O Diário de Juzarte,
um documento fascinante
da História do Brasil (*)
Uma narrativa
extraordinária
O Diário da Navegação do
Rio Tietê, Rio Grande Paraná e Rio Guatemi em que se dá Relação de todas as
coisas mais notáveis destes rios, seus cursos, sua distância e de todos os mais
Rios que se encontram, Ilhas, perigos e de tudo o acontecido neste Diário pelo
tempo de dois anos e dois meses. Que principia em 10 de Março de 1769, é
uma das mais extraordinárias narrativas da navegação fluvial no Brasil do
século 18.
Escrito pelo sargento mor
Teotônio José Juzarte, descreve de
maneira vívida e minuciosa o roteiro fluvial, a técnica de construção das
embarcações, a forma de navegar e as venturas e desventuras da monção que
partiu de Araritaguaba, hoje Porto Feliz (SP), às margens do Tietê, no dia 13
de abril de 1769, com destino à praça de Iguatemi, à margem esquerda do rio do
mesmo nome, hoje cidade de Iguatemi (MS). A expedição era formada de 36
embarcações e “setecentos e tantos homens, mulheres, rapazes, crianças de todas
as idades, como também os acompanhavam toda a casta de criações e animais para
a produção e estabelecimento futuro daquele continente”, sem contar os soldados
pagos e o pessoal da “mareação”. Enfrentando os horrores das pragas,
desconforto, fome, morte, o esperado e o inesperado das “estradas móveis”, a monção viajou
dois meses e dois dias de Araritaguaba até a praça do Iguatemi. A
experiência custou a Juzarte dois anos e dois meses, desde o início da viagem
até seu regresso em maio de 1771, e a
praça do Iguatemi continuou existindo até 27 de outubro de 1777, quando
foi tomada pelos castelhanos, “tendo tão
funesto fim aquele estabelecimento, que nem os vassalos da Conquista do Oriente
terão tanto que contar, como tem os que escaparam da Povoação de Gatemi”, no
dizer do autor do Diário.
Sobre o Diário, o historiador Capistrano de Abreu
informou que, já em 1878, a Biblioteca
Americana, de Charles Leclerc, lhe chamava relation inédite et très
précieuse. Afonso de Escragnolle Taunay, por sua vez, registrou que o Diário
representa importantíssima contribuição para a história de Iguatemi porque é
natural e desataviado, narrativa de acontecimentos traçada dia a dia, sob a
impressão imediata dos fatos. Acrescentou ainda que o Diário de Juzarte
e o Divertimento Admirável de Manuel Cardoso de Abreu representam talvez
os dois únicos documentos de vulto relativos à viagem dos rios no século 18,
sendo que o primeiro é infinitamente superior
ao escrito pelo “deslavado plagiário de frei Gaspar da Madre de Deus e
Pedro Taques”.
Mas, ao que tudo indica, nem Capistrano de Abreu e
nem mesmo Afonso de Taunay tiveram a oportunidade de conhecer o documento na
íntegra. Juzarte recebera de Dom Luís Antônio de Souza Botelho e Mourão, morgado de Mateus, que o
escolhera para comandar a monção à Iguatemi, a recomendação seguinte: “não se
esqueça vosmecê de fazer o diário que tenho recomendado e lançar em planta
todos os rios, todos os países e todas as cousas mais notáveis que se tiverem
descobrido”. A 31 de outubro de 1770
reiterava o pedido: “recomendo a vosmecê, ajuntava, traga o roteiro da
ida e da volta diariamente escrito, com todos os mapas dos rios, países e
cousas mais notáveis que encontrar, tudo descrito com a maior propriedade e
certeza”. Juzarte cumpriu à risca o encomendado.
Na introdução que escreveu para a coletânea de Relatos
Monçoeiros Afonso de Taunay menciona a existência de um álbum de desenhos
de Teotônio José Juzarte no arquivo de
Solar de Mateus, em Vila Real, Portugal, afirmando que "se assim é exato
serão essas peças os mais antigos documentos iconográficos monçoeiros de que temos notícia".
