciais, precisavam de tripulação, canoas, remos e mantimentos fornecidos por Itu e por Porto Feliz, armazenados não só no Armazém Real, pois, dependendo do volume de cargas, era preciso alugar algumas casas para tal fim (35). Em 1722, Manoel Sampaio Pacheco,informava ao capitão general de São Paulo que já havia providenciado a compra de canoas, bem como mandara “fazer os remos necessários” 36. Em 1733, as liages, que vieram do Almoxarifado da vila de Santos, eram insuficientes para ensacar as farinhas e estreitas para acondicionar o feijão. A solução encontrada foi “procurar fio de algodão” na própria vila “para se mandarem fazer algumas linhas largas”. O que significa que, além de mantimentos, a vila possuía lavouras de algodão e costureiras aptas para fiar os sacos. Nesta ocasião, o capitão-mor de Itu reclamou que a prata enviada para fazer os pagamentos dos mantimentos e “miudezas” era insuficiente, daria somente para pagar os “índios carregadores”. Provavelmente, tratasse de índios que traziam mercadorias nas costas, faltando assim recursos para os pagamentos dos moradores que forneciam farinhas (37). Diversas vezes Itu e Araritaguaba foram chamadas para fornecer mantimentos para a Colônia do Iguatemi. Em 1.766, a vila de Itu foi convocada a fornecer 1.100 alqueires de milho, além de feijão, capados e cachaças (38). Passados quatro meses, em julho de 1767, novamente era enviada uma ordem à vila de Itu sobre outra expedição ao Iguatemi. O capitão-mor da vila, Salvador Jorge Velho, ficava encarregado de aprontar a tripulação que consistiria em “dez pilotos e vinte proeiros” e, também, de arrecadar mantimentos suficientes para alimentar “trezentos e vinte homens” durante um período de seis meses (39). Quando da expedição do Brigadeiro José Custódio de Sá e Faria em 1774, foram solicitados “canoas com tudo o que lhe compete e gente de sua mareação as que forem necessário, 200 alqueires de feijão, 200 alqueires de farinha, oito alqueires de arroz, oito arrobas de açúcar, 80 medidas de aguardente de cana [e] linhagem para os sacos” (40). Aos 10 de abril de 1804, o sargento-mor de Porto Feliz, Francisco Correa Manoel Leite,solicitou informações ao sargento mor da freguesia de Piracicaba a respeito de confecções de canoas e existência de capados para prover uma monção real (41). Dez meses depois, o mesmo Francisco deu ordens para que “se matassem porcos e secassem; e se aprontasse, a farinha, feijão e o mais” para outra expedição (42). Infelizmente, não dispomos das listas de Porto Feliz para o ano de 1.804, mas na de 1.803 observa-se que Antonio Ferreira e Antônio Rodrigues Campos vendiam milho, feijão e arroz. Jerônimo Vicente Torres vivia de “criar e vender porcos”. Além de Jerônimo, outros 12 moradores da vila venderam capados. Por sua vez, João Viegas Forte e José Rodrigues Monteiro venderam 150 e 200 alqueires de milho, respectivamente. Além daqueles moradores, outros 26 moradores venderam parte da produção. Mesmo que se trate de vendas em poucas quantidades, deviam ter um valor significativo para quem as vendeu, merecendo inclusive o registro dos recenseadores (43). Em 1806, Salvador Jorge Cunha,morador na vila de Itu, moveu um processo contra uma certa Águida, parda forra. Dizia Salvador que Águida lhe devia a quantia de 4$600 réis, “procedidos de fazendas” que lhe forneceu em troca de mantimentos “para sua viagem” às minas de Cuiabá. Ainda que Águida não tenha cumprido o compromisso assumido, o fato é que pequenos produtores participavam do fornecimento de mantimentos para as expedições monçoeiras (44). Tal como as monções comerciais, as expedições de caráter oficial também contribuíam para dinamizar a economia da vila. Uma delas, ocorrida em 1804, foi composta por 21 canoas e139 homens. Entre o pagamento das embarcações, tripulação e mantimentos, a Coroa Real desembolsou 9:575$727 réis (45). Em uma outra expedição à Camapuam, o custo de mão de obra para o Erário Real foi de 1:353$000, valor referente ao pagamento de “setenta e sete praças da tripulação” e 1:700$000 para o pagamento de “canoas, mantimentos, e o mais necessário” que na vila de Porto Feliz se comprava (46). Em 1800, a expedição de Cândido Xavier de Almeida e Souza partiu de Porto Feliz, levando de mantimentos 174 alqueires de farinha de milho, seis de mandioca, três de arroz, 81 de feijão, quatro de milho, seis de sal, 81 arrobas de toucinho, seis arrobas de açúcar, um rez charqueada, 20 entrecosto, 30 galinhas, e 72 medidas de aguardente de cana. Para o seu transporte foram três canoas grandes, um canoa pequena de montaria, dois batelões, um novo e um velho, sete esgotadores, oito remos para os pilotos, seis remos para os contra piloto, seis para os proeiros e 16 para os remeiros. Embora tivesse sido previsto saírem de Porto Feliz com 31tripulantes, no dia da partida “subiu ao dobro o número dos deixaram a vila”. Toda a organização da expedição fora feita na vila de Porto Feliz. Segundo Cândido Xavier, na vila “existiam as embarcações do transporte, víveres, munições, petrechos, e gente de tripulação que se destinava para a (...) expedição” (47). Neste mesmo ano de 1818, uma dessas expedições reais estava atrasada em sua partida e só poderia sair em junho “porque os mantimentos ainda se [achavam] pelas roças e não [estavam] em tempos de se recolherem” (48). Não obstante, neste mesmo ano, 12 pessoas da vila, moradoras na freguesia de Piracicaba, exportaram capados. Além de capados, esses moradores estavam todos envolvidos com a produção de mantimentos. Félix Antônio produziu 1200 alqueires de milho, 70 de feijão, 20 arrobas de algodão, além de ter 100 capados. Outros três fogos produziram entre 200 a 250 alqueires de milho, dois entre 50 a 100 alqueires, e três produziram menos que 40 alqueires. Desses 12 agricultores, sete moravam no bairro do Rio Acima. Esta denominação indica residência nas proximidades do Rio Tietê, e fazia parte do trajeto das canoas que rumavam a Cuiabá. Ainda em 1818, Inácio Frutuoso vivia “de vender muito mantimento”.Essa afirmativa é corroborada por sua produção, pois, com seus 19 escravos, seu fogo produziu1200 alqueires de milho, 110 de feijão e 30 de arroz. Inácio Frutuoso e Águida demonstram que grandes e pequenos e produtores foram estimulados pela rota das monções. Além de fornecer mantimentos para as expedições, de Itu e Porto Feliz saíam também os pilotos, proeiros e remeiros que formavam as tripulações das expedições, bem como os próprios remos e canoas.
