Porto Feliz história - escravidão subsídios
Os Rochas Abreu e os Josés da Rocha: alianças
Em 1794, houve o casamento dos escravos Francisco, crioulo nascido em
Porto Feliz, e Maria, crioula natural das minas de Cuiabá. Ambos filhos de pai
incógnito e de mães escravas, e todos pertencentes ao padre André da Rocha
Abreu (pároco de Porto Feliz na época). Uma das testemunhas do casamento foi Francisco Correa de Moraes Leite,
outrora capitão-mor da vila de Porto Feliz durante 23 anos, entre 1797 e
1820.19 Os elos que ligavam o capitão aos nubentes cativos vêm de sua relação
com o proprietário, o padre André, seu cunhado.
Os Rochas Abreu estavam ligados à rota das monções, via fluvial que
ligava Porto Feliz à vila de Cuiabá, em Mato Grosso. Na primeira metade do
setecentos, o pai do padre André, Domingos da Rocha Abreu, se transferiu do
Arcebispado de Braga para São Paulo, onde se casou com D. Francisca Cardoso de
Siqueira. Posteriormente, estabeleceu-se na freguesia de Araritaguaba (futura
Porto Feliz em 1798), aí falecendo em 1784. Homem de "conhecida
verdade", em 1767 era um dos cinco mais ricos da vila de Itu. De seu
casamento com dona Francisca nasceram dez filhos, dos quais interessam aqui Ana
Francisca da Rocha e o padre André da Rocha Abreu.
Ana Francisca da Rocha se casou em 1782 com Francisco Correia de Moraes
Leite, então apenas capitão de companhia. Em 1824, já como capitão-mor, de
posse de 65 escravos, fez 1.600 arrobas de açúcar, 1.000 alqueires de milho,
150 de feijão e 40 de arroz. Um dos filhos do casal foi o brigadeiro Joaquim
José de Moraes Abreu, que se tornou membro do Conselho da Província, vereador
da Câmara Municipal de São Paulo, deputado provincial e vice-presidente da
Província de São Paulo. Logo, é uma família de importância política e econômica
em São Paulo, desde o século XVIII. Ramos dos Rochas forros se aliaram a esta
família de potentados, mas uma aliança que começou quando ainda eram escravos.
Por isso, o capitão foi o padrinho de casamento de Francisco e Maria, escravos
do padre. Maria era natural de Cuiabá e era o capitão que organizava as
expedições fluviais. Quiçá o sogro e os cunhados do capitão, comerciantes que
atuavam na rota, trouxeram a cativa de Cuiabá. Por sua vez, o noivo, natural de
Porto Feliz, deve ter nascido entre os Rochas, era cria da casa. Em 988
casamentos de escravos entre os anos de 1787 e 1833, o capitão-mor só
testemunhou dois. Em suma, provavelmente os nubentes conviviam com a família
senhorial há muitos anos.
O outro filho de Domingos da Rocha Abreu que se estabeleceu em Porto
Feliz foi o padre André da Rocha Abreu. Foi vigário de Porto Feliz entre 1798 e
1820, quando faleceu. Parodiava um verso quando comia bolo: "Destes
bolinhos, Maria". Maria era também o nome de sua escrava cozinheira,
provavelmente a que teve o capitão-mor como testemunha de casamento. Como
gostava de folheado, o padre André ordenava à sua escrava cozinheira:
"Maria, faça folhados, eu gosto, é como hóstia". Bom garfo, o padre
sabia música e tocava piano. Pôs o primeiro piano na vila, instrumento
conduzido por braço escravo de Santos a São Paulo.
Em 1803, o reverendo André passou cartas de liberdade ao mencionado
casal Francisco e Maria, e também a seus filhos Jesuíno, Celestina, Lucina,
Generoso, Duarte e Benigno. Entre 1803 e 1820, o padre, em geral, libertava um
membro de cada família que vivia consigo, precisamente a mulher. Os libertos de
1803 formavam a única família que teve todos os seus componentes alforriados
desde então, o que a diferenciava de todas as demais subalternas ao reverendo.
Por que o privilégio?
Provavelmente porque eram escravos domésticos. Maria devia ser a cozinheira que fazia pastéis
com gosto de hóstia para o padre, alegrando seu estômago e seu espírito.
Francisco e Maria foram dos primeiros escravos do padre a se casar e, um filho
desse casal, Jesuíno, foi talvez o primeiro cativo nascido na casa, pois, em
1798, já tinha seis anos. Na verdade, outra família escrava, a do casal
Domingos Velho e Joana, já estava junta em 1798 e também tinha um filho de seis
anos. As diferenças sabidas entre os casais cativos são as seguintes. Francisco
e Maria tinham mais filhos. Domingos Velho era Mina e Francisco nasceu em
Araritaguaba (Porto Feliz), ou seja, o segundo devia ser criado na casa dos
Rochas. Maria era natural de Cuiabá, para onde os cunhados do padre faziam
expedições. Com 30 anos em 1798, talvez as relações de Maria com os Rochas
fossem originárias de Cuiabá. Outra diferença é que o padrinho de casamento foi
o capitão-mor.
