terça-feira, 26 de abril de 2016



Pré-história das monções

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo, 4 janeiro de 1957



Sérgio Buarque de Holanda


À leveza e ao fácil meneio das igaras de casca não corresponderia necessariamente, como se pode pensar, uma fragilidade excessiva. Contra essa suspeita milita o fato de serem essas canoas preferidas às de lenho inteiriço justamente nos lugares mais acidentados de certos rios, isto é, mais cheios de embaraços, tropeços e perigos para a navegação. Já se notou como nas partes encachoeiradas do Rio Madeira, por exemplo, é que elas prevalecem quase exclusivamente, só encontrando a competição das outras, feitas de troncos escavados a fogo, machado e enxó, onde a mareação pode fazer-se independentemente de maiores estorvos.
Embora o “civilizado” tenha conseguido modificar de algum modo semelhante situação, o fato é que ela ainda persiste, no essencial, até os nossos dias. A construção pouco dispendiosa das canoas de casca admitia que fossem elas abandonadas sem maiores prejuízos onde se mostrassem inúteis. Dos antigos paulistas sabe-se que tinha o hábito de largar suas igaras nos maus passos, fabricando-as de novo quando delas necessitassem. Hábito, esse, herdado, por sua vez, dos primitivos moradores da terra, assim como o de as afundarem ou simplesmente quebrarem.
Em seu Ensaio sobre as construções navais indígenas, observa Antonio Alves Câmara como, entre muitas tribos indígenas, era uso mergulhar as canoas nos lugares de remanso e, em seguida, amarrarem-nas ao fundo, de onde podiam ser retiradas a qualquer momento.¹ O costume de ocultá-las, e mesmo destruí-las, sempre que preciso parece ter sido muito generalizado. Curt Nimuendajú, ² que ainda pode assinalar entre os parintintim da Amazônia, relaciona-o à necessidade em que se viam esses índios de evitar que delas se aproveitasse o inimigo. Às mesmas providências não deixavam de recorrer os nossos mamelucos. Assim, em depoimento prestado em janeiro de 1685 às autoridades castelhanas de Assunção do Paraguai, certo índio fugido aos maloqueiros de São Paulo referia como, devendo regressar estes à sua terra como o gentio preado, inutilizavam de antemão todas as canoas que os tinham transportado.
Em outros casos, onde devesse ser breve a varação, ou em sítios em que escasseavam os troncos apropriados, transportavam-na por terra, valendo-se de cordas ou correias de couro. Isso ocorria mais frequentemente, no entanto, com as canoas de madeira. As outras, as de casca, admitiam recursos mais simples, como o de carregá-las às costas dos índios ou emborcadas sobre as suas cabeças, tal como sucede entre certas populações particularmente de nosso extremo norte, observadas por Theodor Koch-Grünberg.³
Tais cuidados são explicáveis quando se considera que muitas dessas igaras, apesar do pobre material de que são feitas, estão longe de constituir simples recurso de emergência para índios e sertanistas. Mesmo entre gente mais sedentária podiam elas enfrentar, de algum modo, a competição das canoas de madeira. Assim, num inventário paulista, no ano de 1599, o de Isabel Fernandes, mulher de Henrique da Cunha, que fora juiz ordinário da vila, figura expressamente uma canoa “de casca” entre a fazenda que se mandou avaliar e vender na praça4. Não apenas a vantagem do custo relativamente baixo, mas ainda a da durabilidade, tão notável quanto sua resistência aos obstáculos que embaraçam e atropelam a mareação, justificam o largo uso que se chegou a fazer dessas canoas.
Aludindo a essa última vantagem, afirmou Georg Friederici 5 que elas chegaram a alcançar, em condições normais, até seis anos de vida, enquanto as de pau inteiriço seriam incapazes de durar mais de um verão. É certo que suas observações nesse caso procuram abarcar todo o continente americano tomando em bloco e grosso modo e não se detêm nas condições especificamente brasileiras. Além disso, a madeira das canoas monóxilas a que se refere é declaradamente a do álamo, não a de qualquer das espécies botânicas usuais entre nós para a fatura de semelhantes embarcações.