Trata-se, sem sombra de dúvida, do "Plano em Borrão de
todos os rios caxueyras, e todas as couzas mais notaveis que vi desde o Porto
de Araraytaguaba té a Povoação de Guatemy e dahi té a Serra que divide as duas
potencias fidelissima e catolica; o qual será posto em limpo com melhor idea e
perfeyçam, como inda se não vio. Zuzarte. Descripção do rio Tiete té desaugar
ao Rio Grande praña principia de estampa 1.ª té estampa 22. Manuscrito a
tinta".
O álbum, comprado em 1960
pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro juntamente com um grupo de
documentos pertencentes à coleção do morgado de Mateus, é composto de 56 folhas manuscritas que
apresentam a cartografia de todas as etapas da expedição de Araritaguaba à Iguatemi, dia a dia,
anotados os afluentes dos grandes rios, acidentes do terreno, sítios
localizados às margens com os nomes dos respectivos proprietários,
ancoradouros, varadouros, pousos, local de construção de canoas e indicação de
pontos de maior perigo para a navegação.
Confrontando o texto do Diário
com as estampas do Plano em Borrão é possível acompanhar a monção de Juzarte
passo a passo. A primeira folha apresenta a planta da Freguesia de Nossa
Senhora da Penha de Araritaguaba. Seguem-se as estampas que registram o
movimento da monção no curso dos rios Tietê, Paraná e Iguatemi. A última traz
um quadro resumido do trajeto completo da expedição, desde o ponto de partida,
em Araritaguaba, às margens do Tietê,
até a Praça d'Armas de Nossa Senhora dos Prazeres, às margens do rio
Iguatemi.
A Editora da Universidade de
São Paulo publicará ainda este ano um volume que reúne, pela primeira vez, o documento completo: o texto do Diário
e todos os mapas do Plano Borrão, produzido pelo sargento mor Tetônio
José Juzarte.
As sinistras recordações
da Praça d’armas do Iguatemi
Afonso
de Escragnolle Taunay afirmou em mais de um texto que, em toda a história
colonial paulista, não há episódio que evoque mais sinistras recordações do que
o presídio de Nossa Senhora dos Prazeres de Iguatemi, fundado em 1767 por ordem
do capitão general governador da capitania de São Paulo Dom Luís Antônio de
Sousa Botelho Mourão, morgado de Mateus.
O estabelecimento atendia às determinações do poderoso ministro de D. José
I, Sebastião José de Carvalho e Melo,
então Conde de Oeiras e Marques de
Pombal em 1769, para que se
estabelecesse o presídio na região sul mato-grossense, próxima à fronteira com
o Paraguai, com o objetivo de impedir qualquer avanço castelhano em terras da
coroa portuguesa. As instruções foram dadas pela Coroa em 26 de janeiro de 1765
e repassadas ao capitão general de São Paulo pelo vice-rei Conde da Cunha a 4
de novembro de 1766. Para cumprir as instruções régias, a 28 de junho de 1767
partiu de Araritaguaba a primeira monção à Iguatemi, comandada pelo ituano João
Martins de Barros, nomeado capitão mor regente da praça que se ia fundar. A
organização da expedição exigiu enormes sacrifícios e gastos na ordem de trinta
mil cruzados, soma vultuosa para a época e parcos recursos da Capitania. O
recrutamento forçado reuniu um contingente de trezentos e vintes homens, na
maioria arrancados dos seus lares em Porto Feliz, Itu, Sorocaba e Parnaíba. O
capitão general ordenara ao capitão mor regente que prendesse os pais, ou
mulheres, sendo casados, ou parentes mais chegados dos alistados, que ficariam
retidos na prisão até que a expedição tivesse chegado à barra do Potunduba, de
forma a prevenir-se de protestos e deserções. Verdadeira atmosfera de terror se
criou em São Paulo, “onde os sacrifícios de vidas e dinheiro, para a criação e manutenção do presídio, as violências e opressões autorizadas
exercidas pelo Capitão general e seus delegados foram inúmeras e constituíram
por mais de dez anos uma das maiores calamidades com que o erro ou o capricho
dos governos tem, mais de uma vez, flagelado os povos. Grande parte dos
moradores das vilas de Itu, Sorocaba e Parnaíba, etc. e de outras povoações
então nascentes, na circunvizinhança emigraram para as capitanias limítrofes a
fim de escapar à opressão”.
