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terça-feira, 26 de abril de 2016
Pré-história das monções
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo, 4 janeiro de 1957
Sérgio Buarque de Holanda
À leveza e ao fácil meneio das igaras de casca não corresponderia
necessariamente, como se pode pensar, uma fragilidade excessiva. Contra essa
suspeita milita o fato de serem essas canoas preferidas às de lenho inteiriço
justamente nos lugares mais acidentados de certos rios, isto é, mais cheios de
embaraços, tropeços e perigos para a navegação. Já se notou como nas partes
encachoeiradas do Rio Madeira, por exemplo, é que elas prevalecem quase
exclusivamente, só encontrando a competição das outras, feitas de troncos
escavados a fogo, machado e enxó, onde a mareação pode fazer-se
independentemente de maiores estorvos.
Embora o “civilizado” tenha conseguido modificar de algum modo
semelhante situação, o fato é que ela ainda persiste, no essencial, até os
nossos dias. A construção pouco dispendiosa das canoas de casca admitia que
fossem elas abandonadas sem maiores prejuízos onde se mostrassem inúteis. Dos
antigos paulistas sabe-se que tinha o hábito de largar suas igaras nos maus
passos, fabricando-as de novo quando delas necessitassem. Hábito, esse, herdado,
por sua vez, dos primitivos moradores da terra, assim como o de as afundarem ou
simplesmente quebrarem.
Em seu Ensaio sobre as construções navais indígenas, observa Antonio
Alves Câmara como, entre muitas tribos indígenas, era uso mergulhar as canoas
nos lugares de remanso e, em seguida, amarrarem-nas ao fundo, de onde podiam
ser retiradas a qualquer momento.¹ O costume de ocultá-las, e mesmo
destruí-las, sempre que preciso parece ter sido muito generalizado. Curt
Nimuendajú, ² que ainda pode assinalar entre os parintintim da Amazônia,
relaciona-o à necessidade em que se viam esses índios de evitar que delas se
aproveitasse o inimigo. Às mesmas providências não deixavam de recorrer os
nossos mamelucos. Assim, em depoimento prestado em janeiro de 1685 às autoridades
castelhanas de Assunção do Paraguai, certo índio fugido aos maloqueiros de São
Paulo referia como, devendo regressar estes à sua terra como o gentio preado,
inutilizavam de antemão todas as canoas que os tinham transportado.
Em outros casos, onde devesse ser breve a varação, ou em sítios em que
escasseavam os troncos apropriados, transportavam-na por terra, valendo-se de
cordas ou correias de couro. Isso ocorria mais frequentemente, no entanto, com
as canoas de madeira. As outras, as de casca, admitiam recursos mais simples,
como o de carregá-las às costas dos índios ou emborcadas sobre as suas cabeças,
tal como sucede entre certas populações particularmente de nosso extremo norte,
observadas por Theodor Koch-Grünberg.³
Tais cuidados são explicáveis quando se considera que muitas dessas
igaras, apesar do pobre material de que são feitas, estão longe de constituir
simples recurso de emergência para índios e sertanistas. Mesmo entre gente mais
sedentária podiam elas enfrentar, de algum modo, a competição das canoas de
madeira. Assim, num inventário paulista, no ano de 1599, o de Isabel Fernandes,
mulher de Henrique da Cunha, que fora juiz ordinário da vila, figura
expressamente uma canoa “de casca” entre a fazenda que se mandou avaliar e
vender na praça4. Não apenas a vantagem do custo relativamente baixo, mas ainda
a da durabilidade, tão notável quanto sua resistência aos obstáculos que
embaraçam e atropelam a mareação, justificam o largo uso que se chegou a fazer
dessas canoas.
Aludindo a essa última vantagem, afirmou Georg Friederici 5 que elas
chegaram a alcançar, em condições normais, até seis anos de vida, enquanto as
de pau inteiriço seriam incapazes de durar mais de um verão. É certo que suas
observações nesse caso procuram abarcar todo o continente americano tomando em
bloco e grosso modo e não se detêm nas condições especificamente brasileiras.
Além disso, a madeira das canoas monóxilas a que se refere é declaradamente a
do álamo, não a de qualquer das espécies botânicas usuais entre nós para a
fatura de semelhantes embarcações.
