sexta-feira, 6 de maio de 2016

Praça da Estação, praça Eugênio Euclydes Pereira da Motta, no ano de 1944



Música e negritude em Porto Feliz


A história da música em Porto Feliz está intimamente ligada a dos negros. Não apenas no aspecto em que se apresenta nas demais localidades, ou como diria o saudoso amigo e pesquisador Abel Cardoso Júnior, “a cultura africana é inegável na música popular brasileira”.1
Em Porto Feliz, em relação à História da música nessa cidade, a presença negra não está apenas na influência cultural, mas, sobretudo na participação dos músicos e maestros.
Uma passagem pitoresca, relatada pelo historiador Romeu Castelucci com o título “A primeira notícia sobre música em Porto Feliz” ilustra os primórdios dessa participação dos negros na história da músi- ca ao informar que em 2 de maio de 1820, conforme registrado em ata pelo cirurgião Francisco Alvares Machado de Vasconcelos, chegou à Vila de Araritaguaba o primeiro piano da localidade, sendo este “carregado por 38 negros africanos da Guiné, que vinham cantando...”.2 Curiosa a sutileza do detalhe: os negros não apenas carregaram o pri meiro piano da cidade – como foram obrigados a fazer dada a condição de escravizados – , mas realizaram a tarefa “cantando”, como é comum em muitas etnias africanas. Daí o mesmo historiador informar sobre a existência, no século XIX, de danças e músicas realizadas pelos negros porto-felicenses como o Batuque, o Jongo e a Congada.
Os porto-felicenses sempre apreciaram a música. Recorrendo ainda ao artigo de Romeu Castelucci, encontra-se que “As Bandas de Músicas funcionavam como verdadeiras escolas: as crianças frequentavam as casas dos maestros ou sedes de Bandas, para aprenderem música. O ensino de música não dependia de condição social do aprendiz, a intenção era a de formar o maior número de músicos para que as Bandas não acabassem e também para manter a rivalidade entre as corporações”.3
Ao que parece, havia uma paixão dos porto-felicenses pela música, o que motivou a criação de corporações musicais (Bandas), conjugada com o interesse dos negros pela mesma arte e, ainda, o acesso facilitado ao ensino e aprendizagem da música. Talvez seja essa a justificativa da participação em massa dos negros na História da Música em Porto Feliz. Afinal, há um número considerável de maestros e excelentes músicos ne- gros nos Anais da História. Entende-se aqui por negro todo aquele que possui afrodescendência, ou seja, aqueles que o IBGE categoriza como “pretos” e “pardos”.
Por volta de 1860, o ne- gro porto-felicense Benedito de Arruda Pais transfere-se para a cidade de Tatuí, onde alguns anos depois funda uma escola de música e forma um elevado nú- mero de músicos de qualidade. Mestre Benedito, como era conhecido, tinha “a sua escola na terceira casa, das que ficavam logo abaixo do Teatro São Martinho (hoje, Banco Itaú) na Rua José Bonifácio”.4 Esse porto- felicense “muito fez pela cultu- ra musical” de Tatuí.5
O historiador tatuiense Renato Ferreira de Camargo afirma, sobre Benedito de Arruda Pais, que este era músico muito bom que “não só executava esplendidamente as peças de que se encarregava [...]; mas também produzia composições que eram bastante apreciadas, especialmente do gênero sacro”.6 Onde estariam as partituras de suas composições? Será que estão em algum arquivo em Tatuí?