Para se ter uma idéia dos sacrifícios e horrores da viagem de
Araritaguaba até Iguatemi e o que representava a permanência naquelas
plagas basta ler o Diário do
sargento mor Teotônio José Juzarte, que comandou a segunda expedição àquela
praça. Até 1773 outras expedições foram
enviadas “para preencher os claros deixados pelo impaludismo e outras
enfermidades devastadoras da guarnição de pobres faxinas de terra pomposamente
apelidadas de praça forte”. Em 1775 o brigadeiro José Custódio de Sá e Faria
visitou a colônia pombalina e em relatório ao rei descreveu a impiedosa
dizimação dos povoadores, aconselhando a extinção da praça. Aquela fronteira do
Brasil, escreveu, defendiam o deserto e as mil dificuldades do acesso.
Finalmente, a 27 de outubro de 1777 Dom
Agostin de Pinedo e uma considerável força castelhana atacou a guarnição do
Iguatemi e ofereceu a seu comandante,
vigário Antônio Ramos Barbas Lousada, a mais honrosa capitulação.
Juzarte, o quase desconhecido
autor de um famoso Diário
Teotônio José
Juzarte, que na folha de rosto do seu Diário se intitula sargento mor,
posto outrora correspondente à graduação
de major, desempenhou papel de destaque sobretudo no governo de Dom Luís Antônio de Souza, de 1765
a 1775.
Português de nascimento e
praça em 1750, depois de servir algum tempo
na marinha de guerra da metrópole,
solicitou sua transferência para o exército, incorporando-se então ao Regimento
da Junta. Em 1765 pediu que o mandassem ao Brasil, onde lhe deram a patente de
ajudante do Regimento de Dragões Auxiliares da capitania de São Paulo.
Pouco depois, fundando-se o presídio de Iguatemi,
dava-lhe o capitão general uma série de comissões de destaque. A 16 de janeiro de 1768 incumbia-o
de escoltar um comboio transportador de mantimentos para a monção que se
preparava em Araritaguaba. Juzarte tinha ordens de receber a carga e fiscalizar
o pessoal destinado à praça mato-grossense, com recomendações para que não deixasse ninguém fugir e que tivesse o
maior cuidado nas despesas.
Nomeado comandante da monção, no mês seguinte
recebia do morgado de Mateus carta
branca para agir como melhor entendesse, desde que o consultasse continuamente.
Era a ele que se despachavam as desoladas
levas de colonos destinadas à Iguatemi, tristemente encaminhadas para
Porto Feliz; era ele que superintendia o almoxarifado da expedição: carregado
de gêneros, armas e munições, utensílios de lavoura, móveis e roupas, drogas e
mais objetos de toda a espécie. Ao mesmo tempo, fiscalizava os preparativos de construção e lançamento
das grandes canoas reunidas naquele ponto em esquadrilha. Recebia dinheiro e providenciava a captura
dos voluntários, homens desanimados que
procuravam escapar à sina, que anteviam detestável.
A 21 de janeiro de 1769,
supondo findos ou quase findos os aprestos tão penosos da expedição, o capitão - general pedia a Juzarte que
estivesse pronto para seguir "oito dias após haver recebido as suas ordens
definitivas". No dia 10 de abril de 1769 todos embarcaram e foram
transportados para a outra margem do Tietê, “pela razão de me livrar de tantas
impertinências, trabalhos e incômodos que o mesmo povo me causava, uns
adoecendo, outros pedindo várias coisas supérfluas para eles e suas famílias, e
outros que nunca jamais se acomodavam nem estavam satisfeitos”, justificou
Juzarte. Entretanto, somente a 13 de abril de 1769 é que largava de Porto Feliz a monção, com trinta e seis grandes embarcações
em que se aboletavam quase oitocentas pessoas, das quais setecentas e tantas povoadoras, "homens, mulheres, rapazes e crianças de
todas as idades, trinta soldados de linha, gente de mareação e equipagem",
de que tratam o Diário da Navegação e as estampas deste volume.
