segunda-feira, 4 de setembro de 2017

O Diário de Juzarte, um documento fascinante da História do Brasi



O Diário de Juzarte,
um documento fascinante da História do Brasil (*)

Uma narrativa extraordinária

O Diário da Navegação do Rio Tietê, Rio Grande Paraná e Rio Guatemi em que se dá Relação de todas as coisas mais notáveis destes rios, seus cursos, sua distância e de todos os mais Rios que se encontram, Ilhas, perigos e de tudo o acontecido neste Diário pelo tempo de dois anos e dois meses. Que principia em 10 de Março de 1769, é uma das mais extraordinárias narrativas da navegação fluvial no Brasil do século 18.
Escrito pelo sargento mor Teotônio José Juzarte,  descreve de maneira vívida e minuciosa o roteiro fluvial, a técnica de construção das embarcações, a forma de navegar e as venturas e desventuras da monção que partiu de Araritaguaba, hoje Porto Feliz (SP), às margens do Tietê, no dia 13 de abril de 1769, com destino à praça de Iguatemi, à margem esquerda do rio do mesmo nome, hoje cidade de Iguatemi (MS). A expedição era formada de 36 embarcações e “setecentos e tantos homens, mulheres, rapazes, crianças de todas as idades, como também os acompanhavam toda a casta de criações e animais para a produção e estabelecimento futuro daquele continente”, sem contar os soldados pagos e o pessoal da “mareação”. Enfrentando os horrores das pragas, desconforto, fome, morte, o esperado e o inesperado das “estradas móveis”,   a monção   viajou  dois meses e dois dias de Araritaguaba até a praça do Iguatemi. A experiência custou a Juzarte dois anos e dois meses, desde o início da viagem até seu regresso em maio de 1771, e a  praça do Iguatemi continuou existindo até 27 de outubro de 1777, quando foi tomada pelos castelhanos,  “tendo tão funesto fim aquele estabelecimento, que nem os vassalos da Conquista do Oriente terão tanto que contar, como tem os que escaparam da Povoação de Gatemi”, no dizer do autor do Diário.
Sobre o Diário,  o historiador Capistrano de Abreu informou  que, já em 1878, a Biblioteca Americana, de Charles Leclerc, lhe chamava relation inédite et très précieuse. Afonso de Escragnolle Taunay, por sua vez, registrou que o Diário representa importantíssima contribuição para a história de Iguatemi porque é natural e desataviado, narrativa de acontecimentos traçada dia a dia, sob a impressão imediata dos fatos. Acrescentou ainda que o Diário de Juzarte e o Divertimento Admirável de Manuel Cardoso de Abreu representam talvez os dois únicos documentos de vulto relativos à viagem dos rios no século 18, sendo que o primeiro é infinitamente superior  ao escrito pelo “deslavado plagiário de frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques”.
Mas,  ao que tudo indica, nem Capistrano de Abreu e nem mesmo Afonso de Taunay tiveram a oportunidade de conhecer o documento na íntegra. Juzarte recebera de Dom Luís Antônio de Souza  Botelho e Mourão, morgado de Mateus, que o escolhera para comandar a monção à Iguatemi, a recomendação seguinte: “não se esqueça vosmecê de fazer o diário que tenho recomendado e lançar em planta todos os rios, todos os países e todas as cousas mais notáveis que se tiverem descobrido”. A 31 de outubro de 1770  reiterava o pedido: “recomendo a vosmecê, ajuntava, traga o roteiro da ida e da volta diariamente escrito, com todos os mapas dos rios, países e cousas mais notáveis que encontrar, tudo descrito com a maior propriedade e certeza”. Juzarte cumpriu à risca o encomendado.
Na   introdução que escreveu para a coletânea de Relatos Monçoeiros Afonso de Taunay menciona a existência de um álbum de desenhos de Teotônio José Juzarte no arquivo  de Solar de Mateus, em Vila Real, Portugal, afirmando que "se assim é exato serão essas peças os mais antigos documentos iconográficos monçoeiros de  que temos notícia". 
Trata-se, sem  sombra de dúvida, do "Plano em Borrão de todos os rios caxueyras, e todas as couzas mais notaveis que vi desde o Porto de Araraytaguaba té a Povoação de Guatemy e dahi té a Serra que divide as duas potencias fidelissima e catolica; o qual será posto em limpo com melhor idea e perfeyçam, como inda se não vio. Zuzarte. Descripção do rio Tiete té desaugar ao Rio Grande praña principia de estampa 1.ª té estampa 22. Manuscrito a tinta".
O álbum, comprado em 1960 pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro juntamente com um grupo de documentos pertencentes à coleção do morgado de Mateus,  é composto de 56 folhas manuscritas que apresentam a cartografia de todas as etapas da expedição  de Araritaguaba à Iguatemi, dia a dia, anotados os afluentes dos grandes rios, acidentes do terreno, sítios localizados às margens com os nomes dos respectivos proprietários, ancoradouros, varadouros, pousos, local de construção de canoas e indicação de pontos de maior perigo para a navegação.
Confrontando o texto do Diário com  as estampas do Plano em Borrão   é possível acompanhar a monção de Juzarte passo a passo. A primeira folha apresenta a planta da Freguesia de Nossa Senhora da Penha de Araritaguaba. Seguem-se as estampas que registram o movimento da monção no curso dos rios Tietê, Paraná e Iguatemi. A última traz um quadro resumido do trajeto completo da expedição, desde o ponto de partida, em Araritaguaba, às margens do Tietê,  até a Praça d'Armas de Nossa Senhora dos Prazeres, às margens do rio Iguatemi.
A Editora da Universidade de São Paulo publicará ainda este ano um volume que reúne,  pela primeira vez,  o documento completo: o texto do Diário e todos os mapas do Plano Borrão, produzido pelo sargento mor Tetônio José Juzarte.