Em 1846, durante a visita do Imperador D. Pedro II à cidade – o monarca visitou vári- as localidades da região nesse ano, como Sorocaba e a Real Fábrica de Ferro de Ipanema – este foi saudado pela Banda da Guarda Nacional, que o historiador Romeu Castelucci considera como provavelmente a primeira corporação musical da cidade. Um fato curioso, narrado pelo historiador porto-felicense: “Entre as décadas de 1920 e 1930, como nos relatou o músico Alvize Mieto, contava-se que o imperador ao ser saudado pela Banda de Música da Guarda Nacional, havia se referido a Banda ‘como a Banda dos Negritos’, pois era formada em sua maioria por músicos da raça negra, e também pelos uniformes de cor negra”.7 Seja como for, tendo ou não o Imperador cometido tal descortesia, o que sobressai é a memória, ou ao menos o imaginário construído, da presença maciça de negros nas Bandas de Música de Porto Feliz. Isso pode ser visto nas fotos antigas como uma da Corporação Musical União Porto-Felicense, fundada no dia 13/03/1898.8
A Banda da Guarda Nacional foi substituída, por volta de 1869, pela Banda Euterpe. É possível que tivesse em seus quadros, como na sua antecessora, um elevado núme- ro de músicos negros. O fato é que a Banda Euterpe existiu até a década de 1960 e um de seus músicos era o negro Benedito Toledo Viegas, conhecido como Toledinho, cuja participação se deu da década de 1920 ao fecha- mento da Banda. Toledinho foi o último regente da Banda Euterpe (deusa da música) na década de 1960.
Em 1898 surge a Corporação Musical Banda União Porto-Felicense que tem entre seus fundadores o músico Francisco de Arruda Campos, o Chico da Cristina. 9 Francisco de Arruda Campos era também ator e contrarregras do Grupo Teatral “Flor de Samburá”, segundo a pesquisadora Sonia Belon. Numa foto famosa, datada de 20 de agosto de 1902, veem-se vári- os músicos negros dessa Banda, tais como Manoel José de Calasans (provavelmente era o regente, pois segura uma batu- ta), Abraão Ferraz, Paulino Ipolito de Aguiar, Izaque Sam- paio, Pedro Martins de Arruda, Lourenço de Almeida Neves, Augusto Liza de Oliveira e José Rodrigues do Nascimento, o popular Zé de Lúcia que foi tam- bém ator, contrarregras, sorve- teiro e o primeiro taxista da cidade. A Corporação Musical União Porto-Felicense continua em atividade e tem a sua sede na rua Dr. Alvim, nº 90.
No início do século XX, a Banda União tocou nos entreatos de uma peça teatral do grupo “João Caetano”, de Porto Feliz, no dia 13 de maio. Na ocasião foi encenado um drama escrito pelo porto-felicense Theophilo Motta.
“Espectaculo
Vamos dar aos nossos leitores, mais detalhada notícia sobre o espectaculo dado pelo grupo “João Caetano” na noite de 13 do corrente.
Salienta-se, principalmente, a excellente corporação musical “União Porto Felicense”, que tocou, durante os entre-actos, bellissimas peças de seu repertório, dentre as quaes, a phantasia da Opera Ernani, de J. Verdi, e a cavatina Coração de ouro, atrahindo, assim, o impertinente auditório [...]”.10
Em 11 de outubro de 1909 foi fundada a Banda Estrela São Benedito, cujo maestro era Zé Urbano, tendo durado a corporação mais de 30 anos. Não se sabe pelo menos este autor desconhece, se Zé Urbano era negro. No entanto, o nome da Banda homenageia o mais popular santo negro reverenciado no Brasil.
Em 12 de dezembro de 1932 foi fundada a Corporação Musical “Bandeirante”, em ati- vidade até hoje. O maestro dessa Banda era o músico negro Voltaire Torres, que tem, entre outras de seu vasto currículo, a composição da música do Hino da Escola “Coronel Esmédio”.11 Infelizmente, não se pôde encontrar maiores informações sobre esse importante maestro, mesmo este autor tendo recorrido a diversas fontes. A Banda Bandeirantes teve, também, em seus quadros o músico negro José de Arruda Campos, o Sansão.12
Mais ou menos nessa mesma época, ou seja, década de 1930, surgiu a Orchestra Jazz Bataclan. Era uma espécie de banda de baile e, como era o costume da época, era chamada de Jazz. Esse Jazz era composto por 10 a 12 músicos. Foi fundado pelo já citado Zé de Lúcia, que foi o seu diretor em 1932.13 Uma nota do jornal O Porto Feliz citava a Orchestra Ba-ta-clan:
“Orchestra Ba-ta-clan
Pelo jovem Eduardo Pottel foi offerecido á armoniosa e popular Orchestra Ba-ta-clan uma Surdina, para o Quidão, no Piston, fazer “o choro nas noites enluaradas”.