A preferência do padre tornou os filhos de Francisco e Maria seus
herdeiros em testamento de 1820. André disse que os criou com amor, sendo correspondido
com servidão.
Voltando a 1805, o reverendo André da Rocha, branco, contava 48 anos de
idade. Tinha 17 escravos e, além de Jacinto, os demais agregados eram a família
parda alforriada. Em 1808, com 51 anos, o vigário colado, sempre branco, tinha
15 escravos. Vivia com os agregados pardos e seus escravos negros. Em 1810, o
padre André tinha 13 escravos. Os agregados permaneceram no domicílio,
acrescido de duas novas agregadas, dentre as quais Maria, de um ano de idade.
Esta Maria foi registrada como escrava no batismo, em 06 de agosto de
1809, apesar de o assento ter sido feito no livro de livres. Era "filha de
Francisco, escravo do Reverendo Vigário André da Rocha Abreu", sem
referência ao nome da mãe. O assento foi redigido pelo padre Manoel Ferraz
Sampaio, mas, no canto, à margem da folha, lê-se: a "batizada Maria é
filha de Francisco e Maria, sua mulher. Todos estão forros e libertos",
assinado pelo padre André da Rocha Abreu. Portanto, além de atestar a
maternidade, corrigiu o assento para referendar a condição de forro de
Francisco e de Maria. Como André tomou ciência do equívoco em meio a tantos
registros fica por se saber. O fato é que continuou amparando seus agregados no
jogo da troca das relações entre senhores e subalternos, já que, em uma
sociedade escravista, ser registrado como livre ou escravo num livro paroquial
é de suma importância, pois pode definir a condição jurídica das pessoas.
Todavia, 55 anos depois, em 1864, no auto de liberdade, aquele mesmo João de
Camargo do início deste artigo, casado com uma Rocha, sobrepôs ao registro de
batismo uma escritura pública de doação de escravos como prova; doação escrita
pelo próprio padre André, registrada em cartório.
De retorno ao padre André e seus subalternos, em 1813 ele estava com 57
anos de idade e 15 escravos. Os pardos forros permaneciam como dantes e só se
acrescentou que um deles, Jesuíno, era "organista". Em 1815, o padre
era também senhor de engenho e de 16 escravos. Os agregados pardos estavam
acompanhados de Francisco, o único negro entre eles, recém-alforriado. Em 1818,
André da Rocha Abreu tinha 62 anos. Seus agregados pardos forros de antes
permaneciam no domicílio. Havia apenas cinco escravos em sua casa.
Até aqui o que se observa entre os escravos e agregados, em suas
relações com André, é que estavam em uma cadeia diferenciada de privilégios e
exclusões, em uma política de domínio que distinguia os merecedores e os não
merecedores de prêmios. Toda uma família foi alforriada desde 1803 e amparada
pelo padre quando esta condição foi posta em dúvida em um batismo. Em tempo,
não se deve esquecer que, em tese pelo menos, ser forro implica em trabalhar
para si, ainda que trabalhador livre não seja sinônimo de trabalho autônomo.
Significa também uma diferenciação jurídica em uma sociedade escravista, ou
seja, alforria é mobilidade social ascendente. Os agregados do padre, ao saírem
do cativeiro, até mudavam de cor, tornaram-se pardos, deixaram de ser negros.
Isto fazia diferença, posto que ser pardo já implicava um distanciamento em
relação à escravidão. Um ideal hierárquico calcado na cor/condição social.
Os demais escravos do vigário não tiveram a mesma sorte. Alguns
continuaram em cativeiro; outros foram libertos, mas membros de suas famílias
continuaram na escravidão. Alguns foram doados à família parda alforriada. Foi
isso que, em 1864, João Leite de Camargo argumentou para manter o domínio sobre
o afilhado de Rosa, José, filho de Generosa. Mas quem era Generosa? Nada se
sabe sobre seus parentes. A única informação é que o padre André a doou à
"mulatinha" Esmelinda, em 1820. Então, a "mulatinha"
contava cerca de 23 anos de idade, e a cativa Generosa, dois anos. Esmelinda
casou-se com o réu em 1827. Quem sabe Generosa ajudou a compor seu dote? A
certeza é que para continuarem como senhores em 1864 era preciso manter José,
filho de Generosa, em cativeiro. No contexto de fechamento do acesso à
mão-de-obra via comércio de escravos, a perpetuação da condição senhorial de
uma família forra dependia da continuidade da escravidão de uma família
escrava.
Roberto Guedes -
Parentesco, escravidão e liberdade (Porto Feliz, São Paulo, século XIX)
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