Pré-história das monções
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo, 4 janeiro de 1957
Sérgio Buarque de Holanda
À leveza e ao fácil meneio das igaras de casca não corresponderia
necessariamente, como se pode pensar, uma fragilidade excessiva. Contra essa
suspeita milita o fato de serem essas canoas preferidas às de lenho inteiriço
justamente nos lugares mais acidentados de certos rios, isto é, mais cheios de
embaraços, tropeços e perigos para a navegação. Já se notou como nas partes
encachoeiradas do Rio Madeira, por exemplo, é que elas prevalecem quase
exclusivamente, só encontrando a competição das outras, feitas de troncos
escavados a fogo, machado e enxó, onde a mareação pode fazer-se
independentemente de maiores estorvos.
Embora o “civilizado” tenha conseguido modificar de algum modo
semelhante situação, o fato é que ela ainda persiste, no essencial, até os
nossos dias. A construção pouco dispendiosa das canoas de casca admitia que
fossem elas abandonadas sem maiores prejuízos onde se mostrassem inúteis. Dos
antigos paulistas sabe-se que tinha o hábito de largar suas igaras nos maus
passos, fabricando-as de novo quando delas necessitassem. Hábito, esse, herdado,
por sua vez, dos primitivos moradores da terra, assim como o de as afundarem ou
simplesmente quebrarem.
Em seu Ensaio sobre as construções navais indígenas, observa Antonio
Alves Câmara como, entre muitas tribos indígenas, era uso mergulhar as canoas
nos lugares de remanso e, em seguida, amarrarem-nas ao fundo, de onde podiam
ser retiradas a qualquer momento.¹ O costume de ocultá-las, e mesmo
destruí-las, sempre que preciso parece ter sido muito generalizado. Curt
Nimuendajú, ² que ainda pode assinalar entre os parintintim da Amazônia,
relaciona-o à necessidade em que se viam esses índios de evitar que delas se
aproveitasse o inimigo. Às mesmas providências não deixavam de recorrer os
nossos mamelucos. Assim, em depoimento prestado em janeiro de 1685 às autoridades
castelhanas de Assunção do Paraguai, certo índio fugido aos maloqueiros de São
Paulo referia como, devendo regressar estes à sua terra como o gentio preado,
inutilizavam de antemão todas as canoas que os tinham transportado.
Em outros casos, onde devesse ser breve a varação, ou em sítios em que
escasseavam os troncos apropriados, transportavam-na por terra, valendo-se de
cordas ou correias de couro. Isso ocorria mais frequentemente, no entanto, com
as canoas de madeira. As outras, as de casca, admitiam recursos mais simples,
como o de carregá-las às costas dos índios ou emborcadas sobre as suas cabeças,
tal como sucede entre certas populações particularmente de nosso extremo norte,
observadas por Theodor Koch-Grünberg.³
Tais cuidados são explicáveis quando se considera que muitas dessas
igaras, apesar do pobre material de que são feitas, estão longe de constituir
simples recurso de emergência para índios e sertanistas. Mesmo entre gente mais
sedentária podiam elas enfrentar, de algum modo, a competição das canoas de
madeira. Assim, num inventário paulista, no ano de 1599, o de Isabel Fernandes,
mulher de Henrique da Cunha, que fora juiz ordinário da vila, figura
expressamente uma canoa “de casca” entre a fazenda que se mandou avaliar e
vender na praça4. Não apenas a vantagem do custo relativamente baixo, mas ainda
a da durabilidade, tão notável quanto sua resistência aos obstáculos que
embaraçam e atropelam a mareação, justificam o largo uso que se chegou a fazer
dessas canoas.
Aludindo a essa última vantagem, afirmou Georg Friederici 5 que elas
chegaram a alcançar, em condições normais, até seis anos de vida, enquanto as
de pau inteiriço seriam incapazes de durar mais de um verão. É certo que suas
observações nesse caso procuram abarcar todo o continente americano tomando em
bloco e grosso modo e não se detêm nas condições especificamente brasileiras.
