O “quadrilátero do
açúcar”
Entre 1780 e 1850 a região de Porto Feliz e Itu foi um das
maiores produtoras de açúcar em São Paulo. Nessa época, os canaviais cobriram vastas extensões de
terras e o número de engenhos quase chegou à cifra de duas centenas. Do período
restou um conjunto de testemunhos arquitetônicos, além de um acervo de objetos,
documentos textuais e iconográficos
O naturalista alemão Gustavo Beyer, que visitou a região no
verão de 1813, ficou impressionado com a presença marcante da cana de açúcar na
paisagem e no cotidiano da população. Essas impressões ficaram registradas em
seu diário de viagem: “Antes de chegar à cidade de Itu, o terreno é todo
cultivado e todos os campos são ornados com plantações de cana e ao pé de cada
rio encontram-se engenhos e alambiques, que são movidos por água”. E não foi
somente a extensão dos canaviais e o número de engenhos que despertou a atenção
de Beyer, mas também o costume muito comum dos habitantes de comer melado e
mascar gomos de cana-de-açúcar: “Viajando pelos arredores de Itu, é impossível
não notar que toda gente de classe baixa tinha os dentes incisivos perdidos
pelo uso constante da cana de açúcar, que sem cessar chupam e conservam na boca
em pedaços de algumas polegadas. Quer em casa quer fora dela, não a largam e é
possível que esta também seja a causa de haver aqui mais gente gorda do que em
outros lugares. A classe superior gosta igualmente de doce, pelo que recebeu o
alcunha de mel do tanque, isto é, o melhor melado produzido na fabricação do
açúcar. Os próprios bois e os burros também participam da mesma inclinação e
encontram-se eles, tal qual seus condutores, mastigando cana”.
A indústria do açúcar no Brasil, que estava um tanto estagnada, se beneficiou nesse período de uma situação
conjuntural. A ocorrência da
desarticulação da produção açucareira nas Antilhas provocou alta de preços e ampliação nos mercados mundiais do produto,
dando assim oportunidade ao açúcar da
colônia portuguesa. Ao conseqüente renascimento dos engenhos correspondeu
também o soerguimento da economia paulista.
Na área central da Capitania de São Paulo, no chamado
“quadrilátero do açúcar”, uma área formada por Mogi Guaçú, Jundiaí, Porto Feliz e Piracicaba, concentrou-se então
a maior parte da cultura e da indústria açucareira. Entusiasmados com a
expansão da demanda e com a alta de preços os fazendeiros da região investiram
capitais na ampliação das lavouras e fábricas de açúcar, e muitos chegaram
mesmo a se afundar em dívidas para levantar novos engenhos. E os preços
continuaram ajudando, pois se elevaram
progressivamente até 1799.
Entretanto, na virada do século 18 para o 19 os preços do
açúcar começaram a declinar. A flutuação dos preços e a retração do mercado
assustaram os fazendeiros da região.
A “falta de comércio” e a
conseqüente baixa de preços forçaram os
vereadores da Câmara da vila de Porto Feliz, que julgavam-se “obrigados a
salvar a Pátria da ruína que a ameaça”, a apelar ao Príncipe Regente D.
João. Através de ofício datado de 27 de
junho de 1801 suplicaram “humildemente se digne [o Príncipe Regente] conceder
aos fabricantes de açúcar e lavradores de cana
e aos seus partidistas desta capitania o privilégio de não serem
executados nos pertences de suas fábricas e escravos, devendo os credores ser
pagos pelos rendimentos delas, os quais
devem somente ficar obrigados à importância das dívidas, para a segurança”.
A conjuntura
internacional mais uma vez veio em socorro dos fazendeiros de Itu. A série de guerras napoleônicas na
Europa provocou a retomada da cotação elevada do açúcar. Os preços declinaram
um pouco somente a partir de 1830, mas mantiveram-se durante o século 19 em
nível comparado ao do século anterior. Entretanto, a partir de 1850 o café
tornava-se pouco a pouco no principal produto brasileiro de exportação,
deslocando o açúcar para uma segunda posição. Campinas, por exemplo, que antes
fora grande produtora e que em 1839
tivera 93 engenhos e uma produção de
158.477 arrobas, já em 1854 contava com apenas 44 engenhos e uma produção de
62.290 arrobas de açúcar. Enquanto isso, cresciam suas fazendas de café.
