terça-feira, 26 de abril de 2016

Loja Simeira, na rua Altino Arantes, hoje Lojas Cem



Pré-história das monções

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo, 4 janeiro de 1957



Sérgio Buarque de Holanda


À leveza e ao fácil meneio das igaras de casca não corresponderia necessariamente, como se pode pensar, uma fragilidade excessiva. Contra essa suspeita milita o fato de serem essas canoas preferidas às de lenho inteiriço justamente nos lugares mais acidentados de certos rios, isto é, mais cheios de embaraços, tropeços e perigos para a navegação. Já se notou como nas partes encachoeiradas do Rio Madeira, por exemplo, é que elas prevalecem quase exclusivamente, só encontrando a competição das outras, feitas de troncos escavados a fogo, machado e enxó, onde a mareação pode fazer-se independentemente de maiores estorvos.
Embora o “civilizado” tenha conseguido modificar de algum modo semelhante situação, o fato é que ela ainda persiste, no essencial, até os nossos dias. A construção pouco dispendiosa das canoas de casca admitia que fossem elas abandonadas sem maiores prejuízos onde se mostrassem inúteis. Dos antigos paulistas sabe-se que tinha o hábito de largar suas igaras nos maus passos, fabricando-as de novo quando delas necessitassem. Hábito, esse, herdado, por sua vez, dos primitivos moradores da terra, assim como o de as afundarem ou simplesmente quebrarem.
Em seu Ensaio sobre as construções navais indígenas, observa Antonio Alves Câmara como, entre muitas tribos indígenas, era uso mergulhar as canoas nos lugares de remanso e, em seguida, amarrarem-nas ao fundo, de onde podiam ser retiradas a qualquer momento.¹ O costume de ocultá-las, e mesmo destruí-las, sempre que preciso parece ter sido muito generalizado. Curt Nimuendajú, ² que ainda pode assinalar entre os parintintim da Amazônia, relaciona-o à necessidade em que se viam esses índios de evitar que delas se aproveitasse o inimigo. Às mesmas providências não deixavam de recorrer os nossos mamelucos. Assim, em depoimento prestado em janeiro de 1685 às autoridades castelhanas de Assunção do Paraguai, certo índio fugido aos maloqueiros de São Paulo referia como, devendo regressar estes à sua terra como o gentio preado, inutilizavam de antemão todas as canoas que os tinham transportado.
Em outros casos, onde devesse ser breve a varação, ou em sítios em que escasseavam os troncos apropriados, transportavam-na por terra, valendo-se de cordas ou correias de couro. Isso ocorria mais frequentemente, no entanto, com as canoas de madeira. As outras, as de casca, admitiam recursos mais simples, como o de carregá-las às costas dos índios ou emborcadas sobre as suas cabeças, tal como sucede entre certas populações particularmente de nosso extremo norte, observadas por Theodor Koch-Grünberg.³
Tais cuidados são explicáveis quando se considera que muitas dessas igaras, apesar do pobre material de que são feitas, estão longe de constituir simples recurso de emergência para índios e sertanistas. Mesmo entre gente mais sedentária podiam elas enfrentar, de algum modo, a competição das canoas de madeira. Assim, num inventário paulista, no ano de 1599, o de Isabel Fernandes, mulher de Henrique da Cunha, que fora juiz ordinário da vila, figura expressamente uma canoa “de casca” entre a fazenda que se mandou avaliar e vender na praça4. Não apenas a vantagem do custo relativamente baixo, mas ainda a da durabilidade, tão notável quanto sua resistência aos obstáculos que embaraçam e atropelam a mareação, justificam o largo uso que se chegou a fazer dessas canoas.
Aludindo a essa última vantagem, afirmou Georg Friederici 5 que elas chegaram a alcançar, em condições normais, até seis anos de vida, enquanto as de pau inteiriço seriam incapazes de durar mais de um verão. É certo que suas observações nesse caso procuram abarcar todo o continente americano tomando em bloco e grosso modo e não se detêm nas condições especificamente brasileiras. Além disso, a madeira das canoas monóxilas a que se refere é declaradamente a do álamo, não a de qualquer das espécies botânicas usuais entre nós para a fatura de semelhantes embarcações.