Todavia, quando recorre a uma só variedade de madeira, não parece ter
ela em mira restringir o alcance de sua teoria da durabilidade menor das canoas
de madeira inteiriça, e sim ilustrar essa mesma teoria, socorrendo-se, para
tanto, de um exemplo mais eloquente do que característico. Cabe, em todo caso,
perguntar se esse empenho de fazer mais expressiva uma convicção pessoal não
tenderia aqui, como sucede constantemente em circunstâncias tais, a desfigurar
os fatos. Ao menos no que diz respeito às grandes canoas monóxilas de treze e
mais metros de comprido, que se usaram na era das monções, construídas
literalmente segundo as velhas técnicas indígenas, há certeza de que serviam
ordinariamente, não apenas um, mas vários verões e invernos, nas expedições
regulares entre Araritaguaba e Cuiabá. E quando principiarem a escassear nas
beiradas do Tietê e tributários os troncos corpulentos, próprios para o seu
fabrico, as canoas já usadas e muitas vezes remendadas irão formar o grosso das
frotas de comércio. Assim é que das treze que foram na Real Monção de 1818,
quatro apenas tinham sido especialmente fabricadas para essa viagem, segundo
consta de documentos que se conservam manuscritos no Arquivo do Estado de São
Paulo.
Seja como for, parece improvável que pudessem elas superar por mais de
dez ou quinze anos, se tanto, os maus-tratos a que as expunha uma longa e
penosa navegação. Consta, em outro documento manuscrito, que em 1798, de vinte
canoas de comércio aprontadas um decênio antes, quando da chegada à capitania
do governador Bernardo José de Lorena, e desde aquele tempo deixadas em ranchos
protetores junto ao embarcadouro de Porto Feliz, pouquíssimas podiam
considerar-se aptas para o serviço. O quase abandono em que se achavam, sem
abrigo seguro, sem cuidados maiores que nelas atalhassem a obra do tempo e,
sobretudo, sem uma eficaz vigilância contra a maldade dos desocupados,
numerosos na região e certamente mais daninhos do que todos os contratempos que
as poderiam esperar em viagem, bastavam para as condenar, verdadeiras canoas de
ninguém, a uma ruína rápida e sem remédio.
Mesmo assim andariam elas bem longe daquela efêmera duração atribuída
por Friederici às embarcações de madeira inteiriça. E é fácil supor que maiores
seriam suas perspectivas de conservação se a escolha das árvores próprias para
seu fabrico não tivesse a limitá-las às possibilidades da flora paulistana e,
ainda mais, à consideração da capacidade exigida para o transporte de carga
numerosa. Vinte anos de vida teriam, segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, as
de camaru ou angelim preto do Pará, que por outro lado não alcançavam as
dimensões médias das canoas das monções, feitas de ximbouva ou peroba.
Ora, se peca ou exagera a pretensão de que as embarcações de pau
inteiriço alcançam pequeníssima duração, não se poderia imaginar o dar às
igaras? Ou antes, não se fundaria essa crença num simples limite de exceção,
atingindo em condições quase ideais? Das canoas de casca de jatobá, as mais
geralmente usadas no Brasil, sabe-se, de acordo com estudos modernos, que têm
uma duração máxima de dois anos, em condições normais. Sujeitas a viagem
acidentadas e trabalhosas, entretanto, conservam-se por muito tempo.
A verdade é que sua capacidade de resistência aos obstáculos naturais,
que caracteriza esse tipo de embarcação, está longe de se relacionar de modo
exclusivo à durabilidade, que também pode ser comprometida pelo fato, entre
outros, de a cortiça de que é fabricada absorver, em geral, comparada à
madeira, uma quantidade bem maior de água, o que prejudica evidentemente sua
conservação. Além disso, a própria circunstância de serem usadas frequentemente
em lugares acidentados tende, na prática, a sujeitar as igaras a um rápido
desgaste.
Bruno De Giusti restaura suas obras da Igreja Matriz
(Sexta-feira, 04 de Março de 2005 - Revista Viu)Uma grande restauração nos quadros e pinturas do teto e azulejos da Igreja Matriz Nossa Senhora Mãe dos Homens está sendo feita pelo autor de suas obras, o artista plástico Bruno De Giusti. Os reparos começaram há dois meses (fevereiro de 2005) e tem prazo indeterminado para serem finalizados. A reforma inclui os 14 quadros da via sacra e oito telas, como uma reprodução da obra “A Santa Ceia” de Leonardo da Vinci e uma obra do próprio De Giusti, chamada de “As Bodas de Caná”, considerado por ele um de seus principais quadros. Ambos feitos na década de 50.