Nesse mesmo ano já eram 177 fazendas
produzindo 335.550 arrobas de café.
Em Itu, porém, o café não chegou a ultrapassar o açúcar nesse
período: eram 60 fazendas produzindo
16.702 arrobas de café, contra 164 engenhos produzindo 159.070 arrobas
de açúcar. Como bem demostrou a historiadora Maria Thereza Schorer Petrone, em
Itu estava concentrada as maior parte da indústria açucareira de São Paulo,
pois toda a Província tinha 667 fazendas de açúcar e uma produção total de
866.140 arrobas de açúcar.
J.J. von Tschuddi, nomeado embaixador no Brasil pelo Governo
da Confederação Helvética, visitou Itu
na década de 1860 e deixou a seguinte observação no seu livro de viagens - “no distrito da cidade cultiva-se em várias fazendas a cana de açúcar, sendo
algumas destas fazendas otimamente instaladas, nada ficando a dever aos
melhores engenhos de Pernambuco”.
Por outro lado, os fazendeiros ituanos disseminavam a
cultura da cana nas terras dos municípios ao seu redor. A lavoura de cana de Porto Feliz dever ser
considerada uma expansão da ituana -
“Gente de Itu, à procura de novas terras, levaram o interesse pela
lavoura canavieira à antiga Araritaguaba induzindo, inclusive, os primitivos
moradores a plantar cana”. Ao encerrar o período colonial, a antiga freguesia
de Araritaguaba, juntamente com Itu e Campinas, controlava a produção de açúcar
da Capitania.
Os ituanos foram também
responsáveis pela expansão dos canaviais até Piracicaba. Em 1790 o
governador da Capitania de São Paulo, Bernardo José de Lorena, solicitou ao
capitão-mor de Itu providencias necessárias para o povoamento das terras da
então freguesia de Piracicaba. Tomadas as providências, em pouco tempo a
cultura da cana se desenvolveu e oito anos depois havia um conjunto de três
engenhos produzindo 700 arrobas de açúcar.
De certa forma, a
cultura da cana em Porto Feliz e Piracicaba
era resultado da falta de terras em Itu.
Já em 1784 o capitão-mor de Itu dizia – “não se acham muitos terrenos,
onde possam estabelecer-se” para erigir novos engenhos. Em todo o caso, durante
um bom tempo desse novo “ciclo do açúcar” as terras da antiga povoação de Nossa Senhora da
Candelária formavam a maior área produtora da Capitania e depois Província de
São Paulo.
Enriquecidos, alguns
senhores-de-engenho mandavam construir sólidos e imponentes sobradões na
cidade. Mas eram sobradões que ficavam
desocupados e fechados durante a maior parte do ano. O costume era tão freqüente que chamou a atenção do
naturalista Auguste Saint–Hilaire. Ele anotou em seu livro Viagem à Província
de São Paulo que os proprietários só iam à cidade aos domingos, afim de
ouvir missa, “não se podendo mesmo em rigor computá-los como elementos
constituintes da população”. Os senhores-de-engenho ituanos permaneciam
isolados em suas terras levando uma vida modesta, sem grandes atividades
sociais e culturais. “De maneira geral, pode-se afirmar que não houve em São
Paulo, pelo menos durante o período colonial, uma sociedade do açúcar como
haveria mais tarde a sociedade do café, com suas ricas casas na cidade,
temporadas na Corte...”
Engenhos e sedes de fazendas
Dos engenhos do período restaram poucas evidências. Uma
idéia de como eram as fábricas de açúcar da região nos fins do século 18 e
primeiras décadas do 19 pode ser inferida a partir das construções, apesar de
posteriores, existentes na fazenda Vassoural
(Engenho Vassoural) em Itu.
Em Porto Feliz, das
sedes de fazendas destacam-se a da Fazenda do Moinho e o Engenho D’água. A sede
da Fazenda Engenho D’água foi construída em 1858, quando era seu proprietário
Antônio Paula Leite de Barros. A denominação da fazenda se deve à existência,
naquela altura, de um pequeno engenho tocado à água. O proprietário era um grande plantador de
cana-de-açúcar e foi um dos acionistas
da Companhia Açucareira de Porto Feliz, empresa que em 1878 colocou em funcionamento
o Engenho Central de Porto Feliz.