Todavia, quando recorre a uma só variedade de madeira, não parece ter ela em mira restringir o alcance de sua teoria da durabilidade menor das canoas de madeira inteiriça, e sim ilustrar essa mesma teoria, socorrendo-se, para tanto, de um exemplo mais eloquente do que característico. Cabe, em todo caso, perguntar se esse empenho de fazer mais expressiva uma convicção pessoal não tenderia aqui, como sucede constantemente em circunstâncias tais, a desfigurar os fatos. Ao menos no que diz respeito às grandes canoas monóxilas de treze e mais metros de comprido, que se usaram na era das monções, construídas literalmente segundo as velhas técnicas indígenas, há certeza de que serviam ordinariamente, não apenas um, mas vários verões e invernos, nas expedições regulares entre Araritaguaba e Cuiabá. E quando principiarem a escassear nas beiradas do Tietê e tributários os troncos corpulentos, próprios para o seu fabrico, as canoas já usadas e muitas vezes remendadas irão formar o grosso das frotas de comércio. Assim é que das treze que foram na Real Monção de 1818, quatro apenas tinham sido especialmente fabricadas para essa viagem, segundo consta de documentos que se conservam manuscritos no Arquivo do Estado de São Paulo.
Seja como for, parece improvável que pudessem elas superar por mais de dez ou quinze anos, se tanto, os maus-tratos a que as expunha uma longa e penosa navegação. Consta, em outro documento manuscrito, que em 1798, de vinte canoas de comércio aprontadas um decênio antes, quando da chegada à capitania do governador Bernardo José de Lorena, e desde aquele tempo deixadas em ranchos protetores junto ao embarcadouro de Porto Feliz, pouquíssimas podiam considerar-se aptas para o serviço. O quase abandono em que se achavam, sem abrigo seguro, sem cuidados maiores que nelas atalhassem a obra do tempo e, sobretudo, sem uma eficaz vigilância contra a maldade dos desocupados, numerosos na região e certamente mais daninhos do que todos os contratempos que as poderiam esperar em viagem, bastavam para as condenar, verdadeiras canoas de ninguém, a uma ruína rápida e sem remédio.
Mesmo assim andariam elas bem longe daquela efêmera duração atribuída por Friederici às embarcações de madeira inteiriça. E é fácil supor que maiores seriam suas perspectivas de conservação se a escolha das árvores próprias para seu fabrico não tivesse a limitá-las às possibilidades da flora paulistana e, ainda mais, à consideração da capacidade exigida para o transporte de carga numerosa. Vinte anos de vida teriam, segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, as de camaru ou angelim preto do Pará, que por outro lado não alcançavam as dimensões médias das canoas das monções, feitas de ximbouva ou peroba.
Ora, se peca ou exagera a pretensão de que as embarcações de pau inteiriço alcançam pequeníssima duração, não se poderia imaginar o dar às igaras? Ou antes, não se fundaria essa crença num simples limite de exceção, atingindo em condições quase ideais? Das canoas de casca de jatobá, as mais geralmente usadas no Brasil, sabe-se, de acordo com estudos modernos, que têm uma duração máxima de dois anos, em condições normais. Sujeitas a viagem acidentadas e trabalhosas, entretanto, conservam-se por muito tempo.
A verdade é que sua capacidade de resistência aos obstáculos naturais, que caracteriza esse tipo de embarcação, está longe de se relacionar de modo exclusivo à durabilidade, que também pode ser comprometida pelo fato, entre outros, de a cortiça de que é fabricada absorver, em geral, comparada à madeira, uma quantidade bem maior de água, o que prejudica evidentemente sua conservação. Além disso, a própria circunstância de serem usadas frequentemente em lugares acidentados tende, na prática, a sujeitar as igaras a um rápido desgaste.
Na praça Lauro Maurino, antigo "loja dos Maurinos", depois Porto Peças....