Canoas, remos, e seus construtores no rol de exportações da vila de Porto Feliz, ao lado de açúcar, aguardente, milho, feijão, sempre figuraram canoas para o Cuiabá. A venda de canoas contribuía para o sustento de moradores de localidades próximas ou pertencentes a Itu. A freguesia de Piracicaba, por exemplo, subordinada à Itu e, posteriormente à Porto Feliz, “só pode sustentar-se nos primeiros anos de seu estabelecimento, depois que os moradores se dedicaram a fabricar e vender canoas” (49). Entre os moradores envolvidos com consertos e construção de canoas e remos está o soldado Tomé Pacheco Gonçalves. As listas nominativas apontam que Tomé Pacheco Gonçalves vivia de “lavouras e [de] fazer canoas” e possuía em bens três mil cruzados (um conto e duzentos mil réis), o que fazia dele neste ano um dos nove homens mais ricos de Araritaguaba (50). Evidente que não estamos dizendo que sua fortuna adveio somente da construção de canoas e que os que se dedicavam a esse ofício eram tão bem afortunados. Dentre os 404 chefes de fogos de 1.767, estavam Simão Correia Estevão, que vivia como “feitor de canoas” e Pedro Vaz Campos, que vivia de “fazer canoas”. Além do ofício, tinham em comum apenas 100$000 em bens. Não tinham bens como Tomé, mas pelo menos não se incluíam entre os 174 fogos que não possuíam nada. Em 1766, em Itu, Inácio Oliveira Gil também vivia de “fazer canoas” e contava apenas15 mil réis em bens. Neste mesmo ano, José Brito Leme, 56 anos, casado com Quitéria Silva, era outro que vivia de “fazer canoas” e tinha em bens 25$600 réis. Uma situação que os colocava entre os 82 (3l,8%) fogos de Itu que possuíam renda até 100$000. Em um universo de 258 fogos, isto os isentava dos 116 que não tinham nada.Embora nem todos os que se dedicassem a construir canoas fossem afortunados, para alguns foi possível um certo acúmulo que permitiu a aquisição de escravos. Das 23 pessoas listadas nos maços de população de 1.766 envolvidas com ofícios de construtores, somente dois não tinham alguma alusão ao trabalho agrícola. A grande maioria aliava o trabalho de construção com as lides agrárias, como era de se esperar. Certamente, o produto obtido com a lavoura destinava-se à necessidade do fogo, mas alguns tinham produções significativas, e possivelmente colocavam parte dessa produção no mercado.