O casarão de grandes dimensões apresenta uma pavimento inferior, que
acompanha toda a extensão da construção. Esse pavimento inferior, com piso de
terra batida, era usado como depósito de
mantimentos, ferramentas, utensílios
agrícolas, e arreios.
A parte superior, com assoalho de madeira, era o espaço da moradia isolada. Uma grande
sala central de entrada, a chamada “sala da frente”, própria das casas do tempo do açúcar, dava acesso aos dormitórios e locais de
serviço doméstico, incluindo a cozinha. Uma parcela das atividades de preparação
dos alimentos era realizada fora da casa, em um puxado pegado à casa e munido
de fogão e forno e aparelhagem para o fabrico de farinha de milho ou de
mandioca. Nos locais de serviço doméstico se fazia o queijo e se guardava os
gêneros. A cozinha era uma vasta dependência, provida de fogões, grandes mesas,
pilões, potes de água, tachos de cobre.
No centro da planta, as alcovas. Antigamente denominadas
“camarinhas”, as alcovas foram aperfeiçoadas e profusamente adotadas do século
18 em diante, principalmente nas casas urbanas. Mas, verdadeiro contra-senso,
foram adotadas na roça, onde não havia problemas de espaço. A tradição
identifica as alcovas como o lugar ideal
de dormir, onde o recato e a segurança se aliavam salvaguardando a intimidade.
Eram cubículos estanques sem ar e luz diretos, onde as lamparinas dos oratórios
e candeias a óleo de algodão se encarregavam de aquecer e viciar a atmosfera
enclausurada, como afirmou o arquiteto Carlos Lemos em estudo sobre a
arquitetura tradicional paulista.
Olhando do lado externo,
o casarão apresenta fachadas simétricas, com todas as janelas e porta
alinhadas. A fachada principal apresenta três janelas de um lado e quatro do
outro, e uma ornamentação simples, de forma a permitir diferenciá-la das demais
fachadas. A escada de acesso ao
pavimento superior sobe paralela à sua fachada principal, levando a uma porta
de entrada no meio da construção.
Com o passar do tempo o casarão sofreu diversas
intervenções, que modificaram a distribuição e o uso dos cômodos internos. A
senzala, próxima da construção principal, cedeu espaço às pequenas casas de
colonos. As “casinhas”, privadas
masculina e feminina que não tinham sistema de esgoto, e o primitivo moinho, o “engenho d’água”,
desapareceram. Durante algum tempo a fazenda Engenho D’água forneceu cana ao
Engenho Central. Mais adiante suas terras e a sede foram incorporadas à Société
de Sucrèries Bresiliennes, com sede em
Paris, que adquiriu o antigo Engenho Central e o transformou em moderna usina
de açúcar.
Atualmente, a velha sede da Engenho D’água, exemplar típico
da arquitetura do açúcar na bacia do rio Tietê, pertence à União São Paulo.
Trata-se de construção que merece ser preservada por seu valor arquitetônico (um dos poucos
exemplares remanescentes da arquitetura do açúcar em nossa região) e histórico
(testemunho arquitetônico de um período da formação social, cultural e
econômica Porto Feliz). Além disso, é um referencial simbólico da cidade do
mais alto significado. Quem em Porto Feliz não se vale do Engenho D’água como
ponto de referência (de orientação geográfica, de recordação sentimental, de
“estilo de casa”, de indicação de local de trabalho etc.)
O levantamento exaustivo
das arquiteturas do açúcar na região foi realizado pelo arquiteto Júlio
Roberto Katinsky, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo, dentro de um
projeto de identificação dos
remanescentes de engenhos de açúcar da primeira fase da instalação dessa
indústria no planalto paulista. O levantamento identificou os alambiques em
torno de Cabreúva e as fazendas em torno de Itu e Porto Feliz e Salto, nas
margens direita e esquerda do Tietê.