As obras, todas com significado específico, segundo o pintor, são de grande importância para a história da igreja católica “A cada traço existe uma história, um significado” explica De Giusti referindo-se à saga de Jesus Cristo.
O PINTOR – As pinturas, que enriquecem a decoração nos azulejos da igreja de Porto Feliz, retratam, em imensos painéis, algumas passagens da história da cidade. A entronização de Nossa Senhora e a partida de uma monção estão devidamente registradas na obra de arte.
Morador da cidade de Sorocaba, De Giusti é conhecido em Porto Feliz e região pelos grandes trabalhos concluídos na Igreja Matriz Nossa Senhora Mãe dos Homens desempenhados durante 12 anos.
O artista conta que quando desenvolveu o projeto em Porto Feliz nem imaginava que ia ter confeccionar os famosos azulejos, os quais tanto encantavam o exigente padre Ghizzi ( pároco de Porto Feliz por muitos anos), com quem o pintor teve uma cordial relação na época.
Eu, Samuel da Rocha, achando-me doente, mas em meu prefeito juízo, faço meu testamento pela maneira seguinte. Declaro que sou católico (...) Declaro que sou natural desta cidade (Porto Feliz), filho de Domingos e Joana, já falecidos. Declaro que sou casado com Rosa de Arruda de cujo matrimonio não tivemos filhos algum, e não tendo por isso herdeiros necessários, instituo por minha única herdeira a dita minha mulher. Declaro que devo a minha comadre Cândida, escrava de Joaquim de Toledo, a quantia de 400 mil réis. Declaro que deixo liberto o meu escravo João com a condição dele pagar a dita minha comadre os 400 mil réis que lhe devo. Depois de efetuado o dito pagamento lhe será entregue a carta de liberdade. Declaro que deixo à irmandade de São Benedito a quantia de 16 mil réis, e igual quantia à Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte; e a mesma quantia para a Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Declaro que quero que se me diga uma capela de missas por minha alma. Declaro que deixo a minha ferramenta de carpinteiro para o meu escravo João. Rogo queiram ser meus testamenteiros em primeiro lugar a minha mulher, em segundo o senhor Evaristo Rodrigues Leite, e em terceiro o senhor José Cardoso; e por essa forma dou por concluído este meu testamento que vai escrito e a meu rogo assinado por Maximiano José da Mota por eu não saber escrever. Porto Feliz, [19/04/1860].
O escravo de Samuel é outra história
Da trajetória de Samuel, podem-se observar alguns aspectos não tão incomuns a forros. Nasceu em cativeiro e permaneceu escravo até mais ou menos seus 28 anos de idade. Participava das instâncias de socialização de libertos, como as irmandades de negros e pardos de Nossa Senhora da Boa Morte e de São Benedito. Apadrinhou nove crianças livres e nove escravas. Se o “empenho” e “o compadresco” eram, no tempo do Rei, mas também no império do Brasil, “uma mola real de todo o movimento social” (Almeida, 1985, p. 126), ser forro e senhor não significou vedar relações com escravos e outros egressos do cativeiro, nem com livres. Seria um antagonismo em equilíbrio, diria Gilberto Freyre (1987).Logo, o carpinteiro negro Samuel Rocha era chefe de domicílio em 1836 e 1843, quando ainda não tinha escravo. Reproduziu a escravidão com o próprio trabalho e nem por isto deixou de ser carpinteiro. Para seu cativo deu a ferramenta de carpintaria para se libertar. Sabia que o trabalho artesão propiciava meios de inserção social para ex-escravos, inclusive para o pagamento da liberdade. Pelo exposto, a experiência de trabalho em cativeiro trazida para a vida em liberdade contribuía para a aquisição de escravos e gozo de estima. Aliás, dos ex-escravos homens do padre André da Rocha Abreu de que se tem informação, quase todos que encabeçaram domicílios tinham um ofício, como o padrasto de Samuel, Fortunato da Rocha, pedreiro, e Francisco da Rocha, sapateiro, sendo que este último era também senhor de escravo1. Em suma, estes casos estão longe daquelas imagens nas quais um forro compra escravo e pára de trabalhar. Ser senhor não é sinônimo de ociosidade, e trabalho escravo e trabalho livre não “eram sistemas historicamente incompatíveis” (Eisenberg, 1989, 237,223).