Em 1.773, Francisco Pinto Rego que vivia de “fazer canoas”, tinha em seus bens um sítio pequeno e umas terras, além de dois escravos. Inácio Pinheiro Correia vivia de “fazer canoa” e tinha umas terras de sesmaria e sete escravos. Ainda em 1773, o soldado Roque Pinheiro além de “fazer canoas”, vivia de “suas lavouras”, e possuía um sítio com 100 alqueires de milho e três escravos. Neste mesmo ano, Vicente Dias Falcão vivia de fazer remos e possuía um sítio pequeno e dois escravos. Em 1803 as listas nominativas descrevem Vicente Dias Falcão vivendo de “fazer canoas” e plantando “mantimentos para o seu gasto”, auxiliado por seus dois escravos e por seus quatro filhos com idades entre 15 a 18 anos. Neste ano, um dos filhos de Vicente encontrava-se em Cuiabá. Em 1776, Inácio Pinheiro Homem vivia de fazer canoas. Entre seus bens havia três escravos e um “sítio em que lavra somente para sustentar-se”. Em 1795, Inácio foi inventariante de sua esposa, Mariana Cardoso Lima. Entre os bens do casal constava “uma morada de casas de paredes de mão, cobertas de telhas de dois lanços” e “meia légua de terras”, uma arma de fogo no valor de 3$200 réis, um touro, quatro cavalos, uma vaca com cria, e uma junta de bois que juntos valiam 43$800 réis, alguns utensílios e oito escravos.Outro que pode ter conseguido algum tipo de pecúlio a partir de seu ofício de fabricar remos foi João Gomes Escobar. Em 1798 vivia de “fazer remos para Cuiabanos”, cujo ofício lhe rendia 16$000 anualmente; além disso, “plantava mantimentos para o seu gasto”. Em 1803, João Gomes vivia ainda de “fazer remos para os navegantes Cuiabá” e era senhor de um escravo. As listas de 1808 e 1813 mencionam João Gomes apenas ligado a atividades agrárias e não listam nenhum bem. No entanto, em 1818, já viúvo, foi descrito como lavrador tendo produzido 200 alqueires de milho, oito de feijão e sete de arroz. Em 1798, as listas nominativas se reportam a Julião Pinto Freitas vivendo de construir “canoas para vender aos cuiabanos”. Com dois escravos e a mão de obra de seus cinco filhos com idades entre 11 e 23 anos plantava “mantimentos para seu gasto”. Em 1808, Julião Pinto Freitas faleceu. No seu inventário, consta que ele possuía “terras com casa de palha sem porta nem janela”, itens que se localizavam no Bairro do Quilombo em Porto Feliz, avaliados em 12$800. Dentre seus outros bens, havia 14$440 em ferramentas e utensílios; quatro vacas, um novilha, um“boizinho”, um cavalo “velho” e uma égua que somavam 26$280; havia ainda cinco escravos que valiam 358$200. Apesar de possuir 158$035 em dívidas, seu inventário apresentou um valor líquido de 254$145. É certo que não se trata de uma quantia avultada, mas é uma “pequena fortuna (...) bastante grande para a maioria da população que nem testamento ou inventário fazia por  “não ter de quê” (51). Em 1773, José Toledo Pires, além de “fazer canoas”, lavrava em terras alheias “para seu sustento”. Possuía quatro vacas com dois crias e cinco escravos. Em 1774 as listas nominativas mostram José Toledo com uma produção de 50 alqueires de milho, 10 de feijão, além de três cabeças de gado e sete escravos. Outro que vivia em situação semelhante a José Toledo Pires era João de Souza Prado. As listas nominativas de Araritaguaba para o ano de 1774 apresentam João Souza do Prado vivendo de “fazer remos” e plantando em “terras devolutas”. Embora não tivesse escravos nem filhos que o auxiliassem no trabalho na lavoura, colheu 15 alqueires de milho e quatro de feijão. Possuía ainda um cavalo, 10 cabeças de porcos e 10 leitões. Se somente ele e a esposa moravam no fogo, a quantidade de porcos que possuía não se destinava somente ao consumo da casa, certamente uma parte era colocada no mercado.Talvez este fosse o caso também de José de Almeida Falcão, bem como o de Sebastião Machado de Lima. Em 1767, José de Almeida Falcão aparecia nas listas nominativas com bens na ordem de 600$000 réis. Em 1776, vivia de fazer canoas, conjugando essa atividade com a de lavrador. Colheu 300 alqueires de milho, 30 de feijão, 25 de amendoim. Essa produção foi conseguida com o trabalho de 13 escravos. Neste mesmo ano de 1776, em Araritaguaba, Sebastião Machado Lima, de 71 anos, vivia de “fazer canoas”; possuía 12 escravos entre “velhos e rapazes” e um sítio “com escritura”, onde colhia 300 alqueires de milho, 60 de feijão, além de possuir 12 cabeças de gado. O fato de mencionar sítio “com escritura” indica que o acesso à propriedade pode ter sido conseguido pela compra, dentre outras formas possíveis. Se foi o caso, no decorrer de sua vida, Sebastião acumulou capital que o permitiu adquirir aquela propriedade. Assim, perseguindo a trajetória dos 23 listados nos maços de população de diversos anos com ofícios de construtores, 10 conseguiram algum acúmulo que permitiram a aquisição de escravos. Os remos e canoas fabricados por essas pessoas eram de extrema utilidade para guias, pilotos, proeiros e remeiros que navegavam pelos rios rumo ao Cuiabá.