Praça Lauro Maurino, inicio da rua Newton Prado, estrada dos Sorocabanos.

"Largo da Gruta" e o hotel Central em frente a entrada da Gruta

Largo da Penha o início da Frequezia de Nossa Senhora da Penha, depois de Araritaguaba de Nossa Senhora Mãe dos Homens, depois vila de Porto Feliz e cidade de Porto Feliz.

Em 1920 o governador Altino Arantes vem inaugurar a estação e o ramal da Estrada de Ferro Sorocabana,  Porto Feliz a Boituva

Em Porto Feliz havia um cinema, havia um cinema em Porto Feliz na rua Draco de Albuquerque

Rua Cardoso Pimentel ontem e hoje

Rua da Laje ontem e hoje

...o casarão do outro lado do rio Tietê, em frente as escadarias da Gruta

Rua Bandeirantes entrada da gruta Nossa Senhora de Lourdes, ontem e hoje

Avenida Armando Sales -vila Progresso ou Ultimo Gole- ontem e hoje

Praça Coronel Esmédio

A antiga cadeia no Largo da Penha ou praça Duque de Caxias

Rua Jose Bonifacio ontem e hoje

Rua Altino Arantes ontem e hoje

Bruno De Giusti restaura suas obras da Igreja Matriz

(Sexta-feira, 04 de Março de 2005 - Revista Viu)

Uma grande restauração nos quadros e pinturas do teto e azulejos da  Igreja Matriz Nossa Senhora Mãe dos Homens está sendo feita pelo autor de suas obras, o artista plástico Bruno De Giusti. Os reparos começaram há dois meses (fevereiro de 2005) e tem prazo indeterminado para serem finalizados. A reforma inclui os 14 quadros da via sacra e oito telas, como uma reprodução da obra “A Santa Ceia” de Leonardo da Vinci e uma obra do próprio De Giusti, chamada de “As Bodas de Caná”, considerado por ele um de seus principais quadros. Ambos feitos na década de 50.
As obras, todas com significado específico, segundo o pintor, são de grande importância para a história da igreja católica “A cada traço existe uma história, um significado” explica De Giusti referindo-se à saga de Jesus Cristo.
O PINTOR – As pinturas, que enriquecem a decoração nos azulejos da igreja de Porto Feliz, retratam, em imensos painéis, algumas passagens da história da cidade. A entronização de Nossa Senhora e a partida de uma monção estão devidamente registradas na obra de arte.
Morador da cidade de Sorocaba, De Giusti é conhecido em Porto Feliz e região pelos grandes trabalhos concluídos na Igreja Matriz Nossa Senhora Mãe dos Homens desempenhados durante 12 anos.
O artista conta que quando desenvolveu o projeto em Porto Feliz nem imaginava que ia ter confeccionar os famosos azulejos, os quais tanto encantavam o exigente padre Ghizzi ( pároco de Porto Feliz por muitos anos), com quem o pintor teve uma cordial relação na época.

 Eu, Samuel da Rocha, achando-me doente, mas em meu prefeito juízo, faço meu testamento pela maneira seguinte. Declaro que sou católico (...) Declaro que sou natural desta cidade (Porto Feliz), filho de Domingos e Joana, já falecidos. Declaro que sou casado com Rosa de Arruda de cujo matrimonio não tivemos filhos algum, e não tendo por isso herdeiros necessários, instituo por minha única herdeira a dita minha mulher. Declaro que devo a minha comadre Cândida, escrava de Joaquim de Toledo, a quantia de 400 mil réis. Declaro que deixo liberto o meu escravo João com a condição dele pagar a dita minha comadre os 400 mil réis que lhe devo. Depois de efetuado o dito pagamento lhe será entregue a carta de liberdade. Declaro que deixo à irmandade de São Benedito a quantia de 16 mil réis, e igual quantia à Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte; e a mesma quantia para a Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Declaro que quero que se me diga uma capela de missas por minha alma. Declaro que deixo a minha ferramenta de carpinteiro para o meu escravo João. Rogo queiram ser meus testamenteiros em primeiro lugar a minha mulher, em segundo o senhor Evaristo Rodrigues Leite, e em terceiro o senhor José Cardoso; e por essa forma dou por concluído este meu testamento que vai escrito e a meu rogo assinado por Maximiano José da Mota por eu não saber escrever. Porto Feliz, [19/04/1860].