Além disso, a madeira das canoas monóxilas a que se refere é declaradamente a
do álamo, não a de qualquer das espécies botânicas usuais entre nós para a
fatura de semelhantes embarcações.
Todavia, quando recorre a uma só variedade de madeira, não parece ter
ela em mira restringir o alcance de sua teoria da durabilidade menor das canoas
de madeira inteiriça, e sim ilustrar essa mesma teoria, socorrendo-se, para
tanto, de um exemplo mais eloquente do que característico. Cabe, em todo caso,
perguntar se esse empenho de fazer mais expressiva uma convicção pessoal não
tenderia aqui, como sucede constantemente em circunstâncias tais, a desfigurar
os fatos. Ao menos no que diz respeito às grandes canoas monóxilas de treze e
mais metros de comprido, que se usaram na era das monções, construídas
literalmente segundo as velhas técnicas indígenas, há certeza de que serviam
ordinariamente, não apenas um, mas vários verões e invernos, nas expedições
regulares entre Araritaguaba e Cuiabá. E quando principiarem a escassear nas
beiradas do Tietê e tributários os troncos corpulentos, próprios para o seu
fabrico, as canoas já usadas e muitas vezes remendadas irão formar o grosso das
frotas de comércio. Assim é que das treze que foram na Real Monção de 1818,
quatro apenas tinham sido especialmente fabricadas para essa viagem, segundo
consta de documentos que se conservam manuscritos no Arquivo do Estado de São
Paulo.
Seja como for, parece improvável que pudessem elas superar por mais de
dez ou quinze anos, se tanto, os maus-tratos a que as expunha uma longa e
penosa navegação. Consta, em outro documento manuscrito, que em 1798, de vinte
canoas de comércio aprontadas um decênio antes, quando da chegada à capitania
do governador Bernardo José de Lorena, e desde aquele tempo deixadas em ranchos
protetores junto ao embarcadouro de Porto Feliz, pouquíssimas podiam
considerar-se aptas para o serviço. O quase abandono em que se achavam, sem
abrigo seguro, sem cuidados maiores que nelas atalhassem a obra do tempo e,
sobretudo, sem uma eficaz vigilância contra a maldade dos desocupados,
numerosos na região e certamente mais daninhos do que todos os contratempos que
as poderiam esperar em viagem, bastavam para as condenar, verdadeiras canoas de
ninguém, a uma ruína rápida e sem remédio.
Mesmo assim andariam elas bem longe daquela efêmera duração atribuída
por Friederici às embarcações de madeira inteiriça. E é fácil supor que maiores
seriam suas perspectivas de conservação se a escolha das árvores próprias para
seu fabrico não tivesse a limitá-las às possibilidades da flora paulistana e,
ainda mais, à consideração da capacidade exigida para o transporte de carga
numerosa. Vinte anos de vida teriam, segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, as
de camaru ou angelim preto do Pará, que por outro lado não alcançavam as
dimensões médias das canoas das monções, feitas de ximbouva ou peroba.
Ora, se peca ou exagera a pretensão de que as embarcações de pau
inteiriço alcançam pequeníssima duração, não se poderia imaginar o dar às
igaras? Ou antes, não se fundaria essa crença num simples limite de exceção,
atingindo em condições quase ideais? Das canoas de casca de jatobá, as mais
geralmente usadas no Brasil, sabe-se, de acordo com estudos modernos, que têm
uma duração máxima de dois anos, em condições normais. Sujeitas a viagem
acidentadas e trabalhosas, entretanto, conservam-se por muito tempo.
A verdade é que sua capacidade de resistência aos obstáculos naturais,
que caracteriza esse tipo de embarcação, está longe de se relacionar de modo
exclusivo à durabilidade, que também pode ser comprometida pelo fato, entre
outros, de a cortiça de que é fabricada absorver, em geral, comparada à
madeira, uma quantidade bem maior de água, o que prejudica evidentemente sua
conservação. Além disso, a própria circunstância de serem usadas frequentemente
em lugares acidentados tende, na prática, a sujeitar as igaras a um rápido
desgaste.
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