As sinistras recordações da Praça  d’armas do Iguatemi

            Afonso de Escragnolle Taunay afirmou em mais de um texto que, em toda a história colonial paulista, não há episódio que evoque mais sinistras recordações do que o presídio de Nossa Senhora dos Prazeres de Iguatemi, fundado em 1767 por ordem do capitão general governador da capitania de São Paulo Dom Luís Antônio de Sousa Botelho  Mourão, morgado de Mateus. O estabelecimento atendia às determinações do poderoso ministro de D. José I,  Sebastião José de Carvalho e Melo, então Conde de Oeiras e  Marques de Pombal em 1769,  para que se estabelecesse o presídio na região sul mato-grossense, próxima à fronteira com o Paraguai, com o objetivo de impedir qualquer avanço castelhano em terras da coroa portuguesa. As instruções foram dadas pela Coroa em 26 de janeiro de 1765 e repassadas ao capitão general de São Paulo pelo vice-rei Conde da Cunha a 4 de novembro de 1766. Para cumprir as instruções régias, a 28 de junho de 1767 partiu de Araritaguaba a primeira monção à Iguatemi, comandada pelo ituano João Martins de Barros, nomeado capitão mor regente da praça que se ia fundar. A organização da expedição exigiu enormes sacrifícios e gastos na ordem de trinta mil cruzados, soma vultuosa para a época e parcos recursos da Capitania. O recrutamento forçado reuniu um contingente de trezentos e vintes homens, na maioria arrancados dos seus lares em Porto Feliz, Itu, Sorocaba e Parnaíba. O capitão general ordenara ao capitão mor regente que prendesse os pais, ou mulheres, sendo casados, ou parentes mais chegados dos alistados, que ficariam retidos na prisão até que a expedição tivesse chegado à barra do Potunduba, de forma a prevenir-se de protestos e deserções. Verdadeira atmosfera de terror se criou em São Paulo, “onde os sacrifícios de vidas e dinheiro,  para a criação e manutenção do presídio,  as violências e opressões autorizadas exercidas pelo Capitão general e seus delegados foram inúmeras e constituíram por mais de dez anos uma das maiores calamidades com que o erro ou o capricho dos governos tem, mais de uma vez, flagelado os povos. Grande parte dos moradores das vilas de Itu, Sorocaba e Parnaíba, etc. e de outras povoações então nascentes, na circunvizinhança emigraram para as capitanias limítrofes a fim de escapar à opressão”.
Para se ter uma idéia  dos sacrifícios e horrores da viagem de Araritaguaba até Iguatemi e o que representava a permanência naquelas plagas  basta ler o Diário do sargento mor Teotônio José Juzarte, que comandou a segunda expedição àquela praça.  Até 1773 outras expedições foram enviadas “para preencher os claros deixados pelo impaludismo e outras enfermidades devastadoras da guarnição de pobres faxinas de terra pomposamente apelidadas de praça forte”. Em 1775 o brigadeiro José Custódio de Sá e Faria visitou a colônia pombalina e em relatório ao rei descreveu a impiedosa dizimação dos povoadores, aconselhando a extinção da praça. Aquela fronteira do Brasil, escreveu, defendiam o deserto e as mil dificuldades do acesso. Finalmente, a 27 de outubro de 1777  Dom Agostin de Pinedo e uma considerável força castelhana atacou a guarnição do Iguatemi e ofereceu a seu comandante,  vigário Antônio Ramos Barbas Lousada, a mais honrosa capitulação.