A tripulação monçoeira: guias, proeiros e remeiros


Ao discorrer sobre os homens que compunham as tripulações monçoeiras, Antônio da Silva Leite, capitão mor da vila de Porto Feliz, responsável pela organização de várias expedições reiúnas ao Mato Grosso, afirmou: “com os vadios deste país é que se formam as tripulações das repetidas expedições que desta vila partem para o Cuiabá”. Acrescentava, porém, que aquela “gente de alguma maneira [deveria] ser respeitada por sua habilidade no trabalho do rio” (52). Em 1784, comerciantes que se dedicavam a rota Araritaguaba-Cuiabá queixavam-se de “alguns pilotos, proeiros e remeiros de suas canoas (...) [que] depois de receberem toda a paga ou parte dela costumam fugir nas vésperas da saída [e] outros deixam de dar cumprimento aos ajustes, causando lhes (...) notável prejuízo”. Insistentemente, solicitavam ao capitão-mor Vicente da Costa Taques e Aranha que, sob “pena de prisão”, fizesse os camaradas irem “ao Porto de Araritaguaba”, obrigando-os a cumprirem os seus ajustes. O capitão mor acreditava que alguma providência deveria ser tomada por considerar aquele comércio de utilidade do Real Erário. No entanto, alegava que a providência não seria apenas como os comerciantes queriam, sob pena de prisão. O que se poderia fazer era obrigar os que tivessem recebido toda a paga, ou parte dela, a dar cumprimentos aos ajustes, inclusive os que quisessem devolver a quantia recebida. Deveria argumentar que os comerciantes não teriam “tempo de procurar outros camaradas” e que a “a menor demora” no embarque era muito prejudicial aos negócios (53). Vadios e habilidosos, eis as percepções que muito provavelmente uma certa parcela da sociedade fazia daqueles que se dedicavam aos ofícios de pilotos, remeiros, proeiros e guias das monções. Quais seriam as razões para qualificar aqueles homens de vadios e, ao mesmo tempo, de habilidosos? No que se fundamentavam aquelas percepções? Quem eram aqueles homens que viviam das artes de navegar? Pelos relatos, foi possível observar que para fazer parte da tripulação de uma expedição monçoeira, mais do que se considerava coragem, eram necessários força física, conhecimento de técnicas de navegação, do trajeto a ser percorrido, o que, certamente, demandava aprendizagem e experiência. Pressupunha, enfim, o domínio de um saber especializado. Por isso, Dom Antônio Rolim, classificou a navegação no caminho das monções como uma arte, enquanto o capitão-mor Antônio da Silva Leite enfatizou a habilidade dos homens que dominavam técnicas e saberes. Deste modo, percebe-se que contemporâneos a monções valorizavam, até certo ponto, o trabalho de remeiros, proeiros, pilotos, dentre outros que se lançavam rumo ao Cuiabá. Ainda que houvesse, obviamente outros tipos de tratamento.Todavia, uma parcela da sociedade setecentista e oitocentista, bem como historiadores de séculos posteriores, classificava aqueles que se ocuparam dos ofícios monçoeiros, como vadios, ou  “desafeitos ao trabalho e à ordem – vagabundos e criminosos”, parte de um conjunto“cuja harmonia só a ameaça de castigos corporais conseguia manter” (54). A partir de 1798, as listas nominativas passam a indicar a cor dos moradores de Itu e Araritaguaba. Em relação aqueles que faziam parte das tripulações ( guias, pilotos, remeiros, proeiros, mareantes, navegantes etc.), nota-se que a maior parte deles era formada por pardos (Tabela 4). Dessa forma, é possível perceber que 73,9% dos tripulantes monçoeiros eram pardos, 4,3% negros e 18% brancos.

O que significava ser pardo na sociedade colonial?

 Mais do que a simples aparência da tez, segundo Sheila de Castro Faria significava situar-se “a meio caminho entre a certeza da liberdade e o comprometimento com algum antepassado escravo”, expressando pois uma condição social, estigmatizada. Pardos, livres e forros nunca deixavam de ter relembrada a sua origem escrava. Havia adjetivos pejorativos para aqueles que se situavam entre o “senhores e escravos”, tais como vadios, como disse o capitão-mor de Porto Feliz, expressando percepções de grupos dominantes no período escravista a respeito daqueles homens. Segundo Sheila Faria, historiadores também os classificaram como “marginais”, “desclassificados”, ou componentes do “mundo da desordem”. Porém, eram “mão de obra potencial ou adequados e subjugados ao poder de mando dos “homens bons’” e, quando “livres e autônomos, significavam ameaça à ordem que se queria impor”. Por isso, a exigência feita ao capitão-mor da vila de Itu, Vicente Taques, obrigando, sob “pena de prisão”, os camaradas a cumprirem os ajustes feitos com os comerciantes. Era o que Castro Faria chamou de“aprendizado da obediência e da sujeição” (55). Mas não apenas o capitão-mor e comerciantes desqualificaram os tripulantes das monções.  Já se afirmou que eram “criados na ociosidade e inadaptáveis à disciplina rígida” que o trabalho monçoeiro exigia (56). Isto difere de alguns casos observados nesta pesquisa. Perseguindo trajetórias de algumas pessoas que viviam da “navegação do caminho do Cuiabá”, de “mareante do caminho do Cuiabá”, de “piloto do caminho do Cuiabá”, de “guia do Cuiabá”,de “proeiro” e de “remeiro”, foi possível perceber a constância delas no exercício de seus ofícios. Ângelo de Góes, por exemplo viveu da “navegação do caminho do Cuiabá” de 1798 a 1813. Portanto, permaneceu nas lides do rio pelos menos durante 15 anos. Agostinho Ferraz, durante 20 anos, Antonio Lopes 21 anos, Bento Teixeira 21, João Cardoso 15, Pedro Leme da Silva 20 anos. Outros exemplos poderiam ser relatados, mas o que importa é enfatizar que esses homens nada tinham de vadios ou ociosos, eram, sim, trabalhadores, que exerciam ofícios que exigiam o domínio de técnicas e saberes. Difícil saber quanto era pago à tripulação pelas viagens à Cuiabá, já que, certamente, no decorrer do período monçoeiro, houve variações no valor pago, bem como para cada tipo de função.Em 1.826, Hércules Florence, ao referir-se ao pagamento da tripulação, informou que aqueles “pobres coitados empenham os seus serviços para tão penoso lidar por 20 francos mensais, além de alguma roupa grosseira”, já que era somente “o espírito aventureiro” que os impelia a “contratos dessa natureza” (57). Tempos depois, em 1830, Leverger informou que os salários da tripulação eram 200 a 240 réis para os pilotos e proeiros, 160 réis para o contra piloto, e 120 a 140 réis para os remeiros. Todavia, Leverger não específica se esses valores eram pago diariamente, semanalmente etc., apenas não entendia porque os tripulantes se sujeitavam a tão“mesquinha retribuição” (58).