- O Snr. João Gastardelli, commerciante nesta praça, offereceu, a bella marcha (1 – 2
          3) que obteve o 1º prêmio.
-          O Snr. Vicente Pellicieri, a marcha “A turma la de casa”.
-          E pelo Zé de Lucia, o mentor, a alma e vida, esteio e estuque, alicerce... etc e tal, dessa apreciada orchestra, foram, offerecidos os sambas: “Cordeaes saudades” e “Eu me illudi”.”14
Zé de Lúcia nasceu em 19 de agosto de 1889 e ganhou o apelido devido ao fato de ser a sua mãe a ex-escravizada Lúcia. Daí o nome Zé de Lúcia. Seu nome completo era José Rodrigues do Nascimento e na juventude foi sacristão. Dizem que era bastante brincalhão o que lhe rendeu muitas histórias algu- mas das quais foram registradas pelo jornalista e cronista Sabino José de Melo. Diz a memória popular que certa vez, enquanto ainda era sacristão, recebeu uma quantia em dinheiro para deixar a corda do sino para fora do campanário durante a noite. Assim fez e aquele que fez a encomenda amarrou um pedaço de carne na ponta da corda, pedaço esse que foi disputado pelos cães vadios que ao puxarem a carne faziam soar o sino, acordando a população. Zé de Lúcia, após descoberta a sua participação no episódio, foi castigado com palmatoadas do vigário.
José Rodrigues do Nascimento faleceu em 17 de outubro de 1972, aos 83 anos de ida- de.
Em 1938 surge um grupo musical de baile e festas formado por Romário Antônio Bar- bosa, seu irmão Tate, Cidico, Borrachinha, Benedito Cristalino e João Xará. Desses, com certeza, eram negros pelo menos Romário, Tate e João Xará. Este último era guarda da Estrada de Ferro Sorocabana e “nas horas vagas cortava e ensebava varas de pescar”.15
Romário Barbosa participou da Banda Bandeirantes, formando novos e excelentes músicos. Por sua vida dedicada à música empresta o seu nome para a Escola Municipal de Música desde 1999. Romário Antonio Barbosa nasceu em Capivari no dia 29 de maio de 1913. Era filho de Luiz Antonio Barbosa e de Benedita Rosalina de Melo Barbosa. Teve seu interesse pela música despertado aos 20 anos de idade, tendo se firmado na carreira musical aos 40 anos. Mesmo depois de aposentado, ensinava gratuitamente música para jovens, sendo certo que chegou a formar mais de 1500 músicos em Porto Feliz.16 Dentre eles, o violonista Benedito Mariano de Campos, que iniciou suas aulas de violão aos 12 anos de idade. Formado em violão erudito pelo Conservatório de Tatuí e técnico instrumentista pelo Conservatório Santa Cecília de Campinas, foi diretor da Escola Municipal de Música “Romário Antonio Barbosa” em 2009.
Romário Barbosa tinha predileção por dobrados e marchas carnavalescas. Foi casado com Lucila Alves Barbosa. Faleceu em 18 de fevereiro de 1999, aos 85 anos de idade.
Atribui-se a ele a seguinte frase: “A música é tudo na vida da humanidade. A música faz sorrir; A música faz chorar; a música traz lembranças; a música faz tudo no coração da gen- te; a música é tudo para a gente; a música para mim é a vida inteira que Deus nos deu; Alegria para mim é estar escrevendo música”. Atualmente, a Banda União tem um integrante em comum com a Bandeirantes: Antonio Viana, o Dén-Dén, que com uma flauta de plástico participa das apresentações das corporações musicais. Só que toca de uma forma diferente. É que o Dén-Dén encosta a flauta no queixo e emite o som com a boca. Antonio Viana é negro e foi criado pela Salvatina da Tenda de Umbanda “Vovó Catarina”.