Juzarte, o quase desconhecido autor de um famoso Diário

              Teotônio José Juzarte, que na folha de rosto do seu Diário se intitula sargento mor, posto outrora correspondente  à graduação de major, desempenhou papel de destaque sobretudo  no governo de Dom Luís Antônio de Souza, de 1765 a 1775.
Português de nascimento e praça em 1750, depois de servir algum tempo  na marinha de guerra da metrópole,  solicitou sua transferência para o exército, incorporando-se então ao Regimento da Junta. Em 1765 pediu que o mandassem ao Brasil, onde lhe deram a patente de ajudante do Regimento de Dragões Auxiliares da capitania de São Paulo.
            Pouco depois, fundando-se o presídio de Iguatemi, dava-lhe o capitão general uma série de comissões de  destaque. A 16 de janeiro de 1768 incumbia-o de escoltar um comboio transportador de mantimentos para a monção que se preparava em Araritaguaba. Juzarte tinha ordens de receber a carga e fiscalizar o pessoal destinado à praça mato-grossense, com recomendações para que  não deixasse ninguém fugir e que tivesse o maior cuidado nas despesas.
            Nomeado comandante da monção, no mês seguinte recebia  do morgado de Mateus carta branca para agir como melhor entendesse, desde que o consultasse continuamente. Era a ele que se despachavam as desoladas  levas de colonos destinadas à Iguatemi, tristemente encaminhadas para Porto Feliz; era ele que superintendia o almoxarifado da expedição: carregado de gêneros, armas e munições, utensílios de lavoura, móveis e roupas, drogas e mais objetos de toda a espécie. Ao mesmo tempo, fiscalizava  os preparativos de construção e lançamento das grandes canoas reunidas naquele ponto em esquadrilha.      Recebia dinheiro e providenciava a captura dos voluntários, homens desanimados que  procuravam escapar à  sina,  que anteviam detestável.
A 21 de janeiro de 1769, supondo findos ou quase findos os aprestos tão penosos da expedição,  o capitão - general pedia a Juzarte que estivesse pronto para seguir "oito dias após haver recebido as suas ordens definitivas". No dia 10 de abril de 1769 todos embarcaram e foram transportados para a outra margem do Tietê, “pela razão de me livrar de tantas impertinências, trabalhos e incômodos que o mesmo povo me causava, uns adoecendo, outros pedindo várias coisas supérfluas para eles e suas famílias, e outros que nunca jamais se acomodavam nem estavam satisfeitos”, justificou Juzarte. Entretanto, somente a 13 de abril de 1769 é que largava  de Porto Feliz a  monção, com trinta e seis grandes embarcações em que se aboletavam quase oitocentas pessoas, das quais setecentas e tantas povoadoras,  "homens, mulheres, rapazes e crianças de todas as idades, trinta soldados de linha, gente de mareação e equipagem", de que tratam o Diário da Navegação  e as estampas deste volume.
            Em 31 de outubro de 1770 o capitão general comunicava  a Juzarte  que ele seria substituído pelo ajudante  Manuel José Alberto, prevenindo-o "do alvoroço com que o ficava esperando e desejando-lhe feliz sucesso na retirada".  Em maio de 1771 Juzarte retirava-se de Iguatemi: “a este tempo já eu me achava com sezões dobres, embarquei  em uma canoa a todo o risco com os homens da mareação dela também doentes com sezões, sem outro algum preparo para uma viagem tão dilatada mais do  que um pouco de feijão, e uma pouca farinha, e um pedaço de toucinho, dois pratos de sal, e nada mais, o que tudo comprei por alto preço na povoação das roças, depois que chegou a expedição, porque até aí nada havia, e com este pouco mantimento, eu doente, e os homens que me conduziam, também doentes, me meti ao sertão a todo o risco, e logo no Paraná me morreram dois remeiros, ficando só comigo cinco pessoas, das quais só vinha são o piloto...”, conforme registrou no Diário.