No inventário de Samuel havia bens relativamente significativos para quem passou mais de um terço da vida na escravidão. Em 1860, valiam 2.832$000 (2 contos e 832 mil réis), incluindo João carpinteiro, no valor de 2 contos, uma morada de casas, 700$000, dois terrenos avaliados em 28$000, etc. Devia a 10 pessoas a quantia de 114$020, incluindo um escravo de Francisco de Arruda,que sequer foi nomeado, mas ainda assim demonstra certa capacidade de crédito dos escravos, tal como a comadre Cândida. As dívidas demonstram também a consideração social que o forro desfrutava, pois dívidas, além do aspecto econômico, significam acesso a crédito, co-fiança, confiança. Outrossim, o escravo João foi avaliado no inventário, sugerindo que a dívida ainda não tinha sido paga, embora sua comadre Cândida não tenha sido mencionada entre os credores.
Samuel da Rocha, trabalhador forro carpinteiro, possuía três catres, um armário, duas mesas, uma caixa grande, uma pequena, uma cadeira de palha, 10 taboas, tudo valendo 26$000. A minha ferramenta de carpinteiro destacada no testamento valia parcos 2$000, o bem de menor valor monetário do inventário, mas muito provavelmente foi o que deu a liberdade a Samuel e talvez desse a seu escravo João. Teria João carpinteiro chegado à alforria no contexto pós-1850, momento a partir do qual o fim do tráfico atlântico de cativos ocasionou a elevação do preço dos escravos? Essa é outra história.
Roberto Guedes
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Samuel da Rocha: escravo, aparentado, forro, carpinteiro e senhor (Porto Feliz, São Paulo, Século XIX)
Roberto Guedes
Porto Feliz história - escravidão subsídios
Os Rochas Abreu e os Josés da Rocha: alianças
Em 1794, houve o casamento dos escravos Francisco, crioulo nascido em
Porto Feliz, e Maria, crioula natural das minas de Cuiabá. Ambos filhos de pai
incógnito e de mães escravas, e todos pertencentes ao padre André da Rocha
Abreu (pároco de Porto Feliz na época). Uma das testemunhas do casamento foi Francisco Correa de Moraes Leite,
outrora capitão-mor da vila de Porto Feliz durante 23 anos, entre 1797 e
1820.19 Os elos que ligavam o capitão aos nubentes cativos vêm de sua relação
com o proprietário, o padre André, seu cunhado.
Os Rochas Abreu estavam ligados à rota das monções, via fluvial que
ligava Porto Feliz à vila de Cuiabá, em Mato Grosso. Na primeira metade do
setecentos, o pai do padre André, Domingos da Rocha Abreu, se transferiu do
Arcebispado de Braga para São Paulo, onde se casou com D. Francisca Cardoso de
Siqueira. Posteriormente, estabeleceu-se na freguesia de Araritaguaba (futura
Porto Feliz em 1798), aí falecendo em 1784. Homem de "conhecida
verdade", em 1767 era um dos cinco mais ricos da vila de Itu. De seu
casamento com dona Francisca nasceram dez filhos, dos quais interessam aqui Ana
Francisca da Rocha e o padre André da Rocha Abreu.
Ana Francisca da Rocha se casou em 1782 com Francisco Correia de Moraes
Leite, então apenas capitão de companhia. Em 1824, já como capitão-mor, de
posse de 65 escravos, fez 1.600 arrobas de açúcar, 1.000 alqueires de milho,
150 de feijão e 40 de arroz. Um dos filhos do casal foi o brigadeiro Joaquim
José de Moraes Abreu, que se tornou membro do Conselho da Província, vereador
da Câmara Municipal de São Paulo, deputado provincial e vice-presidente da
Província de São Paulo. Logo, é uma família de importância política e econômica
em São Paulo, desde o século XVIII. Ramos dos Rochas forros se aliaram a esta
família de potentados, mas uma aliança que começou quando ainda eram escravos.