José Aparecido Ferraz, nascido a 8 de outubro de 1931, também participou de bandas de baile, sendo baterista. Ao mesmo tempo, participou de rodas de batuque e de capoeira.17 Outro músico, multi-instrumentista, foi Gumercindo Henrique Souza. Baixista, baterista e trombonista, Gumercindo participou da Banda Prateada e da Banda União. Nasceu em 22 de março de 1916 e faleceu em 20 de novembro de 1960. Era casado com Lázara Paes Henrique.18 Mais recentemente, em dezembro de 2013 faleceu o professor Marco Leite que dava aulas de teclado na Escola Coronel Eugênio (Bairro Bambu) e no Conservatório de Salto. Na escola do Bambu, o professor Marco Leite formou um Coral do qual participaram as alunas Corina, Lia e Elisa que hoje formam o internacionalmente conhecido conjunto “Choro das Três”. Segundo depoimento delas, foi o professor Marco Leite quem as  encaminhou para  a música:
“A história desta família mudou graças a um professor voluntário, o querido Marco Leite, que se dispôs a ensaiar um coral com a turma da primeira série onde a Corina (irmã mais velha) estudava. A Corina tinha 7 anos e estava sendo alfabetizada... mas eram as aulas de coral que ela esperava ansiosamente toda semana. No ano seguinte ela pediu a seus pais que queria estudar música. Começou a estudar flauta doce na escola muni- cipal de música da cidade e seu pai, Eduardo - que havia deixado o pandeiro após terminar a escola comprou um instrumento novo para tocar com a sua filha”.19
O professor Marco Leite reforça a tradição da ligação entre a população negra e o desenvolvimento da música na cidade de Porto Feliz.
É impossível registrar aqui neste artigo todos os músicos afrodescendentes de Porto Feliz, mas esta relação serve para mostrar o quão importante foi a participação dos negros nessa história. Em Porto Feliz, a história da música e dos negros é indissociável.


Carlos Carvalho Cavalheiro
16.01.2014

Notas:

1 Documentário “Cantos da Terra”, BRA, 2003. Dir. Adilene Cavalheiro e Carlos Carvalho Cavalheiro.
2 Material pertencente ao acervo do Museu Histórico e Pedagógico das Monções.
3 Idem.
4 CAMARGO, Renato Ferrei- ra de. Memórias de Tatuí. São Paulo: João Scortecci Editora, 1997, p. 38.
5 Idem.
6 Idem, p. 46.
7 A Primeira Banda de Mú sica em Porto Feliz. Material
datilografado pertencente ao acervo do Museu Histórico e Pedagógico das Monções.
8 Conforme página virtual da Corporação no Facebook. Para Romeu Castelucci, a Banda foi fundada em 29 de junho de 1898. CASTELUCCI,     Romeu.
Efemérides de Porto Feliz. Itu: Ottoni, 2000, p. 60.
9 Entrevista com Maria Apa- recida Coelho de Oliveira Casti- lho, bisneta de Chico da Cristi- na, realizada no dia 27 nov 2013.
10 O Araritaguaba, 26 maio 1907, p. 2.
11 Tribuna das Monções – Especial Centenário da EMEF. Coronel Esmédio, 26 abr 2008,
p. 2.
12 Entrevista com Maria Apa- recida Coelho de Oliveira Casti- lho, neta de Sansão, realizada no dia 27 nov 2013.
13 O Porto Feliz, 02 abr 1932,
p. 3.
14 O Porto Feliz, 12 mar 1932,
p. 2.
15 Entrevista com Rita de Cássia Camargo Pires realiza- da no dia 27 nov 2013.
16 D’AMBROSIO, Oscar (Org.). Conto, canto e encanto com a minha história... Porto Feliz – Terra das Monções. São Paulo: Noovha América, 2008, p. 70.
17 Entrevistas realizadas em 02 nov 2006 e em 07 set 2009.
18 Entrevista com Lázara Paes Henrique realizada em 17 dez 2008.
19 Disponível em: http:// ww w.chorodas3.com.br/
#!quemsomos. Acessado em 18 jan 2014.