Todavia, quando recorre a uma só variedade de madeira, não parece ter ela em mira restringir o alcance de sua teoria da durabilidade menor das canoas de madeira inteiriça, e sim ilustrar essa mesma teoria, socorrendo-se, para tanto, de um exemplo mais eloquente do que característico. Cabe, em todo caso, perguntar se esse empenho de fazer mais expressiva uma convicção pessoal não tenderia aqui, como sucede constantemente em circunstâncias tais, a desfigurar os fatos. Ao menos no que diz respeito às grandes canoas monóxilas de treze e mais metros de comprido, que se usaram na era das monções, construídas literalmente segundo as velhas técnicas indígenas, há certeza de que serviam ordinariamente, não apenas um, mas vários verões e invernos, nas expedições regulares entre Araritaguaba e Cuiabá. E quando principiarem a escassear nas beiradas do Tietê e tributários os troncos corpulentos, próprios para o seu fabrico, as canoas já usadas e muitas vezes remendadas irão formar o grosso das frotas de comércio. Assim é que das treze que foram na Real Monção de 1818, quatro apenas tinham sido especialmente fabricadas para essa viagem, segundo consta de documentos que se conservam manuscritos no Arquivo do Estado de São Paulo.
Seja como for, parece improvável que pudessem elas superar por mais de dez ou quinze anos, se tanto, os maus-tratos a que as expunha uma longa e penosa navegação. Consta, em outro documento manuscrito, que em 1798, de vinte canoas de comércio aprontadas um decênio antes, quando da chegada à capitania do governador Bernardo José de Lorena, e desde aquele tempo deixadas em ranchos protetores junto ao embarcadouro de Porto Feliz, pouquíssimas podiam considerar-se aptas para o serviço. O quase abandono em que se achavam, sem abrigo seguro, sem cuidados maiores que nelas atalhassem a obra do tempo e, sobretudo, sem uma eficaz vigilância contra a maldade dos desocupados, numerosos na região e certamente mais daninhos do que todos os contratempos que as poderiam esperar em viagem, bastavam para as condenar, verdadeiras canoas de ninguém, a uma ruína rápida e sem remédio.
Mesmo assim andariam elas bem longe daquela efêmera duração atribuída por Friederici às embarcações de madeira inteiriça. E é fácil supor que maiores seriam suas perspectivas de conservação se a escolha das árvores próprias para seu fabrico não tivesse a limitá-las às possibilidades da flora paulistana e, ainda mais, à consideração da capacidade exigida para o transporte de carga numerosa. Vinte anos de vida teriam, segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, as de camaru ou angelim preto do Pará, que por outro lado não alcançavam as dimensões médias das canoas das monções, feitas de ximbouva ou peroba.
Ora, se peca ou exagera a pretensão de que as embarcações de pau inteiriço alcançam pequeníssima duração, não se poderia imaginar o dar às igaras? Ou antes, não se fundaria essa crença num simples limite de exceção, atingindo em condições quase ideais? Das canoas de casca de jatobá, as mais geralmente usadas no Brasil, sabe-se, de acordo com estudos modernos, que têm uma duração máxima de dois anos, em condições normais. Sujeitas a viagem acidentadas e trabalhosas, entretanto, conservam-se por muito tempo.
A verdade é que sua capacidade de resistência aos obstáculos naturais, que caracteriza esse tipo de embarcação, está longe de se relacionar de modo exclusivo à durabilidade, que também pode ser comprometida pelo fato, entre outros, de a cortiça de que é fabricada absorver, em geral, comparada à madeira, uma quantidade bem maior de água, o que prejudica evidentemente sua conservação. Além disso, a própria circunstância de serem usadas frequentemente em lugares acidentados tende, na prática, a sujeitar as igaras a um rápido desgaste.

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