 O escravo de Samuel é outra história

Da trajetória de Samuel, podem-se observar alguns aspectos não tão incomuns a forros. Nasceu em cativeiro e permaneceu escravo até mais ou menos seus 28 anos de idade. Participava das instâncias de socialização de libertos, como as irmandades de negros e pardos de Nossa Senhora da Boa Morte e de São Benedito. Apadrinhou nove crianças livres e nove escravas. Se o “empenho” e “o compadresco” eram, no tempo do Rei, mas também no império do Brasil, “uma mola real de todo o movimento social” (Almeida, 1985, p. 126), ser forro e senhor não significou vedar relações com escravos e outros egressos do cativeiro, nem com livres. Seria um antagonismo em equilíbrio, diria Gilberto Freyre (1987).
Logo, o carpinteiro negro Samuel Rocha era chefe de domicílio em 1836 e 1843, quando ainda não tinha escravo. Reproduziu a escravidão com o próprio trabalho e nem por isto deixou de ser carpinteiro. Para seu cativo deu a ferramenta de carpintaria para se libertar. Sabia que o trabalho artesão propiciava meios de inserção social para ex-escravos, inclusive para o pagamento da liberdade. Pelo exposto, a experiência de trabalho em cativeiro trazida para a vida em liberdade contribuía para a aquisição de escravos e gozo de estima. Aliás, dos ex-escravos homens do padre André da Rocha Abreu de que se tem informação, quase todos que encabeçaram domicílios tinham um ofício, como o padrasto de Samuel, Fortunato da Rocha, pedreiro, e Francisco da Rocha, sapateiro, sendo que este último era também senhor de escravo1. Em suma, estes casos estão longe daquelas imagens nas quais um forro compra escravo e pára de trabalhar. Ser senhor não é sinônimo de ociosidade, e trabalho escravo e trabalho livre não “eram sistemas historicamente incompatíveis” (Eisenberg, 1989, 237,223).
No inventário de Samuel havia bens relativamente significativos para quem passou mais de um terço da vida na escravidão. Em 1860, valiam 2.832$000 (2 contos e 832 mil réis), incluindo João carpinteiro, no valor de 2 contos, uma morada de casas, 700$000, dois terrenos avaliados em 28$000, etc. Devia a 10 pessoas a quantia de 114$020, incluindo um escravo de Francisco de Arruda,que sequer foi nomeado, mas ainda assim demonstra certa capacidade de crédito dos escravos, tal como a comadre Cândida. As dívidas demonstram também a consideração social que o forro desfrutava, pois dívidas, além do aspecto econômico, significam acesso a crédito, co-fiança, confiança. Outrossim, o escravo João foi avaliado no inventário, sugerindo que a dívida ainda não tinha sido paga, embora sua comadre Cândida não tenha sido mencionada entre os credores.
Samuel da Rocha, trabalhador forro carpinteiro, possuía três catres, um armário, duas mesas, uma caixa grande, uma pequena, uma cadeira de palha, 10 taboas, tudo valendo 26$000. A minha ferramenta de carpinteiro destacada no testamento valia parcos 2$000, o bem de menor valor monetário do inventário, mas muito provavelmente foi o que deu a liberdade a Samuel e talvez desse a seu escravo João. Teria João carpinteiro chegado à alforria no contexto pós-1850, momento a partir do qual o fim do tráfico atlântico de cativos ocasionou a elevação do preço dos escravos? Essa é outra história.

Roberto Guedes
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 
 Samuel da Rocha: escravo, aparentado, forro, carpinteiro e senhor (Porto Feliz, São Paulo, Século XIX)
Roberto Guedes

 Folhinha 1926
 Folhinha 1930
Folhinha 1932
Banda Euterpe de Porto Feliz no ano de 1934


