Eu, Samuel da Rocha, achando-me doente, mas em meu prefeito juízo, faço meu testamento pela maneira seguinte. Declaro que sou católico (...) Declaro que sou natural desta cidade (Porto Feliz), filho de Domingos e Joana, já falecidos. Declaro que sou casado com Rosa de Arruda de cujo matrimonio não tivemos filhos algum, e não tendo por isso herdeiros necessários, instituo por minha única herdeira a dita minha mulher. Declaro que devo a minha comadre Cândida, escrava de Joaquim de Toledo, a quantia de 400 mil réis. Declaro que deixo liberto o meu escravo João com a condição dele pagar a dita minha comadre os 400 mil réis que lhe devo. Depois de efetuado o dito pagamento lhe será entregue a carta de liberdade. Declaro que deixo à irmandade de São Benedito a quantia de 16 mil réis, e igual quantia à Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte; e a mesma quantia para a Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Declaro que quero que se me diga uma capela de missas por minha alma. Declaro que deixo a minha ferramenta de carpinteiro para o meu escravo João. Rogo queiram ser meus testamenteiros em primeiro lugar a minha mulher, em segundo o senhor Evaristo Rodrigues Leite, e em terceiro o senhor José Cardoso; e por essa forma dou por concluído este meu testamento que vai escrito e a meu rogo assinado por Maximiano José da Mota por eu não saber escrever. Porto Feliz, [19/04/1860].
O escravo de Samuel é outra história
Da trajetória de Samuel, podem-se observar alguns aspectos não tão incomuns a forros. Nasceu em cativeiro e permaneceu escravo até mais ou menos seus 28 anos de idade. Participava das instâncias de socialização de libertos, como as irmandades de negros e pardos de Nossa Senhora da Boa Morte e de São Benedito. Apadrinhou nove crianças livres e nove escravas. Se o “empenho” e “o compadresco” eram, no tempo do Rei, mas também no império do Brasil, “uma mola real de todo o movimento social” (Almeida, 1985, p. 126), ser forro e senhor não significou vedar relações com escravos e outros egressos do cativeiro, nem com livres. Seria um antagonismo em equilíbrio, diria Gilberto Freyre (1987).Logo, o carpinteiro negro Samuel Rocha era chefe de domicílio em 1836 e 1843, quando ainda não tinha escravo. Reproduziu a escravidão com o próprio trabalho e nem por isto deixou de ser carpinteiro. Para seu cativo deu a ferramenta de carpintaria para se libertar. Sabia que o trabalho artesão propiciava meios de inserção social para ex-escravos, inclusive para o pagamento da liberdade. Pelo exposto, a experiência de trabalho em cativeiro trazida para a vida em liberdade contribuía para a aquisição de escravos e gozo de estima. Aliás, dos ex-escravos homens do padre André da Rocha Abreu de que se tem informação, quase todos que encabeçaram domicílios tinham um ofício, como o padrasto de Samuel, Fortunato da Rocha, pedreiro, e Francisco da Rocha, sapateiro, sendo que este último era também senhor de escravo1. Em suma, estes casos estão longe daquelas imagens nas quais um forro compra escravo e pára de trabalhar. Ser senhor não é sinônimo de ociosidade, e trabalho escravo e trabalho livre não “eram sistemas historicamente incompatíveis” (Eisenberg, 1989, 237,223).
No inventário de Samuel havia bens relativamente significativos para quem passou mais de um terço da vida na escravidão. Em 1860, valiam 2.832$000 (2 contos e 832 mil réis), incluindo João carpinteiro, no valor de 2 contos, uma morada de casas, 700$000, dois terrenos avaliados em 28$000, etc. Devia a 10 pessoas a quantia de 114$020, incluindo um escravo de Francisco de Arruda,que sequer foi nomeado, mas ainda assim demonstra certa capacidade de crédito dos escravos, tal como a comadre Cândida. As dívidas demonstram também a consideração social que o forro desfrutava, pois dívidas, além do aspecto econômico, significam acesso a crédito, co-fiança, confiança. Outrossim, o escravo João foi avaliado no inventário, sugerindo que a dívida ainda não tinha sido paga, embora sua comadre Cândida não tenha sido mencionada entre os credores.
Samuel da Rocha, trabalhador forro carpinteiro, possuía três catres, um armário, duas mesas, uma caixa grande, uma pequena, uma cadeira de palha, 10 taboas, tudo valendo 26$000. A minha ferramenta de carpinteiro destacada no testamento valia parcos 2$000, o bem de menor valor monetário do inventário, mas muito provavelmente foi o que deu a liberdade a Samuel e talvez desse a seu escravo João. Teria João carpinteiro chegado à alforria no contexto pós-1850, momento a partir do qual o fim do tráfico atlântico de cativos ocasionou a elevação do preço dos escravos? Essa é outra história.
Roberto Guedes
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Samuel da Rocha: escravo, aparentado, forro, carpinteiro e senhor (Porto Feliz, São Paulo, Século XIX)
Roberto Guedes
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