Por isso, o capitão foi o padrinho de casamento de Francisco e Maria, escravos
do padre. Maria era natural de Cuiabá e era o capitão que organizava as
expedições fluviais. Quiçá o sogro e os cunhados do capitão, comerciantes que
atuavam na rota, trouxeram a cativa de Cuiabá. Por sua vez, o noivo, natural de
Porto Feliz, deve ter nascido entre os Rochas, era cria da casa. Em 988
casamentos de escravos entre os anos de 1787 e 1833, o capitão-mor só
testemunhou dois. Em suma, provavelmente os nubentes conviviam com a família
senhorial há muitos anos.
O outro filho de Domingos da Rocha Abreu que se estabeleceu em Porto
Feliz foi o padre André da Rocha Abreu. Foi vigário de Porto Feliz entre 1798 e
1820, quando faleceu. Parodiava um verso quando comia bolo: "Destes
bolinhos, Maria". Maria era também o nome de sua escrava cozinheira,
provavelmente a que teve o capitão-mor como testemunha de casamento. Como
gostava de folheado, o padre André ordenava à sua escrava cozinheira:
"Maria, faça folhados, eu gosto, é como hóstia". Bom garfo, o padre
sabia música e tocava piano. Pôs o primeiro piano na vila, instrumento
conduzido por braço escravo de Santos a São Paulo.
Em 1803, o reverendo André passou cartas de liberdade ao mencionado
casal Francisco e Maria, e também a seus filhos Jesuíno, Celestina, Lucina,
Generoso, Duarte e Benigno. Entre 1803 e 1820, o padre, em geral, libertava um
membro de cada família que vivia consigo, precisamente a mulher. Os libertos de
1803 formavam a única família que teve todos os seus componentes alforriados
desde então, o que a diferenciava de todas as demais subalternas ao reverendo.
Por que o privilégio?
Provavelmente porque eram escravos domésticos. Maria devia ser a cozinheira que fazia pastéis
com gosto de hóstia para o padre, alegrando seu estômago e seu espírito.
Francisco e Maria foram dos primeiros escravos do padre a se casar e, um filho
desse casal, Jesuíno, foi talvez o primeiro cativo nascido na casa, pois, em
1798, já tinha seis anos. Na verdade, outra família escrava, a do casal
Domingos Velho e Joana, já estava junta em 1798 e também tinha um filho de seis
anos. As diferenças sabidas entre os casais cativos são as seguintes. Francisco
e Maria tinham mais filhos. Domingos Velho era Mina e Francisco nasceu em
Araritaguaba (Porto Feliz), ou seja, o segundo devia ser criado na casa dos
Rochas. Maria era natural de Cuiabá, para onde os cunhados do padre faziam
expedições. Com 30 anos em 1798, talvez as relações de Maria com os Rochas
fossem originárias de Cuiabá. Outra diferença é que o padrinho de casamento foi
o capitão-mor.
A preferência do padre tornou os filhos de Francisco e Maria seus
herdeiros em testamento de 1820. André disse que os criou com amor, sendo correspondido
com servidão.
Voltando a 1805, o reverendo André da Rocha, branco, contava 48 anos de
idade. Tinha 17 escravos e, além de Jacinto, os demais agregados eram a família
parda alforriada. Em 1808, com 51 anos, o vigário colado, sempre branco, tinha
15 escravos. Vivia com os agregados pardos e seus escravos negros. Em 1810, o
padre André tinha 13 escravos. Os agregados permaneceram no domicílio,
acrescido de duas novas agregadas, dentre as quais Maria, de um ano de idade.
Esta Maria foi registrada como escrava no batismo, em 06 de agosto de
1809, apesar de o assento ter sido feito no livro de livres. Era "filha de
Francisco, escravo do Reverendo Vigário André da Rocha Abreu", sem
referência ao nome da mãe. O assento foi redigido pelo padre Manoel Ferraz
Sampaio, mas, no canto, à margem da folha, lê-se: a "batizada Maria é
filha de Francisco e Maria, sua mulher. Todos estão forros e libertos",
assinado pelo padre André da Rocha Abreu. Portanto, além de atestar a
maternidade, corrigiu o assento para referendar a condição de forro de
Francisco e de Maria. Como André tomou ciência do equívoco em meio a tantos
registros fica por se saber. O fato é que continuou amparando seus agregados no
jogo da troca das relações entre senhores e subalternos, já que, em uma
sociedade escravista, ser registrado como livre ou escravo num livro paroquial
é de suma importância, pois pode definir a condição jurídica das pessoas.