Porto Feliz história - escravidão subsídios

Os Rochas Abreu e os Josés da Rocha: alianças


Em 1794, houve o casamento dos escravos Francisco, crioulo nascido em Porto Feliz, e Maria, crioula natural das minas de Cuiabá. Ambos filhos de pai incógnito e de mães escravas, e todos pertencentes ao padre André da Rocha Abreu (pároco de Porto Feliz na época). Uma das testemunhas do casamento foi Francisco Correa de Moraes Leite, outrora capitão-mor da vila de Porto Feliz durante 23 anos, entre 1797 e 1820.19 Os elos que ligavam o capitão aos nubentes cativos vêm de sua relação com o proprietário, o padre André, seu cunhado.
Os Rochas Abreu estavam ligados à rota das monções, via fluvial que ligava Porto Feliz à vila de Cuiabá, em Mato Grosso. Na primeira metade do setecentos, o pai do padre André, Domingos da Rocha Abreu, se transferiu do Arcebispado de Braga para São Paulo, onde se casou com D. Francisca Cardoso de Siqueira. Posteriormente, estabeleceu-se na freguesia de Araritaguaba (futura Porto Feliz em 1798), aí falecendo em 1784. Homem de "conhecida verdade", em 1767 era um dos cinco mais ricos da vila de Itu. De seu casamento com dona Francisca nasceram dez filhos, dos quais interessam aqui Ana Francisca da Rocha e o padre André da Rocha Abreu.
Ana Francisca da Rocha se casou em 1782 com Francisco Correia de Moraes Leite, então apenas capitão de companhia. Em 1824, já como capitão-mor, de posse de 65 escravos, fez 1.600 arrobas de açúcar, 1.000 alqueires de milho, 150 de feijão e 40 de arroz. Um dos filhos do casal foi o brigadeiro Joaquim José de Moraes Abreu, que se tornou membro do Conselho da Província, vereador da Câmara Municipal de São Paulo, deputado provincial e vice-presidente da Província de São Paulo. Logo, é uma família de importância política e econômica em São Paulo, desde o século XVIII. Ramos dos Rochas forros se aliaram a esta família de potentados, mas uma aliança que começou quando ainda eram escravos. Por isso, o capitão foi o padrinho de casamento de Francisco e Maria, escravos do padre. Maria era natural de Cuiabá e era o capitão que organizava as expedições fluviais. Quiçá o sogro e os cunhados do capitão, comerciantes que atuavam na rota, trouxeram a cativa de Cuiabá. Por sua vez, o noivo, natural de Porto Feliz, deve ter nascido entre os Rochas, era cria da casa. Em 988 casamentos de escravos entre os anos de 1787 e 1833, o capitão-mor só testemunhou dois. Em suma, provavelmente os nubentes conviviam com a família senhorial há muitos anos.
O outro filho de Domingos da Rocha Abreu que se estabeleceu em Porto Feliz foi o padre André da Rocha Abreu. Foi vigário de Porto Feliz entre 1798 e 1820, quando faleceu. Parodiava um verso quando comia bolo: "Destes bolinhos, Maria". Maria era também o nome de sua escrava cozinheira, provavelmente a que teve o capitão-mor como testemunha de casamento. Como gostava de folheado, o padre André ordenava à sua escrava cozinheira: "Maria, faça folhados, eu gosto, é como hóstia". Bom garfo, o padre sabia música e tocava piano. Pôs o primeiro piano na vila, instrumento conduzido por braço escravo de Santos a São Paulo.
Em 1803, o reverendo André passou cartas de liberdade ao mencionado casal Francisco e Maria, e também a seus filhos Jesuíno, Celestina, Lucina, Generoso, Duarte e Benigno. Entre 1803 e 1820, o padre, em geral, libertava um membro de cada família que vivia consigo, precisamente a mulher. Os libertos de 1803 formavam a única família que teve todos os seus componentes alforriados desde então, o que a diferenciava de todas as demais subalternas ao reverendo. Por que o privilégio?
Provavelmente porque eram escravos domésticos.  Maria devia ser a cozinheira que fazia pastéis com gosto de hóstia para o padre, alegrando seu estômago e seu espírito. Francisco e Maria foram dos primeiros escravos do padre a se casar e, um filho desse casal, Jesuíno, foi talvez o primeiro cativo nascido na casa, pois, em 1798, já tinha seis anos. Na verdade, outra família escrava, a do casal Domingos Velho e Joana, já estava junta em 1798 e também tinha um filho de seis anos. As diferenças sabidas entre os casais cativos são as seguintes. Francisco e Maria tinham mais filhos. Domingos Velho era Mina e Francisco nasceu em Araritaguaba (Porto Feliz), ou seja, o segundo devia ser criado na casa dos Rochas. Maria era natural de Cuiabá, para onde os cunhados do padre faziam expedições. Com 30 anos em 1798, talvez as relações de Maria com os Rochas fossem originárias de Cuiabá. Outra diferença é que o padrinho de casamento foi o capitão-mor.
