Porto Feliz escravidão
Parente por opção
Tratadas como negócio mas definidas por afeição, relações familiares iam além dos laços biológicos
“É filha de uma mulher prostituta pública exposta a toda sorte de gente, o que é público nesta vila.” A vila era Porto Feliz, interior da capitania de São Paulo, e o ano era 1850. Essas palavras fortes foram lavradas pelo negociante Manoel Fernandes Teixeira em seu testamento. Referiam-se a Ana Vicência, a mesma que, em época anterior, reconhecera como sua filha. Agora, arrependido, seu desejo era deserdar a moça.
O arrependimento tinha dois motivos. Primeiro, Ana Vicência, sabidamente filha de prostituta, logicamente podia ser filha de outro homem. Já a segunda e principal motivação era afetiva. Manoel queixava-se da “péssima conduta que tem praticado a meu respeito, tratando-me, mesmo quando esteve em minha casa, com um descarado desprezo e (...) até o presente como uma decidida inimiga”.
O ato de reconhecer e depois deslegitimar uma filha revela muito sobre os arranjos e rearranjos familiares no vasto império do Brasil. Sentir-se parente era uma opção que extrapolava os elos biológicos.
Manoel era natural de Lisboa e viveu solteiro na primeira metade do século XIX. Homem de posses, atuava trazendo mercadorias do Rio de Janeiro para revender em Porto Feliz. Os negócios iam bem até que botou o genro, José Vaz, como sócio em sua loja. O marido de Ana Vicência levou-o “ao estado desgraçado de paralisação”. E o capital que o genro empatou na sociedade, 4 contos de réis (com esta quantia era possível comprar dois bons escravos ou uma boa casa térrea), fora dado pelo próprio Manoel, por ocasião do casório. No papel de pai de Ana Vicência, Manoel também proporcionou ao casal quatro escravos, uma casa de sobrado e outra com quintal.
Tantas vantagens em favor do casamento se explicam por Ana Vicência ser publicamente reconhecida como filha de prostituta, verdadeira lástima em uma sociedade católica.Demonstram também que família, patrimônio e negócios andavam de mãos dadas. Os matrimônios contavam inclusive com agenciadores. Havia pouco espaço para o amor romântico entre os casais, o que só se efetivaria em fins do século XIX. Por outro lado, a escolha de parentes e os sentimentos familiares iam além dos laços consanguíneos.
Após sua decepção com Ana Vicência e José Vaz, Manoel Fernandes “adotou” outra família. Decidiu que, após sua morte, a escrava Francisca e sua filha, Brandina, poderiam “gozar de sua liberdade como se nascessem de ventre livre”. Libertou também Eufrosina mulata, Valêncio, Ambrosina, Marcolino e Vicente mulato. Não apenas escolheu estes cativos para libertar, dentre todos os que senhoreava, como deixou-lhes legados.
Caso o juiz de órfãos concordasse em deslegitimar Ana Vicência, os cativos alforriados seriam seus herdeiros integrais. Caso contrário, receberiamnove escravos, a casa onde Manoel morava e uma chácara, entre outros bens. E havia outras instruções. Por exemplo: a escrava Joaquina seria dada a Valêncio, “por ser sua avó”. Naquela sociedade, o neto podia ser senhor dos avós e até mesmo dos pais. Senhor, mas ao mesmo tempo família. Não eram raras essas famílias juridicamente mistas, com um pé na escravidão e outro na liberdade.
À escrava Eufrosina, Manoel legou o governo da casa, dos escravos e dos forros. E ainda ordenou que o liberto Valêncio “nunca se apartará em tempo algum da minha escrava Eufrosina e servi-la-á como um filho obrigado a servir sua mãe, pois que foi ela quem o criou desde seu nascimento, e lhe tenha amor de filho. E quando aconteça que ele se queira apartar da companhia dela, sendo mesmo de maior idade, ela o poderá ir buscar onde estiver e castigá-lo como entender, e é com esta condição que lhe dou a liberdade”. Conceder esse tipo de alforria condicional não significava restringir a liberdade, mas sim portar-se como pai mesmo no além-túmulo, governando a vida dos filhos, dos cônjuges e também dos forros transformados em filhos por afeição.
Bem provido tanto de casas quanto de escravos, muito provavelmente Manoel não coabitou com todos os seus herdeiros durante a vida, mesmo que se relacionasse sexualmente com as escravas. Para se construir laços familiares, não era necessário viver sob o mesmo teto, afinal os sentimentos parentais quebravam as frágeis paredes de pau a pique das senzalas e os sólidos muros de pedra das casas-grandes. Família não tinha nada a ver com o número de pessoas em uma casa. E, sim, com o sentir-se parte dela, o atar-se por amor, desejo ou afeto, mesmo que fosse do senhor para com sua escrava, e vice-versa. Família era, por amor paterno, reconhecer em cartório uma filha da “puta”. Era ser governado por uma ex-escrava com amor de mãe.
Após a morte do seu senhor, Eufrosina tornou-se a matriarca da família. Como acontece até os dias de hoje, aquela sociedade não parava de reinventar suas famílias. Terão eles nos legado a ideia de que qualquer maneira de amar vale a pena?
Roberto Guedes é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor deEgressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social(Mauad/FAPERJ, 2008).
Nota-Roberto Guedes tem dezenas de livros sobre a escravidão em Porto Feliz,,,procure no Google sobre ele e os livros...
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