Difícil de acreditar que somente o “espírito aventureiro” estimulasse esses homens a lançar-se nas monções, como relatou Hércules Florence, e que se sujeitavam por mesquinha retribuição. Algum ganho material deveriam ter. Até mesmo porque algumas pessoas viviam do “jornal de seus escravos no caminho do Cuiabá”, como o soldado de cavalaria Francisco Rodrigues que, em 1803, colocou seus três escravos nesta função, bem como a viúva Bernarda de Lara que, neste mesmo ano, vivia do “jornal do seu mulato no caminho de Cuiabá” (59). Não obstante as dificuldades para saber o quanto rendiam os ofícios ligados às atividades do rio, é possível, rasteando outras informações, detectar que, como aos que se dedicavam a construir ou consertar canoas e remos, aquelas ocupações permitiram o acumulo de algum pecúlio. Entre 161 tripulantes, 32 (19,9%) entraram no seleto mundo dos proprietários de escravos, cujas escravarias variaram entre um e 7, metade com apenas um cativo.Em 1767 o piloto Antônio Pinto do Prado, 36 anos, casado com Maria Antunes, possuía nada. No decorrer de sete anos, seu ofício deve ter contribuído para o acúmulo de bens, já que em 1774 possuía um sítio com 100 braças de terras de testada e meia légua de sertão, onde colhia 16 alqueires de milho e quatro de feijão. Contava ainda com trabalho de uma escrava. Conforme Carlos Bacellar, ao analisar pequenos proprietários de escravos na vila de Sorocaba, a aquisição de um a cinco escravos e a entrada “no reduzido elenco dos proprietários de mão de obra escrava” significavam que indivíduos “em um dado momento de suas vidas, teriam acumulado reservas suficientes para efetuarem aquilo que, à primeira vista, seria um investimento pesado para suas restritas condições de vida.” (60). As expedições para o Cuiabá duravam em média cinco meses para ir e dois na viagem de volta. Se Antônio participasse de apenas uma expedição por ano, em alguns meses poderia dedicar-se aos trabalhos da terra, juntamente com sua esposa, sua filha e sua escrava, o que certamente resultaria numa produção que satisfizesse ao menos suas necessidades de subsistência. Portanto, os tripulantes que iam para o Cuiabá, muito além do espírito aventureiro e de se sujeitarem-se a uma mesquinha retribuição, conseguiram, através de seus ofícios, ganhos materiais. Ademais, devido a sazonalidade das atividades monçoeiras, diversificavam suas ocupações, aliando a navegação nos rios com fainas agrícolas. Vinte e quatro tripulantes possuíam sítio, quatro cultivavam plantavam em “terras devolutas”. No ano de 1774, Francisco Gonçalves de Brito, piloto de canoas, possuía um “sítio com trezentas braças de terras de testada com meia légua de sertão” e produziu 25 alqueires de milho e cinco de feijão. Apesar de contar com um único filho com idade produtiva, em seu fogo viviam quatro agregados todos em idade produtiva, além de dois escravos. É bem possível que Francisco ainda atuasse como um pequeno pecuarista, pois em 1773 contava com 40 cabeças de gado. Em 1767, o piloto Bonifácio da Rocha não tinha bem algum, mas em 1774 colheu 30 alqueires de milho, cinco de feijão e era proprietário de quatro escravos. Em 1798 as listas nominativas apontam Lázaro Campos como proeiro do caminho do Além do ofício de proeiro, Lázaro, juntamente com sua esposa e a mão de obra de seus três filhos colheu 50 alqueires de milho, 10 de feijão e 10 arrobas de algodão. Parte dessa produção venderam “para a terra”. Assim, feito os construtores de remos e canoas, a alguns dos que trabalhavam como tripulantes das monções também foi possível conseguir algum pecúlio com seu ofício.