Todavia, 55 anos depois, em 1864, no auto de liberdade, aquele mesmo João de
Camargo do início deste artigo, casado com uma Rocha, sobrepôs ao registro de
batismo uma escritura pública de doação de escravos como prova; doação escrita
pelo próprio padre André, registrada em cartório.
De retorno ao padre André e seus subalternos, em 1813 ele estava com 57
anos de idade e 15 escravos. Os pardos forros permaneciam como dantes e só se
acrescentou que um deles, Jesuíno, era "organista". Em 1815, o padre
era também senhor de engenho e de 16 escravos. Os agregados pardos estavam
acompanhados de Francisco, o único negro entre eles, recém-alforriado. Em 1818,
André da Rocha Abreu tinha 62 anos. Seus agregados pardos forros de antes
permaneciam no domicílio. Havia apenas cinco escravos em sua casa.
Até aqui o que se observa entre os escravos e agregados, em suas
relações com André, é que estavam em uma cadeia diferenciada de privilégios e
exclusões, em uma política de domínio que distinguia os merecedores e os não
merecedores de prêmios. Toda uma família foi alforriada desde 1803 e amparada
pelo padre quando esta condição foi posta em dúvida em um batismo. Em tempo,
não se deve esquecer que, em tese pelo menos, ser forro implica em trabalhar
para si, ainda que trabalhador livre não seja sinônimo de trabalho autônomo.
Significa também uma diferenciação jurídica em uma sociedade escravista, ou
seja, alforria é mobilidade social ascendente. Os agregados do padre, ao saírem
do cativeiro, até mudavam de cor, tornaram-se pardos, deixaram de ser negros.
Isto fazia diferença, posto que ser pardo já implicava um distanciamento em
relação à escravidão. Um ideal hierárquico calcado na cor/condição social.
Os demais escravos do vigário não tiveram a mesma sorte. Alguns
continuaram em cativeiro; outros foram libertos, mas membros de suas famílias
continuaram na escravidão. Alguns foram doados à família parda alforriada. Foi
isso que, em 1864, João Leite de Camargo argumentou para manter o domínio sobre
o afilhado de Rosa, José, filho de Generosa. Mas quem era Generosa? Nada se
sabe sobre seus parentes. A única informação é que o padre André a doou à
"mulatinha" Esmelinda, em 1820. Então, a "mulatinha"
contava cerca de 23 anos de idade, e a cativa Generosa, dois anos. Esmelinda
casou-se com o réu em 1827. Quem sabe Generosa ajudou a compor seu dote? A
certeza é que para continuarem como senhores em 1864 era preciso manter José,
filho de Generosa, em cativeiro. No contexto de fechamento do acesso à
mão-de-obra via comércio de escravos, a perpetuação da condição senhorial de
uma família forra dependia da continuidade da escravidão de uma família
escrava.
Roberto Guedes -
Parentesco, escravidão e liberdade (Porto Feliz, São Paulo, século XIX)
Porto Feliz história colonial-subsídios
Cel Francisco Corrêa de Moraes Leite-primeiro capitão-mor da cidade
Dono de considerável fortuna,
de fazenda de cana no bairro dos Pilões, em Araritaguaba. Foi o primeiro capitão-mor
de Porto Feliz, a partir de 1797, quando a freguesia foi elevada a vila. Deixou
o posto em 1820 pela idade/saúde e foi reformado como coronel. Foi sucedido no
cargo pelo irmão Antonio José Leite da Silva, que foi capitão-mór de 1820 a
1823. Em 1823, Francisco foi convidado a ser membro do governo provisório da
província (de São Paulo ) (após o movimento político de 1821, que levou à
primeira Constituição em 1823), mas não aceitou devido aos problemas de saúde.
Acabou morrendo em 1835 em Porto Feliz. (OBS: a página com o histórico dos
deputados provinciais no site da Assembléia Legislativa o inclui como membro do
governo provisório).