Clube Bandeirantes, na praça da Matriz, hoje Banco Itaú



A Escravidão negra em Porto Feliz


               A memória, como construção coletiva, permite o diálogo entre as gerações; ou, se preferir, entre passado e presente. É indiscutível o fato de que não há pessoa que viva em sociedade que não esteja em contato com outras de diferentes gerações. A partir da preservação da memória estabelece-se o diálogo que vai amalgamar os indivíduos a ponto de criar uma identidade comum, despertando assim o sentimento de pertencimento àquela comunidade.
               Em Porto Feliz, desde o ano de 1952, foi oficializada a Semana das Monções, a qual, geralmente – com algumas exceções em alguns anos – é comemorada com desfile histórico e, ainda, com encenações que remontam à época das epopeias monçoeiras.
               Duas dessas encenações teatrais despertaram a minha atenção: a de 2008, com o tema “O Milagre da Monção” e a de 2012, com o título “A Lenda”. Ambas trazem duas histórias do arcabouço lendário da cidade, reforçando assim o aspecto da preservação da memória. Porém, a memória, como bem nos ensina o historiador Jacques Le Goff é, por definição, ideológica. Desse modo, o brilho das épicas monções – tema principal das referidas encenações – ofusca outros tidos como secundários, como, por exemplo, as relações de uma sociedade escravocrata.
               Com efeito, o texto de “O Milagre da Monção” trata do episódio em que o mestre de tripulação Manoel Portes foi letalmente golpeado remeiro Apolinário. Na agonia final, Manoel Portes Machado que era “homem religioso” pede que chamem Frei Galvão para que possa confessar. Só que o futuro santo brasileiro estava distante daquele local. Mesmo assim, apareceu “milagrosamente” e deu a confissão e bênção para o moribundo. Já o texto de “A Lenda” conta sobre as famosas canoas fantasmas que, segundo contavam, assombravam o rio Tietê naquelas épocas.
               Mas por que Apolinário golpeou o mestre Manoel Portes? O próprio texto, assim como a tradição oral, explica: Manoel Portes costumava castigar severamente seus escravos e empregados. No texto em questão, o “homem religioso” oferece uma escrava sua de “estimação”, a negra Conceição, para o Capitão, enaltecendo as qualidades da moça: “boa paridêra, ancas largas...”. Apesar de não ficar claro se Apolinário era escravo ou trabalhador livre, isso pouco ou nada altera o fato de tratar desumanamente seus escravos. O historiador Taunay, em publicação nos Anais do Museu Paulista, datada de 1949, chama Apolinário de “caboclo”. No entanto, João Campos, no seu livro Maniçoba, Araritaguaba, Porto Feliz explica que o local onde ocorreu o crime ficou conhecido por Potunduva, que em tupi significaria: local onde um negro matou um mestre monçoeiro. O fato é que todas as fontes dizem que Manoel Portes Machado era tido como homem rude, violento e colérico que castigava tanto brancos como negros da mesma forma.
               Sobre as canoas fantasmas, diz a tradição oral que navegavam durante a noite pelo rio, com tripulantes que pareciam estar alheios a este mundo, eis que não respondiam aos chamados de pessoas que estavam em outras canoas ou às margens do rio Tietê. Há uma possibilidade dos tripulantes dessas misteriosas canoas serem, em verdade, negros quilombolas, ou seja, fugitivos, que se aproveitavam da escuridão noturna para buscar alimentos nas plantações dos sítios e fazendas na beira do rio. De fato, como ensina o professor João Campos, ainda no século XVIII, havia em Porto Feliz (antiga Araritaguaba) dois Quilombos, destruídos por volta de 1777. Ainda segundo o mesmo professor, tais quilombos tinham mais de 30 anos de existência, o que recua a data para a década de 1740!