Conclusão


Ainda que o assunto exija a necessidade de maiores pesquisas, é bem provável que em algumas localidades da capitania paulista não tenha existido uma ruptura profunda com século XVII, refere ao uso da mão de obra indígena até meados do século XVIII. Possivelmente em Itu e Araritaguaba, as famílias redirecionaram suas atividades a partir das possibilidades que a descoberta do ouro trouxeram, mas ainda com base na mão de obra cativa, sobretudo indígena,desenvolvendo uma estrutura agrária voltada para a produção de mantimentos, não mais de trigo como no século XVII, e sim de milho e feijão, bem como na proliferação de ofícios que deram suporte às expedições monçoeiras. Os colonos, pois, de posse de seus administrados, plantaram mantimentos, ou então, trabalharam nos ofícios de construtores de canoas, remadores, pilotos, proeiros, dentre outras atividades. Assim, no espaço colonial, desenvolveram-se setores agrários para além da plantation, isto é, uma agricultura não com vistas ao mar, mas ligadas, fundamentalmente, aos processos de ocupação do interior da colônia. O desenvolvimento da capitania paulista inseriu-se no âmbito do projeto metropolitano português, pois, ao mesmo tempo que comerciantes levavam sua mercadorias para a região das minas de Cuiabá, a expansão rumo ao Extremo Oeste permitiu o povoamento da região, como era desejo da Coroa, em meio a sérios conflitos com castelhanos, além do recolhimento de impostos que o Erário Real obtinha com o comércio e com o ouro. Não obstante, foi possível a comerciantes e agricultores de Itu e Araritaguaba acumular cabedal a partir do mercado interno,tal como demonstram os casos de Luis Araújo Coura e Domingos Rocha Abreu. As atividades de comerciantes e agricultores de Itu e Araritaguaba do século XVIII em nada demonstram um estado de decadência – ainda que em inícios e meados do século as localidades não sejam necessariamente afortunadas, quando comparadas a áreas exportadoras da Bahia e Rio de Janeiro. De todo modo, Itu e Araritaguaba, como áreas voltadas para o mercado interno, mediante a rota das monções, tiveram papel importante na configuração do espaço colonial. Foi desta rota que homens e mulheres, como disse Luis Mascarenhas, tiravam as suas conveniências, ou seja, tiravam do comércio monçoeiro os recursos necessários à sua sobrevivência. Alguns enriqueceram.


Notas:
1 Sobre o assunto cf BLAJ, Ilana. A trama das tensões. O processo de mercantilização de São Paulo colonial. (1671-1721). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1995, Tese de Doutoramento, pp. 186, 194; GODOY, Silvana Alves de Godoy. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718-1838).Campinas: UNICAMP, Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Econômica, 2002, capítulo 1.
2 PRADO, Paulo. Paulística. História de São Paulo. Rio de Janeiro: Ariel Editora Ltda., 1934, pp. 25 a 28. Cf.também, Carlos Davidoff, que afirma que com a descoberta de ouro os paulistas migram para áreas mineradoras, despovoando a capitania, cujo estado de decadência “perdurou por aproximadamente um século e meio, até que o advento do café e as estradas de ferro trouxessem consigo uma fase de desenvolvimento mais estável”. DAVIDOFF,Carlos. Bandeirantismo: verso e reverso. São Paulo: Editora Brasiliense, 7a. ed., 1993, pp. 82 e 84.
3 ELLIS JÚNIOR, Alfredo. Os primeiros troncos paulistas. São Paulo: Editora Nacional; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1976, pp.118- 120.
4 MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo: Hucitec,Edusp, 2000. p.15.
5 BARBOSA DE SÁ, Joseph. “Relação das povoações do Cuiabá e Mato Grosso de seus princípios até os presentes tempos”. In: Anais da Biblioteca Nacional, Volume XXIII, p. 21
6 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 1, Documento 60, Ordem 292.
7 NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz, 1998, História da família no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p.38.
8 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 1. Documento 74. Ordem 292
9 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 105.
10 Ordenanças de Porto Feliz. AESP. Caixa 54, Pasta 1, Documento 79, Ordem 291.
11 Saint-Hilaire. Auguste. 1976, Viagem à província de São Paulo. Belo Horizonte: Itataia; São Paulo: EDUSP, p.76.
12 Documentos Interessantes. Volume XX, pp. 170-171.
13 ROLIM, D. Antonio. (Conde de Azambuja). “Relação da viagem que fez o Conde de Azambuja, D. Antonio Rolim, da cidade de S. Paulo para a vila de Cuiabá em 1751”. In: Taunay, Afonso de. Relatos Monçoeiros. BeloHorizonte: Itataia; São Paulo: EDUSP, 1981, pp. 198 e 199
14 “Relação da chegada que teve a gente de Mato Grosso, e agora se acha em companhia do senhor D. Antônio Rolim desde o Porto de Araritaguaba, até a esta Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá”. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typografia Leuzinger, Volume XX, 1899, pp. 245-248.
15 Sesmarias. Documentos do Arquivo do Estado de São Paulo. São Paulo: Typografia Piratininga, 1921, pp. 382,383, 449, 485, 486, 492 e 493.
16 Relação das quantias oferecidas pelos moradores do bairro de Araritaguaba. Documento 653.(Arquivo Histórico Ultramarino) Microfilme Biblioteca Nacional.
17 CAMELLO, João Cabral. In TAUNAY, 1981, op. cit., p. 120
18 HOLANDA, Sergio Buarque de. 1990, op. cit., pp.. 290 e 237.
19 Documentos Interessantes para a Historia e Costumes de S. Paulo, Volume : XIII, pp. 141-146.
20 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 1. Documento 99. Ordem 292
21 FERREIRA, Roberto Guedes. Cor e ocupação: Rio de Janeiro e Porto Feliz (primeira metade do século XIX).Texto mimeo, 2002, p. 4.
22 JUZARTE, Theotônio. In SOUZA, Jonas Soares de & MAKINO, Miyoko (Orgs.), Diário de Navegação. SãoPaulo: EDUSP, Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 379.
23 Apud NÓBREGA, Melo, História do Rio Tietê. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1981, p.148.
24 ABREU, Manoel Cardoso de. 1902, RHIGSP, Volume VI, op. cit., p. 290.
25 As fontes utilizadas para aferir a trajetória dos membros da família foram as listas nominativas dos anos 1766,1767, 1776, 1798, além de ABREU, Manoel Cardoso, 1902, op.cit., e a obra “Nota sobre Manoel Caetano de Abreu”in RIHGSP. Nota da Revista, 1902, Volume VI (1900-1901), pp. 291-293. Em itálico estão as expressões tal como mencionadas nas fontes.