Em 31 de outubro de 1770 o capitão general comunicava a Juzarte
que ele seria substituído pelo ajudante
Manuel José Alberto, prevenindo-o "do alvoroço com que o ficava
esperando e desejando-lhe feliz sucesso na retirada". Em maio de 1771 Juzarte retirava-se de
Iguatemi: “a este tempo já eu me achava com sezões dobres, embarquei em uma canoa a todo o risco com os homens da
mareação dela também doentes com sezões, sem outro algum preparo para uma
viagem tão dilatada mais do que um pouco
de feijão, e uma pouca farinha, e um pedaço de toucinho, dois pratos de sal, e
nada mais, o que tudo comprei por alto preço na povoação das roças, depois que
chegou a expedição, porque até aí nada havia, e com este pouco mantimento, eu
doente, e os homens que me conduziam, também doentes, me meti ao sertão a todo
o risco, e logo no Paraná me morreram dois remeiros, ficando só comigo cinco
pessoas, das quais só vinha são o piloto...”, conforme registrou no Diário.
Depois
desta odisséia, à qual se aplica, no dizer de Afonso Taunay, “em toda a
inteireza, o conceito camoniano do mais
que prometia a força humana”, o morgado de Mateus continuou se utilizando dos
serviços de Juzarte. A 19 de novembro
de 1772 mandava-o a Araritaguaba
escoltando artilharia, munições e mais petrechos que seriam transportados a
Iguatemi numa esquadra de doze canoas, com setenta presos destinados a
preencher os claros da guarnição da praça, então dizimada pela malária.
Em março de 1773, grato aos
bons serviços do oficial português, o capitão general elevava-o de ajudante a sargento-mor, mandando adi-lo
ao Regimento de Dragões da capitania, tudo isto sob condição, pois podia faltar
o beneplácito real, sobretudo quanto à
promoção, pois deixara de lado, vencidos de uma vez, os postos de tenente e
capitão. Declarava o capitão-general "atender às exigências disciplinares
do Regimento e da boa conduta das expedições e importantes diligências do Real
Serviço". Em março do ano seguinte ordenava-lhe o capitão general que
conduzisse a Santos quatro companhias completas e ali as aquartelasse. Em seguida, nova portaria
mandava-o embarcar esses homens
com destino a Santa Catarina, de onde partiria para a defesa da fronteira do
Rio Grande do Sul, passando ao Viamão.
Dois anos depois, Juzarte estava novamente em São Paulo. Nesta
altura, o morgado de Mateus, seu protetor, já tinha sido substituído por Martim
Lopes Lobo de Saldanha no governo da capitania de São Paulo. No propósito de desqualificar o antecessor, o
novo capitão general levantou uma série
de acusações contra o morgado de Mateus, não poupando de censuras seus auxiliares mais chegados. Assim, no
ofício enviado a Pombal em 23 de setembro de 1776 declara contra Juzarte não
lhe reconhecer quase inteligência alguma. Promovera-o o favoritismo; simples inferior
na marinha do reino, conseguira a transferência para o Brasil, para São Paulo,
como ajudante de cavalaria (alferes). Deste posto, passando por cima dos dois
intermediários, fizera-o Dom Luís Antônio sargento-mor (major)! Se ele Martim
Lopes o conservava, fazia-o "pelo capricho talvez mal entendido de que renovara todos os
provimentos do seu antecessor, a quem Deus perdoasse tais atos".
A partir de então, são poucos os registros sobre Juzarte.
Em certa ocasião, desejou rever a pátria, e
partiu para Lisboa, onde se demorou bastante tempo. Terminaria a carreira militar
maculando a fé de ofício com uma série de notas altamente desagradáveis e depreciadoras dos seus créditos de oficial disciplinado.
"Ausentando-se deste Regimento para Lisboa, reza o Livro Mestre do seu
corpo, não notou sua licença. Voltou, nunca deu obediência a seu Regimento;
antes, se tem comportado muito mal com total falta de subordinação, pelo que
foi preso e castigado três vezes, até que obteve licença de isenção do
Regimento".
Tetônio José Juzarte morreu
em São Paulo a 22 de Janeiro de 1794.
Como bem lembrou Afonso de Taunay, de todo olvidado estaria ele não fora o seu Diário,
hoje incorporado à biblioteca do Museu Paulista da Universidade de São Paulo,
notas de viagem, toscas e rudes de soldado semi-analfabeto, mas cheias de
interessantíssimos informes.
(*) Jonas Soares de Souza
PRECISO DE AJUDA PRECISO CRIAR UMA HISTÓRIA EM QUADRINHO DO ''DIÁRIO DO JUZARTE''
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