A preferência do padre tornou os filhos de Francisco e Maria seus herdeiros em testamento de 1820. André disse que os criou com amor, sendo correspondido com servidão.
Voltando a 1805, o reverendo André da Rocha, branco, contava 48 anos de idade. Tinha 17 escravos e, além de Jacinto, os demais agregados eram a família parda alforriada. Em 1808, com 51 anos, o vigário colado, sempre branco, tinha 15 escravos. Vivia com os agregados pardos e seus escravos negros. Em 1810, o padre André tinha 13 escravos. Os agregados permaneceram no domicílio, acrescido de duas novas agregadas, dentre as quais Maria, de um ano de idade.
Esta Maria foi registrada como escrava no batismo, em 06 de agosto de 1809, apesar de o assento ter sido feito no livro de livres. Era "filha de Francisco, escravo do Reverendo Vigário André da Rocha Abreu", sem referência ao nome da mãe. O assento foi redigido pelo padre Manoel Ferraz Sampaio, mas, no canto, à margem da folha, lê-se: a "batizada Maria é filha de Francisco e Maria, sua mulher. Todos estão forros e libertos", assinado pelo padre André da Rocha Abreu. Portanto, além de atestar a maternidade, corrigiu o assento para referendar a condição de forro de Francisco e de Maria. Como André tomou ciência do equívoco em meio a tantos registros fica por se saber. O fato é que continuou amparando seus agregados no jogo da troca das relações entre senhores e subalternos, já que, em uma sociedade escravista, ser registrado como livre ou escravo num livro paroquial é de suma importância, pois pode definir a condição jurídica das pessoas. Todavia, 55 anos depois, em 1864, no auto de liberdade, aquele mesmo João de Camargo do início deste artigo, casado com uma Rocha, sobrepôs ao registro de batismo uma escritura pública de doação de escravos como prova; doação escrita pelo próprio padre André, registrada em cartório.
De retorno ao padre André e seus subalternos, em 1813 ele estava com 57 anos de idade e 15 escravos. Os pardos forros permaneciam como dantes e só se acrescentou que um deles, Jesuíno, era "organista". Em 1815, o padre era também senhor de engenho e de 16 escravos. Os agregados pardos estavam acompanhados de Francisco, o único negro entre eles, recém-alforriado. Em 1818, André da Rocha Abreu tinha 62 anos. Seus agregados pardos forros de antes permaneciam no domicílio. Havia apenas cinco escravos em sua casa.
Até aqui o que se observa entre os escravos e agregados, em suas relações com André, é que estavam em uma cadeia diferenciada de privilégios e exclusões, em uma política de domínio que distinguia os merecedores e os não merecedores de prêmios. Toda uma família foi alforriada desde 1803 e amparada pelo padre quando esta condição foi posta em dúvida em um batismo. Em tempo, não se deve esquecer que, em tese pelo menos, ser forro implica em trabalhar para si, ainda que trabalhador livre não seja sinônimo de trabalho autônomo. Significa também uma diferenciação jurídica em uma sociedade escravista, ou seja, alforria é mobilidade social ascendente. Os agregados do padre, ao saírem do cativeiro, até mudavam de cor, tornaram-se pardos, deixaram de ser negros. Isto fazia diferença, posto que ser pardo já implicava um distanciamento em relação à escravidão. Um ideal hierárquico calcado na cor/condição social.
Os demais escravos do vigário não tiveram a mesma sorte. Alguns continuaram em cativeiro; outros foram libertos, mas membros de suas famílias continuaram na escravidão. Alguns foram doados à família parda alforriada. Foi isso que, em 1864, João Leite de Camargo argumentou para manter o domínio sobre o afilhado de Rosa, José, filho de Generosa. Mas quem era Generosa? Nada se sabe sobre seus parentes. A única informação é que o padre André a doou à "mulatinha" Esmelinda, em 1820. Então, a "mulatinha" contava cerca de 23 anos de idade, e a cativa Generosa, dois anos. Esmelinda casou-se com o réu em 1827. Quem sabe Generosa ajudou a compor seu dote? A certeza é que para continuarem como senhores em 1864 era preciso manter José, filho de Generosa, em cativeiro. No contexto de fechamento do acesso à mão-de-obra via comércio de escravos, a perpetuação da condição senhorial de uma família forra dependia da continuidade da escravidão de uma família escrava.

