Porto Feliz e as Monções
A viagem monçoeira de um governador e capitão-general (..de Porto Feliz...) até Cuiabá (1726)
Em julho de 1726, o governador e capitão general da capitania de São
Paulo, Rodrigo
César de Menezes, partiu do porto de Araritaguaba, seguindo o roteiro
fluvial Tietê-Cuiabá,
em direção à fronteira oeste da América portuguesa. Tinha como missão
criar a Vila Real do
Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727) e instalar o aparato administrativo e
fiscal no local, já
que as minas de ouro cuiabanas surgiam como promissoras fontes de
riquezas. Demorava-se
entre cinco e seis meses para chegar ao destino final e os guias
preferiam viajar entre os me-
ses de março e junho, época das cheias dos rios que tornavam a navegação
menos arriscada.
O trajeto fluvial das monções poderia ser feito pelos rios Tietê,
Grande, Pardo, Anhenduí,
Mboteteu, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá ou pelos rios Tietê, Grande,
Pardo, Sanguessuga,
Coxim, Taquari, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá, tendo ainda pequenas
travessias por terra,
onde as canoas eram descarregadas e as cargas levadas pelos cativos. Até
o ano de 1736, esta
foi a única forma de se chegar a Cuiabá, sendo seu percurso perigoso,
com muitas cachoeiras,
corredeiras e ameaças de ataques indígenas. As monções, em português,
significavam inicialmente ventos alternados que determinavam as épocas de
navegação no oceano Índico. Na América portuguesa, o termo passou a designar a
navegação fluvial para o oeste durante o século XVIII. As monções eram
compostas por canoas organizadas em comboios que levavam autoridades e civis e
mercadorias para serem comercializadas em Cuiabá. Trabalhando com o critério
analógico, Sérgio Buarque de Holanda considerou que a ocupação das minas do Cuiabá
pelos paulistas foi uma réplica em escala reduzida da colonização ultramarina.
No que diz respeito às monções, ele associou as viagens para essas minas
àquelas que eram realizadas pelos
portugueses para o Oriente, pois elas também demoravam aproximadamente cinco
meses, embora os fatores naturais fossem diferentes. Para o Oriente seguia-se o regime dos ventos, para o Cuiabá o regime das águas. Da
mesma maneira, como o Oriente, as Minas cuiabanas foram consideradas lugares de lendárias
riquezas.
Desse modo, entravam e saíam pessoas de Vila Real do Cuiabá e era
efetuado o comércio.
Se, por um lado, a existência de um único trajeto podia evitar
descaminhos do ouro e impedir
a entrada de forasteiros que pudessem abrir concorrência aos paulistas,
por outro, ele era
complicado por causa das dificuldades existentes no decorrer da viagem e
da falta de produ-
tos nas minas, já que muitos chegavam deteriorados ou com preços
exorbitantes.
Rodrigo César de Menezes foi o primeiro governador a se deslocar para as
minas cuiabanas
por esse roteiro fluvial feito pelas monções. Sua viagem pode ser
considerada inaugural e fundadora de ambiente urbano, já que ao percorrer os
caminhos fluviais na condição de representante oficial do rei, reconhecia e
tornava reconhecível para o Reino a sua rede de caminhos.
Ele informou ao rei que a viagem às minas cuiabanas era o maior serviço
que tinha feito
em toda a sua vida, pois inúmeros eram os riscos que se impunham na
travessia e intimi-
davam os tripulantes. Não havia viagem mais trabalhosa e “enfadonha, e
antes se pode ir
à China três vezes do que intentá-la”. Quando alguém se considerava
livre dos perigos dos
rios e dos índios, acreditando que pudesse descansar, deparava-se com
“ares tão pestíferos”,
sezões e sarnas. De malina morreu o seu mordomo em três dias, mesmo
tendo o governador,
antes de iniciar a viagem, ordenando que se desse a sua comitiva triaga
de vênia para que
ficassem livres das doenças malignas que grassavam entre os que faziam
aquela viagem.