            Depois desta odisséia, à qual se aplica, no dizer de Afonso Taunay, “em toda a inteireza,  o conceito camoniano do mais que prometia a força humana”, o morgado de Mateus continuou se utilizando dos serviços de Juzarte.   A 19 de novembro de 1772 mandava-o   a Araritaguaba escoltando artilharia, munições e mais petrechos que seriam transportados a Iguatemi numa esquadra de doze canoas, com setenta presos destinados a preencher os claros da guarnição da praça, então dizimada pela malária.
Em março de 1773, grato aos bons serviços do oficial português, o capitão general elevava-o   de ajudante a sargento-mor, mandando adi-lo ao Regimento de Dragões da capitania, tudo isto sob condição, pois podia faltar o beneplácito  real, sobretudo quanto à promoção, pois deixara de lado, vencidos de uma vez, os postos de tenente e capitão. Declarava o capitão-general "atender às exigências disciplinares do Regimento e da boa conduta das expedições e importantes diligências do Real Serviço". Em março do ano seguinte ordenava-lhe o capitão general que conduzisse a Santos quatro companhias completas e ali as aquartelasse. Em seguida,  nova portaria  mandava-o   embarcar esses homens com destino a Santa Catarina, de onde partiria para a defesa da fronteira do Rio Grande do Sul, passando ao Viamão.
Dois anos depois,  Juzarte estava novamente em São Paulo. Nesta altura, o morgado de Mateus, seu protetor, já tinha sido substituído por Martim Lopes Lobo de Saldanha no governo da capitania de São Paulo. No  propósito de desqualificar o antecessor, o novo capitão general  levantou uma série de acusações contra o morgado de Mateus, não poupando de censuras  seus auxiliares mais chegados. Assim, no ofício enviado a Pombal em 23 de setembro de 1776 declara contra Juzarte não lhe reconhecer quase inteligência alguma. Promovera-o o favoritismo; simples inferior na marinha do reino, conseguira a transferência para o Brasil, para São Paulo, como ajudante de cavalaria (alferes). Deste posto, passando por cima dos dois intermediários, fizera-o Dom Luís Antônio sargento-mor (major)! Se ele Martim Lopes o conservava, fazia-o "pelo capricho talvez mal  entendido de que renovara todos os provimentos do seu antecessor, a quem Deus perdoasse tais atos". 
            A partir de então, são poucos os registros sobre Juzarte. Em certa ocasião, desejou rever a pátria, e  partiu para Lisboa, onde se demorou bastante  tempo. Terminaria a carreira militar maculando a fé de ofício com uma série de notas altamente  desagradáveis e depreciadoras  dos seus créditos de oficial disciplinado. "Ausentando-se deste Regimento para Lisboa, reza o Livro Mestre do seu corpo, não notou sua licença. Voltou, nunca deu obediência a seu Regimento; antes, se tem comportado muito mal com total falta de subordinação, pelo que foi preso e castigado três vezes, até que obteve licença de isenção do Regimento".
Tetônio José Juzarte morreu em São Paulo a  22 de Janeiro de 1794. Como bem lembrou Afonso de Taunay, de todo olvidado estaria ele não fora o seu Diário, hoje incorporado à biblioteca do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, notas de viagem, toscas e rudes de soldado semi-analfabeto, mas cheias de interessantíssimos informes.


(*)  Jonas Soares de Souza

Um comentário:

  1. PRECISO DE AJUDA PRECISO CRIAR UMA HISTÓRIA EM QUADRINHO DO ''DIÁRIO DO JUZARTE''

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