Roberto Guedes -

Parentesco, escravidão e liberdade (Porto Feliz, São Paulo, século XIX)


Porto Feliz história colonial-subsídios

Cel Francisco Corrêa de Moraes Leite-primeiro capitão-mor da cidade


    Dono de considerável fortuna, de fazenda de cana no bairro dos Pilões, em Araritaguaba. Foi o primeiro capitão-mor de Porto Feliz, a partir de 1797, quando a freguesia foi elevada a vila. Deixou o posto em 1820 pela idade/saúde e foi reformado como coronel. Foi sucedido no cargo pelo irmão Antonio José Leite da Silva, que foi capitão-mór de 1820 a 1823. Em 1823, Francisco foi convidado a ser membro do governo provisório da província (de São Paulo ) (após o movimento político de 1821, que levou à primeira Constituição em 1823), mas não aceitou devido aos problemas de saúde. Acabou morrendo em 1835 em Porto Feliz. (OBS: a página com o histórico dos deputados provinciais no site da Assembléia Legislativa o inclui como membro do governo provisório).
    Na política, tinha entre seus rivais o alferes Manuel Joaquim Pinto de Arruda, filho de Carlos Bartolomeu de Arruda Botelho, que havia sido o segundo capitão-mór da freguesia de Piracicaba. Ele fez uma representação contra Botelho ao capitão-mór governador, Antonio José de Franca e Horta, em 14 de janeiro de 1810. O governador respondeu em 8 de fevereiro dizendo que repreendera o alferes e mandara que ele se emendasse com ele. O motivo da disputa era a construção da estrada que ligaria o povoado de Piracicaba a São Paulo.
    Em 12 de agosto de 1811 Francisco recebe correspondência do governador da Capitania mandando-o prender o sargento reformado Carlos de Arruda Botelho, que diante da perspectiva de substituição do então governador pelo Marquês de Alegrete, Luiz Teles da Silva, ameaçava o povo de Piracicaba com represálias. A tática deu certo, porque correspondência subsequente do governador dava conta de que Carlos Botelho assinara documento reconhecendo não ser o dono da área na qual se assentava ao povoado de Piracicaba.
    Representação ao governador da província, datada de 23 de janeiro de 1813 pelo capitão-mór de Porto Feliz, Francisco Corrêa de Moraes Leite, protesta contra a tentativa da Câmara de Itu de se assenhorear de território que, entendia ele, estava sob jurisdição da vila de Porto Feliz. Tratava-se do sertão de Araraquara, área compreendida pela freguesia de Piracicaba (antiga Constituição). Dizia ele:
    "Há dois anos, pouco mais ou menos, já têm havido algumas dúvidas sobre os campos do sertão de Araraquara entre esta Câmara e a da vila de Itu, de modo que vindo o desembargador ouvidor-geral e corregedor da Comarca por esta vila em diligência, esta Câmara lhe participou a desordem, além de já lhe ter dado parte por ofício; e porque fosse necessário que o mesmo ministro ouvisse também a Câmara de Itu, e, conformando-se com o parecer dela, procedeu a novas divisões, talvez na inteligência de que assim se consertassem as dúvidas".
    O capitão Francisco Corrêa de Moraes queixava-se que a pequena freguesia de Piracicaba estava sujeita a dois capitães-mores, ele e o um rival de Itu: a Câmara ituense havia, com o apoio do ouvidor, nomeado Inácio Paes de Almeida como capitão da freguesia de Piracicaba, com jurisdição inclusive sobre os habitantes do sertão de Araraquara. Era época de confecção de lista de moradores, e ele argumentava que a freguesia se situava dentro dos limites da vila de Porto Feliz, senão por outro motivo, por se situar esta mais próxima de Piracicaba do que Itu. E alfinetava os vizinhos invasores: "de modo de que pela distância não tomaram até hoje naquela parte conhecimento de coisa alguma, senão agora que se principiou a povoar o sertão de Araraquara, lugar este ainda mais impróprio para aquele comando (de Itu) pela distância".
    Para reforçar seu argumento, Corrêa de Moraes recordava ao governador que "com tanto desvelo me ter empregado no Real Serviço, principalmente nas grandes e trabalhosas expedições", isto é a organização das monções que desciam o Tietê em direção às minas de Mato Grosso. (Caixa # 54 do Arquivo do Estado de São Paulo, citado por Alberto Lemos em "História de Araraquara", pág. 115).
    A região da atual cidade de Porto Feliz começou a ser povoada em 1693. Em 1700, Antonio Pimentel ergue a primeira capela. Em 1728 o povoado é elevado à condição de freguesia. A construção da igreja matriz de Nossa Senhora dos Homens é de 1745. E a promoção a vila ocorre em 1797, com a mudança do nome de Araritaguaba para Porto Feliz. A elevação a cidade é de 1858.     No Recenseamento de 1798, aparece como capitão-mór e um dos 14 senhores de engenho de Porto Feliz.
    Foi o executor de ordem régia de novembro de 1817 determinando a contagem de todas as propriedades em cada vila de cada Capitania. Como à época ainda era o capitão-mór de Porto Feliz, procedeu o recenseamento que descobriu haver 737 propriedades na vila e seu distrito. (História de Araraquara, pg. 153)