No relato do governador, o temor não era de monstros ou de seres
fantásticos morado-
res das águas, tais como na época da conquista. Eram pavores reais,
encarnados nos assaltos
indígenas que ocorriam tanto nos rios quanto na terra. Eram cachoeiras,
pedras e corrente-
zas que formavam ondas como as do mar. Segundo Rodrigo César de Menezes,
acrescentava-se a esses incômodos a péssima alimentação, limitada a alguma caça
e frutas bravas, sendo a variedade das águas não menos prejudicial ao
organismo. Antes de seguir viagem, ele supriu as monções de mantimentos para
nove meses, mas os naufrágios e inundações fizeram com que muitos alimentos se
perdessem, tendo o governador que se valer de roças de milho e feijão, “único
manjar” que nelas se achava. Passou dias sem mais sustento, comendo apenas
milho cozido e sustentando-se, no mato, com macacos, papagaios, araras e
algumas cobras. Segundo o governador, quando “aparecia uma perna de macaco ou
uma posta de lagarto, aqui cá chamam de jacarés era o maior banquete”.
Ainda perdeu dois mil cruzados, seu mordomo e seu cozinheiro, que, segundo ele, o prejudicou muito enquanto
esteve na Vila Real do Cuiabá. Para um nobre e ilustre administrador português,
a viagem causava estranhamento e repulsa, e a adaptação
exigia abdicar-se do luxo e conforto a que estava acostumado.
Haja Apetite! Alimentos Embarcados na Monção do
Governador Rodrigo César de Meneses em 1726
A alimentação de monçoeiros - pobres ou ricos - foi assunto da postagem
anterior. Houve, no entanto, exceções à regra absolutamente notáveis. Uma delas
foi o excelentíssimo senhor governador capitão-general Dom Rodrigo César de
Meneses, obrigado, por ordens de Sua Majestade, o rei de Portugal, a deixar São
Paulo, empreendendo a duríssima viagem até Cuiabá, isso em 1726.Acontece que
esse homem não era daqueles que perderiam a pose, mesmo metido em estreita
embarcação meses a fio. Por isso, levou consigo gente que cuidasse de tornar
sua vida tão cômoda quando fosse possível e, naturalmente, farta matalotagem
para satisfazer-lhe o voraz apetite. Seu secretário, Gervásio Leite Rebelo,
teve o cuidado de tudo registrar com o máximo critério, de modo que eis a aí a
lista de tudo o que se embarcou para alimentação específica do governador,
assegurando-lhe não ser torturado, diariamente, com o mesmíssimo virado à
paulista que se preparava para os demais:
Grãos (não se especificam quais)
............................................ 4 alqueires
Aletria
............................................................................................
7 arrobas
Cuscuz
..........................................................................................
4 arrobas
Manteiga
.......................................................................................
7 arrobas
Peixe seco ...................................................................................
4 arrobas
Doces
...........................................................................................
8 arrobas
Chocolate .....................................................................................
4 arrobas
Marmelada
...................................................................................
144 caixas
Biscoitos
.......................................................................................
6 barris
Paios
.............................................................................................
2 barris
Queijos
..........................................................................................
60 unidades
Azeite de oliva .............................................................................
5 barris
E, para que o digno representante de sua majestade "matasse a
sede", embarcaram-se também:
Vinho
.............................................................................................
8 barris
Aguardente do Reino, ou seja, de uva
...................................... 8 frasqueiras
Aguardente da Terra, ou seja, de cana-de-açúcar .................. 3
barris
Para os demais integrantes da dita monção, foi embarcada uma grande
quantidade de farinha (150 alqueires de farinha de milho e 100 de farinha de
mandioca, além de 23 alqueires de farinha de trigo, o que era pouco usual), 65
alqueires de feijão e 12 porcos.
Ainda assim, o estrito secretário de Dom Rodrigo César de Meneses
registrou que o fim da viagem, concluída a 15 de novembro de 1826, se fez sob
muita falta de alimentos, a ponto de os remadores estarem bastante
enfraquecidos. Nenhuma surpresa, já que eram eles que realizavam o mais árduo
trabalho e os que, com frequência, menos cuidados recebiam.
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