terça-feira, 26 de abril de 2016



Porto Feliz história - escravidão subsídios

Os Rochas Abreu e os Josés da Rocha: alianças


Em 1794, houve o casamento dos escravos Francisco, crioulo nascido em Porto Feliz, e Maria, crioula natural das minas de Cuiabá. Ambos filhos de pai incógnito e de mães escravas, e todos pertencentes ao padre André da Rocha Abreu (pároco de Porto Feliz na época). Uma das testemunhas do casamento foi Francisco Correa de Moraes Leite, outrora capitão-mor da vila de Porto Feliz durante 23 anos, entre 1797 e 1820.19 Os elos que ligavam o capitão aos nubentes cativos vêm de sua relação com o proprietário, o padre André, seu cunhado.
Os Rochas Abreu estavam ligados à rota das monções, via fluvial que ligava Porto Feliz à vila de Cuiabá, em Mato Grosso. Na primeira metade do setecentos, o pai do padre André, Domingos da Rocha Abreu, se transferiu do Arcebispado de Braga para São Paulo, onde se casou com D. Francisca Cardoso de Siqueira. Posteriormente, estabeleceu-se na freguesia de Araritaguaba (futura Porto Feliz em 1798), aí falecendo em 1784. Homem de "conhecida verdade", em 1767 era um dos cinco mais ricos da vila de Itu. De seu casamento com dona Francisca nasceram dez filhos, dos quais interessam aqui Ana Francisca da Rocha e o padre André da Rocha Abreu.
Ana Francisca da Rocha se casou em 1782 com Francisco Correia de Moraes Leite, então apenas capitão de companhia. Em 1824, já como capitão-mor, de posse de 65 escravos, fez 1.600 arrobas de açúcar, 1.000 alqueires de milho, 150 de feijão e 40 de arroz. Um dos filhos do casal foi o brigadeiro Joaquim José de Moraes Abreu, que se tornou membro do Conselho da Província, vereador da Câmara Municipal de São Paulo, deputado provincial e vice-presidente da Província de São Paulo. Logo, é uma família de importância política e econômica em São Paulo, desde o século XVIII. Ramos dos Rochas forros se aliaram a esta família de potentados, mas uma aliança que começou quando ainda eram escravos. Por isso, o capitão foi o padrinho de casamento de Francisco e Maria, escravos do padre. Maria era natural de Cuiabá e era o capitão que organizava as expedições fluviais. Quiçá o sogro e os cunhados do capitão, comerciantes que atuavam na rota, trouxeram a cativa de Cuiabá. Por sua vez, o noivo, natural de Porto Feliz, deve ter nascido entre os Rochas, era cria da casa. Em 988 casamentos de escravos entre os anos de 1787 e 1833, o capitão-mor só testemunhou dois. Em suma, provavelmente os nubentes conviviam com a família senhorial há muitos anos.
O outro filho de Domingos da Rocha Abreu que se estabeleceu em Porto Feliz foi o padre André da Rocha Abreu. Foi vigário de Porto Feliz entre 1798 e 1820, quando faleceu. Parodiava um verso quando comia bolo: "Destes bolinhos, Maria". Maria era também o nome de sua escrava cozinheira, provavelmente a que teve o capitão-mor como testemunha de casamento. Como gostava de folheado, o padre André ordenava à sua escrava cozinheira: "Maria, faça folhados, eu gosto, é como hóstia". Bom garfo, o padre sabia música e tocava piano. Pôs o primeiro piano na vila, instrumento conduzido por braço escravo de Santos a São Paulo.
Em 1803, o reverendo André passou cartas de liberdade ao mencionado casal Francisco e Maria, e também a seus filhos Jesuíno, Celestina, Lucina, Generoso, Duarte e Benigno. Entre 1803 e 1820, o padre, em geral, libertava um membro de cada família que vivia consigo, precisamente a mulher. Os libertos de 1803 formavam a única família que teve todos os seus componentes alforriados desde então, o que a diferenciava de todas as demais subalternas ao reverendo. Por que o privilégio?
Provavelmente porque eram escravos domésticos.  Maria devia ser a cozinheira que fazia pastéis com gosto de hóstia para o padre, alegrando seu estômago e seu espírito. Francisco e Maria foram dos primeiros escravos do padre a se casar e, um filho desse casal, Jesuíno, foi talvez o primeiro cativo nascido na casa, pois, em 1798, já tinha seis anos. Na verdade, outra família escrava, a do casal Domingos Velho e Joana, já estava junta em 1798 e também tinha um filho de seis anos. As diferenças sabidas entre os casais cativos são as seguintes. Francisco e Maria tinham mais filhos. Domingos Velho era Mina e Francisco nasceu em Araritaguaba (Porto Feliz), ou seja, o segundo devia ser criado na casa dos Rochas. Maria era natural de Cuiabá, para onde os cunhados do padre faziam expedições. Com 30 anos em 1798, talvez as relações de Maria com os Rochas fossem originárias de Cuiabá. Outra diferença é que o padrinho de casamento foi o capitão-mor.