O sistema de engenho-central
Na primeira metade do século 19, um século de tantas
novidades tecnológicas, há de se notar
que a cultura da cana e o fabrico do açúcar na região, bem como no resto do
país, ainda se processavam com base em
técnicas antiquadas. Tanto assim que o uso do arado na fazenda do Marques de
Monte Alegre, nas proximidades de
Capivari, despertou a atenção de J. J.
von Tschuddi. Ao registrar o fato no seu diário de viagem, justificou sua menção “porque este instrumento agrícola
é quase desconhecido em toda a Província, embora a configuração do terreno se preste
muito bem a seu uso”. Apesar dessa
observação, cabe lembrar que o marechal Pedro Daniel Muller faz referência ao
uso do arado nas proximidades das vilas de Porto Feliz, Itu e São Carlos
[Campinas] no Quadro Estatístico da Província de São Paulo , relativo a
1836/1837. Outro viajante da segunda metade do século 19, Augusto Emílio
Zaluar, enxergou um estado de decadência
em Porto Feliz naquele tempo. Segundo ele, existia um conjunto de
circunstâncias favoráveis ao progresso do povoado: clima ameno e sadio e
fertilidade do terreno, bom para o cultivo de café, cana-de-açúcar, chá e fumo.
Zaluar entendeu a decadência do lugar como resultado da falta de trabalhadores
na lavoura e em decorrência do estabelecimento de uma nova rota para as monções
cuiabanas, que no século 18 partiam do antigo porto de Araritaguaba. A
população de Porto Feliz, que na primeira metade do século 19 chegara a 11.000
habitantes, em 1860 estava reduzida a 7.000 habitantes, divididos em 5.000
livres e 2.000 escravos. O comércio nessa mesma época era insignificante, segundo
Zaluar: algumas tabernas e umas poucas lojas de fazendas e armazéns.
Na área do fabrico é interessante ressaltar a iniciativa de João Tibiriçá
Piratininga, que por volta de 1850
encomendou na Europa um moderno equipamento destinado à fábrica de açúcar
da sua fazenda em Indaiatuba. Porém, não se tem notícia dos resultados da sua
experiência, nem mesmo se de fato ela foi efetivada.
Produzido assim com técnicas ultrapassadas, o açúcar
brasileiro não era páreo para o açúcar porto-riquenho, cubano ou filipino no mercado norte-americano e
muito menos para o açúcar de beterraba
nos mercados europeus. Chegou-se a conclusão que era impraticável a
continuidade do velho sistema de engenhos isolados. Surgiu então a proposta
renovadora do sistema de engenhos centrais. Nesse sistema, o engenho-central deveria ser uma grande
unidade de produção, separada da área agrícola e equipada com maquinaria
moderna, e dentro da fábrica deveria ser
proibida a exploração do trabalho escravo. O sistema de engenho-central respondia
a necessidade de adaptação da fabricação do açúcar à passagem do trabalho escravo ao trabalho
livre. O seu aparecimento revolucionou os meios de produção e promoveu o uso de
estradas-de-ferro, com a substituição do transporte animal pelo transporte à
vapor. O primeiro a ser implantado no Brasil foi o Engenho Central de Quiçamã,
no município de Macaé, Rio de Janeiro. Por sua vez, o primeiro da então
província de São Paulo foi o Engenho Central de Porto Feliz, que foi inaugurado
a 28 de outubro de 1878.
O projeto e a construção do Engenho Central de Porto Feliz
coube à Companhia Açucareira de Porto Feliz, uma sociedade organizada por
Joaquim Carlos Travassos, Bernardo Avelino Gavião Peixoto, Augusto Fomm, José
Manuel de Arruda Alvim, Luís Antônio de Carvalho, Delfino Antônio de Carvalho e
Antônio de Paula Leite de Barros. O
grande edifício do novo engenho tinha a forma de cruz, sendo cada asa
apropriada a uma fase da produção do açúcar, como às moendas e às casas de
caldeira, purgar e destilar. Essa planta em cruz teve uma certa aceitação em
várias regiões açucareiras. Ruy Gama, estudioso da arquitetura e tecnologia do
açúcar, alertou para o fato de a planta adotada ser uma planta
internacionalizada, como o são as máquinas e aparelhos do engenho. Mas parece
ser a última das plantas propostas para o engenho, “permitindo que o
proprietário, postado na intersecção dos braços da cruz, vigiasse pessoalmente
todos os trabalhos”, como grifou Ruy Gama,
inspirado em Michel Foucault , de Vigiar e punir.
O Engenho Central de Porto Feliz foi absorvido em 1907 e
totalmente remodelado pela Société de Sucrèries Bresiliennes. A nova usina
resultante dessa intervenção produziu açúcar e álcool até 1991, ano no qual foram encerradas suas
atividades mais que centenárias. As
imponentes ruínas que se vêem hoje, às margens do Tietê, pouco tem a ver com a
construção pioneira de 1878.
Jonas Soares de Souza
Museu Paulista - USP
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