               Maus tratos, existência de quilombos, castigos severos... são indícios de tensionamentos dentro de uma sociedade escravocrata. No entanto, tais indícios seriam frágeis se não fossem escorados em outras fontes que corroborassem a existência de tensões sociais inerentes de relação entre escravizados e senhores. Por definição, a escravidão por si só já denota uma violência desmesurada: a simples ideia de que uma pessoa pode se tornar dona e senhora de outra é, no mínimo, execrável. Entretanto, para a própria sobrevivência desse sistema, criaram-se outros mecanismos de ordem prática, ideológica e de controle. Dessa forma, o uso da violência física; as práticas discriminatórias e a difusão de ideias preconceituosas; assim como a emissão de Posturas municipais e uso da força policial para repressão de negros livres e escravizados é algo, infelizmente, esperado dentro da organização escravista.
               Desse modo, as notícias de violência que permeiam a história da escravidão negra em Porto Feliz são esperadas. Por volta de 1728 o Padre Visitador Miguel Dias Ferreira repreendeu a José Cardoso Pimentel[1] por este alugar os escravos da Capela de Nossa Senhora da Penha para trabalhar como mineiros em Cuiabá, em trabalho desgastante e que punha em risco a vida dos mesmos. Isso atesta Francisco Nardy Filho no seu livro Porto Feliz – Apontamentos Históricos (p. 20). O mesmo padre Miguel Ferreira foi Comissário do Santo Ofício (Inquisição) designado para apurar a denúncia de um morador de Araritaguaba que fora acusado de praticar, como ativo, a sodomia com escravos negros. O pesquisador Luiz Mott, que trouxe à lume os documentos desse processo da Inquisição, comemora chamando o acusado de “sodomita reinol praticante da democracia racial em pleno período escravigista”. É preciso deixar claro, entretanto, que ao escravo não cabia escolha. Desse modo, a suposta democracia racial perde o sentido semântico, pois não havia liberdade de escolha: aqueles negros eram obrigados a serem sodomizados pelo seu senhor!
               Ao adentrar o século XIX, mais precisamente na época do Natal de 1809, ocorreu uma enorme insubordinação de escravos de Porto Feliz, Sorocaba, Itu, São Carlos e Itapetininga. o Capitão-mór de Itu, Vicente Costa Taques Góes e Aranha, comunicou, em 12 de fevereiro de 1809, ao capitão general França e Horta a sedição dos escravos “fugindo a seus senhores e em quilombos e em quadrilhas, armados de flexas e outras armas, atacaram os viandantes, as fazendas, matando e praticando outros insultos dentro da Villa e até mesmo formaram uma sedição na noite de Natal” (Cruzeiro do Sul, 13 fev 1935, p. 1). Em 1821, cidadãos de Porto Feliz oficiam ao Senado, preocupados com a possível insurreição de escravos porque os princípios liberais, “estas máximas de liberdade mal entendidas, e alteradas se tem infelizmente difundido pela clase desgrasada mas formidável de nossos escravos q. ensaiam o momento de se tornarem livres” (Documento em cópia Xerox pertencente ao acervo do Arquivo Público Municipal de Porto Feliz).
               O historiador Jonas Soares de Souza atesta que, devido às péssimas condições de trabalho forçado e de violências contra a escravaria, “as revoltas tornaram-se frequentes quando a busca de maximização dos lucros em curto prazo levou o senhor de engenho a explorar exaustivamente a mão-de-obra escrava”.[2] E segue listando os alertas de revoltas em 1803, 1808, 1829... Martim Francisco de Andrada, irmão de José Bonifácio, ficou admirado ao “ouvir contar os castigos, e mau trato, que sofre por parte dos senhores” os escravos de Porto Feliz e Itu.[3]
               Por volta de 1879, o escravizado Adão, fugindo do fazendeiro Francisco Gonçalves de Oliveira, acabou por matá-lo a facadas. Em 1887, Bartholomeu, escravo de Horácio Nobre de Almeida, fugiu de Porto Feliz e se entregou à polícia de Sorocaba. Em seu depoimento, alegou que seu senhor estava de mudança para Piracicaba e que declarara aos seus cativos que aqueles que não quisessem acompanhá-lo poderiam buscar outro comprador ou apresentar o valor da indenização. Aparentemente, num segundo momento, de acordo com o relato de Bartholomeu, o seu senhor faltou ao cumprimento da promessa que fizera de dar por escrito o consentimento para aquele dos seus escravos que não quisesse acompanhá-lo, pudesse procurar comprador. Em novembro de 1888, seis meses depois da “Abolição”, a negra Benedicta era obrigada a trabalhar, praticamente sem remuneração, em uma propriedade em Porto Feliz, onde dormia num quarto trancado, acorrentada à cama!