26  Museu Republicano Convenção de Itu. Inventário de Luis Araújo Coura e de Luisa Pedrosa – Fundo do Arquivo Central, Comarca de Itu.
27 Trinta anos, pelo menos, já que o primeiro dado que temos acerca do envolvimento dos Coura em atividades comerciais data de 1766 .
28 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 2. Documento 07. Ordem 292.
29 Documentos Interessantes, Volume LXVI, p. 209-210.
30 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55, Pasta 2.Documento 107, Ordem no. 292
31 BLAJ, Ilana. 1995, op. cit., cf. especialmente capítulo IV. Maria Yedda Linhares afirma que a capitania paulista foi a “retaguarda econômica das regiões mineradoras do Centro e do Oeste brasileiros”. Para a autora, o surgimento de um mercado mais lucrativo leva o lavrador “a retirar o seu produto do mercado local, transferindo-o para outro em busca de melhores preços”, exatamente como ocorreu em Itu, Araritaguaba e São Paulo. LINHARES, Maria Yedda L. História do Abastecimento; uma problemática em questão (1530-1918). Brasília. Binagri, 1979, pp.64 e 125.
32 Apud. VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza. Formação da fronteira oeste do Brasil. 1719-1819. São Paulo: Editora Hucitec; Brasília: INL, 1987, pp. 33-36. As penetrações dos bandeirantes sertão a dentro, bem como a migração de colonos para regiões auríferas no Centro-Oeste, ocasionaram um novo desenho nos limites fronteiriços, “desgastando profundamente os limites fixados pelo Tratado de Tordesilhas” e impondo “o estabelecimento de novas linhas demarcatórias entre os domínios portugueses e espanhóis na América”.VOLPATO, Luiza R., op. cit. Com objetivo de efetivar o domínio sobre as novas terras conquistadas, a Coroa portuguesa, além propor as discussões acerca do Tratado de Madri, criou, por Provisão do Conselho Ultramarino, de nove de maio de1748, novas capitanias, a de Mato Grosso e a de Goiás, desmembrando a capitania paulista. Cf.Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1910, Volume: XV, p. 69.
33 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta dois, Documento 2. Ordem 291.
34 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 1,  Documento 99. Ordem 291. Essa situação permaneceu pelo menos até 1748. Posteriormente, o registro foi transferido para a Vila de Sorocaba .
35 Ordenanças de Porto Feliz. AESP. Caixa 54. Pasta 1. Documento 78. Ordem 291
36 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 1. Documento 11. Ordem 292
37 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 1. Documento 85. Ordem 292
38 Documentos Interessantes para a Historia e Costumes de S.Paulo. Volume: V, pp. nove a 12. São emitidas ordens desse teor para os anos de 1768, 1769, 1770, 1771 e 1772. Cf. Documentos interessantes Volumes VI ao IX.
39 Documentos Interessantes para a história de São Paulo. Volume V, p. 44.
40 Documentos Interessantes para a Historia e Costumes de S.Paulo. Volume: VIII, p. 122.
41 Ordenanças de Porto Feliz. AESP. Caixa 54. Pasta 1. Documento 17. Ordem 291
42 Ordenanças de Porto Feliz. AESP. Caixa 54. Pasta 1. Documento 43. Ordem 291
43 Lourenço Costa Siqueira informou que vendeu seis alqueires de arroz e um capado. Escolástica Francisca Xavier vendeu 30 alqueires de farinha de milho, 12 de feijão e três capados. José Rodrigues Bicudo, 10 alqueires de farinha e de feijão. Francisco Almeida e Calisto Dias venderam 20 alqueires de farinha, cada um. Carlos Pinheiro Almeida e Antonio Rodrigues Costa, 30 alqueires de farinha; João Dias, seis de farinha e quatro de feijão; Ângelo Ortiz de Camargo vendeu sete alqueires de farinha; Manoel Gonçalves Soares, 13 alqueires de farinha de milho; Manoel Pinheiro Almeida, 10 alqueires de milho; Maria Silva, 15 alqueires; Mariana Siqueira, João Luis, João Gonçalves Lima, Francisco José, Inácio Vicente venderam 12 alqueires de milho; Maria Silva 15 alqueires de milho, Mathias João Costa 16 alqueires de farinha, Miguel Alvares 13 alqueires de milho. Os exemplos se multiplicam.
44 Juramento d’Alma. MRCI. Caixa 77. Documento 27.
45 Documentos Interessantes para a História e costumes de São Paulo. Volume 94, pp. 137 e 138.
46 Ordenanças de Porto Feliz. AESP. Caixa 54. Pasta 1. Documento [ilegível] Ordem 291
47 ALMEIDA E SOUZA, Cândido Xavier de. RIHGB. 1951, Volume 202, op. cit., pp. 1-14.
48 Ordenanças de Porto Feliz. AESP. Caixa 54. Pasta 1. Documento 77. Ordem 291.
49 HOLANDA, Sérgio B. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 146 e Ordenanças dePorto Feliz. AESP. Caixa 54. Pasta 1. Documento ilegível Ordem 291.