Na política, tinha entre seus
rivais o alferes Manuel Joaquim Pinto de Arruda, filho de Carlos Bartolomeu de
Arruda Botelho, que havia sido o segundo capitão-mór da freguesia de
Piracicaba. Ele fez uma representação contra Botelho ao capitão-mór governador,
Antonio José de Franca e Horta, em 14 de janeiro de 1810. O governador
respondeu em 8 de fevereiro dizendo que repreendera o alferes e mandara que ele
se emendasse com ele. O motivo da disputa era a construção da estrada que
ligaria o povoado de Piracicaba a São Paulo.
Em 12 de agosto de 1811
Francisco recebe correspondência do governador da Capitania mandando-o prender
o sargento reformado Carlos de Arruda Botelho, que diante da perspectiva de
substituição do então governador pelo Marquês de Alegrete, Luiz Teles da Silva,
ameaçava o povo de Piracicaba com represálias. A tática deu certo, porque
correspondência subsequente do governador dava conta de que Carlos Botelho
assinara documento reconhecendo não ser o dono da área na qual se assentava ao
povoado de Piracicaba.
Representação ao governador da
província, datada de 23 de janeiro de 1813 pelo capitão-mór de Porto Feliz, Francisco
Corrêa de Moraes Leite, protesta contra a tentativa da Câmara de Itu de se
assenhorear de território que, entendia ele, estava sob jurisdição da vila de
Porto Feliz. Tratava-se do sertão de Araraquara, área compreendida pela
freguesia de Piracicaba (antiga Constituição). Dizia ele:
"Há dois anos, pouco mais
ou menos, já têm havido algumas dúvidas sobre os campos do sertão de Araraquara
entre esta Câmara e a da vila de Itu, de modo que vindo o desembargador
ouvidor-geral e corregedor da Comarca por esta vila em diligência, esta Câmara
lhe participou a desordem, além de já lhe ter dado parte por ofício; e porque
fosse necessário que o mesmo ministro ouvisse também a Câmara de Itu, e,
conformando-se com o parecer dela, procedeu a novas divisões, talvez na
inteligência de que assim se consertassem as dúvidas".
O capitão Francisco Corrêa de
Moraes queixava-se que a pequena freguesia de Piracicaba estava sujeita a dois
capitães-mores, ele e o um rival de Itu: a Câmara ituense havia, com o apoio do
ouvidor, nomeado Inácio Paes de Almeida como capitão da freguesia de
Piracicaba, com jurisdição inclusive sobre os habitantes do sertão de
Araraquara. Era época de confecção de lista de moradores, e ele argumentava que
a freguesia se situava dentro dos limites da vila de Porto Feliz, senão por
outro motivo, por se situar esta mais próxima de Piracicaba do que Itu. E
alfinetava os vizinhos invasores: "de modo de que pela distância não
tomaram até hoje naquela parte conhecimento de coisa alguma, senão agora que se
principiou a povoar o sertão de Araraquara, lugar este ainda mais impróprio
para aquele comando (de Itu) pela distância".
Para reforçar seu argumento,
Corrêa de Moraes recordava ao governador que "com tanto desvelo me ter
empregado no Real Serviço, principalmente nas grandes e trabalhosas
expedições", isto é a organização das monções que desciam o Tietê em
direção às minas de Mato Grosso. (Caixa # 54 do Arquivo do Estado de São Paulo,
citado por Alberto Lemos em "História de Araraquara", pág. 115).
A região da atual cidade de
Porto Feliz começou a ser povoada em 1693. Em 1700, Antonio Pimentel ergue a
primeira capela. Em 1728 o povoado é elevado à condição de freguesia. A
construção da igreja matriz de Nossa Senhora dos Homens é de 1745. E a promoção
a vila ocorre em 1797, com a mudança do nome de Araritaguaba para Porto Feliz.
A elevação a cidade é de 1858. No Recenseamento de 1798,
aparece como capitão-mór e um dos 14 senhores de engenho de Porto Feliz.
Foi o executor de ordem régia
de novembro de 1817 determinando a contagem de todas as propriedades em cada
vila de cada Capitania. Como à época ainda era o capitão-mór de Porto Feliz,
procedeu o recenseamento que descobriu haver 737 propriedades na vila e seu
distrito. (História de Araraquara, pg. 153)
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