               De onde procediam os escravos de Porto Feliz? Documentos dão conta de várias localidades. Da Guiné consta ser o velho gentio João, escravo de Joaquim Barbosa Neves, conforme a carta de liberdade, por testamente, emitida em 20 de maio de 1829, cuja cópia está no Arquivo Público de Porto Feliz. Os escravos que constavam no processo de Inquisição de 1741 eram procedentes de Angola, Congo e Benguela, segundo Luiz Mott. Um escravo, artista plástico que pintou quadros de arte sacra, chamado Alécio, tinha por apelido o nome Guiné. Local de origem? Alécio, que morava em Itu, pintou quadros representando a Última Ceia e As bodas de Caná, em 1857.
               Em que trabalhavam? Nas monções e na produção de açúcar dos engenhos, certamente. Alguns foram alugados ou vendidos para trabalharem nas minas de Cuiabá. Mas muitas pessoas obtinham boa renda alugando seus escravos, especialmente para a Câmara, com o fito de realizar obras públicas. Manoel, escravo de Maria Antonia, recebeu por serviços feitos na rua Sorocaba e na rua das Lages, em 1851. No ano de 1878, João, escravo de Anna Lisboa, prestou diversos serviços na rua Fresca, na rua Alegre, no Pátio da Penha; por carpir  ruas municipais. Cezário, escravo de Américo Boaventura, recebeu pagamento da Câmara por roçar o paredão. Todos esses serviços autorizados pela Câmara, cujos recibos emitidos à época pertencem hoje ao Acervo do Arquivo Público Municipal.
               O problema de mão-de-obra na lavoura parece estar ligado a uma mentalidade conservadora. Em 1874 o Palácio do Governo de São Paulo emitiu uma circular em que pedia informação sobre terrenos que poderiam servir para o estabelecimento de colonos, “estando demonstrada pela experiência a vantagem de collocar-se o inmigrante em terras situadas nas proximidades das principaes vias de communicação e dos grandes mercados ou centros populosos” (Documento do Arquivo Público Municipal de Porto Feliz). Parece que pouco foi feito para a fixação dos colonos na cidade, com exceção da colônia belga em 1887. Em 1888, a Câmara de Porto Feliz lamentava-se de não existir uma lei de locação de serviços que garantisse ao locador a permanência de braços. Por outro lado, admitia que os lavradores lutaram contra as aspirações dos abolicionistas e agora tinham de lutar contra especuladores dos contratos de locação de trabalho (Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Porto Feliz, datada de 04 de junho de 1888).
               A população escravizada de Porto Feliz em números: No ano de 1776 eram 807 escravos; em 1792, 856; em 1798, 1241; 1805, 1985; 1815, 2752; 1822, 3227; 1829, 4928; 1835, 4171; 1843, 4122; 1854, 1567; 1872, 1547; 1886, 594. Em 1822, a população escrava era praticamente a metade da população total. De 7575 pessoas que habitavam Porto Feliz naquela época, 3227 eram escravos.
               Por outro lado, escravizados de Porto Feliz utilizavam de estratégias de mobilidade social (casamentos, obtenção de vantagens em testamentos, negociações etc.), procurando sair da condição de escravizado. O tema foi amplamente estudado por Roberto Guedes Ferreira em seu livro Egressos do Cativeiro e em diversos artigos e apresentações em Seminários e afins.
              

               Carlos Carvalho Cavalheiro
08.01.2013.


[1] Filho de Antonio Cardoso Pimentel
[2] SOUZA, Jonas Soares de. A Cidade e o Rio – Araritaguaba, o Porto Feliz. Itu (SP): Ottoni, 2009, p. 138.
[3] Idem.