A preferência do padre tornou os filhos de Francisco e Maria seus herdeiros em testamento de 1820. André disse que os criou com amor, sendo correspondido com servidão.
Voltando a 1805, o reverendo André da Rocha, branco, contava 48 anos de idade. Tinha 17 escravos e, além de Jacinto, os demais agregados eram a família parda alforriada. Em 1808, com 51 anos, o vigário colado, sempre branco, tinha 15 escravos. Vivia com os agregados pardos e seus escravos negros. Em 1810, o padre André tinha 13 escravos. Os agregados permaneceram no domicílio, acrescido de duas novas agregadas, dentre as quais Maria, de um ano de idade.
Esta Maria foi registrada como escrava no batismo, em 06 de agosto de 1809, apesar de o assento ter sido feito no livro de livres. Era "filha de Francisco, escravo do Reverendo Vigário André da Rocha Abreu", sem referência ao nome da mãe. O assento foi redigido pelo padre Manoel Ferraz Sampaio, mas, no canto, à margem da folha, lê-se: a "batizada Maria é filha de Francisco e Maria, sua mulher. Todos estão forros e libertos", assinado pelo padre André da Rocha Abreu. Portanto, além de atestar a maternidade, corrigiu o assento para referendar a condição de forro de Francisco e de Maria. Como André tomou ciência do equívoco em meio a tantos registros fica por se saber. O fato é que continuou amparando seus agregados no jogo da troca das relações entre senhores e subalternos, já que, em uma sociedade escravista, ser registrado como livre ou escravo num livro paroquial é de suma importância, pois pode definir a condição jurídica das pessoas. Todavia, 55 anos depois, em 1864, no auto de liberdade, aquele mesmo João de Camargo do início deste artigo, casado com uma Rocha, sobrepôs ao registro de batismo uma escritura pública de doação de escravos como prova; doação escrita pelo próprio padre André, registrada em cartório.
De retorno ao padre André e seus subalternos, em 1813 ele estava com 57 anos de idade e 15 escravos. Os pardos forros permaneciam como dantes e só se acrescentou que um deles, Jesuíno, era "organista". Em 1815, o padre era também senhor de engenho e de 16 escravos. Os agregados pardos estavam acompanhados de Francisco, o único negro entre eles, recém-alforriado. Em 1818, André da Rocha Abreu tinha 62 anos. Seus agregados pardos forros de antes permaneciam no domicílio. Havia apenas cinco escravos em sua casa.
Até aqui o que se observa entre os escravos e agregados, em suas relações com André, é que estavam em uma cadeia diferenciada de privilégios e exclusões, em uma política de domínio que distinguia os merecedores e os não merecedores de prêmios. Toda uma família foi alforriada desde 1803 e amparada pelo padre quando esta condição foi posta em dúvida em um batismo. Em tempo, não se deve esquecer que, em tese pelo menos, ser forro implica em trabalhar para si, ainda que trabalhador livre não seja sinônimo de trabalho autônomo. Significa também uma diferenciação jurídica em uma sociedade escravista, ou seja, alforria é mobilidade social ascendente. Os agregados do padre, ao saírem do cativeiro, até mudavam de cor, tornaram-se pardos, deixaram de ser negros. Isto fazia diferença, posto que ser pardo já implicava um distanciamento em relação à escravidão. Um ideal hierárquico calcado na cor/condição social.
Os demais escravos do vigário não tiveram a mesma sorte. Alguns continuaram em cativeiro; outros foram libertos, mas membros de suas famílias continuaram na escravidão. Alguns foram doados à família parda alforriada. Foi isso que, em 1864, João Leite de Camargo argumentou para manter o domínio sobre o afilhado de Rosa, José, filho de Generosa. Mas quem era Generosa? Nada se sabe sobre seus parentes. A única informação é que o padre André a doou à "mulatinha" Esmelinda, em 1820. Então, a "mulatinha" contava cerca de 23 anos de idade, e a cativa Generosa, dois anos. Esmelinda casou-se com o réu em 1827. Quem sabe Generosa ajudou a compor seu dote? A certeza é que para continuarem como senhores em 1864 era preciso manter José, filho de Generosa, em cativeiro. No contexto de fechamento do acesso à mão-de-obra via comércio de escravos, a perpetuação da condição senhorial de uma família forra dependia da continuidade da escravidão de uma família escrava.

Roberto Guedes -

Parentesco, escravidão e liberdade (Porto Feliz, São Paulo, século XIX)

Nenhum comentário:

Postar um comentário