50  Lista  Nominativa de Itu. AESP. 1767.
51 FARIA, Sheila de Castro. A colônia Brasileira. Economia e Diversidade, São Paulo: Editora Moderna, 1997,, p.62.
52 Ordenanças de Porto Feliz. AESP, Cx. 54. Pasta 2. Documento 15. Ordem 291
53 Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 1. Documento 35. Ordem 292.
54 NÓBREGA. Melo, Op. cit., 1981, p.116.
55 FARIA, Sheila de Castro de. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1998, op. cit., pp. 103, 108 e 109.
56 HOLANDA, Sérgio Buarque.1990, op. cit., p. 68.
57 FLORENCE, Hercules. Viagem Fluvial do Tietê de 1825 a 1829. São Paulo: Cultrix, Edusp. 1977, p. 33
58 LEVERGER, Augusto. RIHGB. Volume 247, 1960,. p. 365.
59 Lista Nominativa de Porto Feliz, 1803.
60 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “A escravidão miúda em São Paulo Colonial” In: Brasil: colonização e escravidão. Org.: Maria Beatriz Nizza da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 241 e 243
Fontes Ordenanças de Itu. AESP. Caixa 55. Pasta 1, Documentos: 11, 35, 60, 74, 85, 99,. Ordem 292 e Pasta 2, documentos 7e 107.Ordenanças de Porto Feliz. AESP. Caixa 54, Pasta 1, Documentos: 77, 79, 78, 17, 43, Pasta 2:documento 15Juramento d’Alma. MRCI. Caixa 77. Documento 27.Processo Civil. AESP, Caixa 44, Ano 1737, Ordem 3477.Anais da Biblioteca Nacional, Volumes: XX e XXIII.Sesmarias. Documentos do Arquivo do Estado de São Paulo. São Paulo: Typografia Piratininga, 1921.Relação das quantias oferecidas pelos moradores do bairro de Araritaguaba. Documento 653.(Arquivo Histórico Ultramarino) Microfilme Biblioteca Nacional. Documentos Interessantes para a Historia e Costumes de S.Paulo. Volume: 5, 8, 13, 20, e 66.Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Volumes: 202, 247,. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Volumes: 6, 15 e 94. Inventários: Julião Pinto de Freitas – Pasta 226, Doc. 03 – Museu republicano Convenção de Itu Luisa Pedrosa – Fundo do Arquivo Central, Comarca de Itu – Museu Republicano Convenção de Itu Bibliografia BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “A escravidão miúda em São Paulo Colonial” In: Brasil:colonização e escravidão. Org.: Maria Beatriz Nizza da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2000.BLAJ, Ilana. A trama das tensões. O processo de mercantilização de São Paulo colonial. (1671-1721). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1995, Tese de Doutoramento . CAMELLO, João Cabral. In: Taunay, Afonso de. Relatos monçoeiros. Belo Horizonte: Itataia; São Paulo: EDUSP, 1981.ELLIS Júnior Alfredo. Os primeiros troncos paulistas. São Paulo: Editora Nacional; Brasília:Instituto Nacional do Livro, 1976.FARIA, Sheila de Castro de. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. A colônia Brasileira. Economia e Diversidade.. São Paulo: Editora Moderna, 19971FERREIRA, Roberto Guedes. Cor e ocupação: Rio de Janeiro e Porto Feliz (primeira metade do século XIX). Texto mimeo, 2002. FLORENCE, Hercules. Viagem Fluvial do Tietê de 1825 a 1829. São Paulo: Cultrix, Edusp.1977.GODOY, Silvana Alves de Godoy. Itu e Araritaguaba na rota das Monções (1718-1838).Campinas: Universidade de Campinas, 2002, Dissertação de Mestrado.HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990.______ Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994 JUZARTE, Theotônio. In SOUZA, Jonas Soares de & MAKINO, Miyoko (Orgs.), Diário de Navegação. São Paulo: EDUSP, Imprensa Oficial do Estado, 2000.LINHARES, Maria Yedda L. História do Abastecimento; uma problemática em questão (1530-1918). Brasília. Binagri, 1979.. MARCÍLIO,Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo: Hucitec, Edusp, 2000.NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. História da família no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1998 NÓBREGA, Melo, História do Rio Tietê. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo, Edusp,1981.PRADO, Paulo. Paulística. História de São Paulo. Rio de Janeiro: Ariel Editora Ltda., 1934.DAVIDOFF, Carlos. Bandeirantismo: verso e reverso. São Paulo: Editora Brasiliense, 7a.ed.,1993.ROLIM, D. Antonio. (Conde de Azambuja). “Relação da viagem que fez o Conde de Azambuja,D. Antonio Rolim, da cidade de S. Paulo para a vila de Cuiabá em 1751”. In: Taunay, Afonso de.Relatos monçoeiros. Belo Horizonte: Itataia; São Paulo: EDUSP, 1981.SAINT-HILAIRE. Auguste., Viagem à província de São Paulo. Belo Horizonte: Itataia; São Paulo: EDUSP, 1976.TAUNAY, Afonso E. “Monções, embarcações, tripulações, distâncias” In: Jonas Soares de Souza (Org.) Araritaguaba. Porto Feliz. São Paulo: Canton, 1979.VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza. Formação da fronteira oeste do Brasil. 1719-1819. São Paulo: Editora Hucitec; Brasília: INL, 1987.


(*) Silvana Alves de Godoy - Mestre em História Econômica pela UNICAMP

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