A importância da Expedição Langsdorff
Trechos do artigo "Itá" – As pedras no Caminho de Langsdorff””(*)
Introdução ou porque Langsdorff conquistou o que pretendia
Durante todo o século XIX, grupos de naturalistas europeus percorreram o interior da América. Coletaram espécies, descreveram a paisagem e ajudaram a construir a memória americana. Mas qual é o papel que desempenha esta memória nos tempos atuais? O objetivo deste texto é discutir qual é o significado das viagens de um destes naturalistas. Pretendemos refletir sobre as viagens de Langsdorff pelo interior do Brasil, e analisar o tipo de memória foi e está sendo construída sobre elas. Acima de tudo, procuraremos refletir sobre a relação entre a memória que se desejava construir a partir da descrição da natureza e a memória efetivamente construída por esta expedição.
O Barão George Heinrich von Langsdorff, cônsul-geral de todas as Rússias, empreendeu uma das mais trágicas incursões pelo interior do Brasil, em inícios do século XIX. Trágica a ponto de seu líder perder a memória, seus comandados serem transformados em farrapos pelas febres tropicais, e um dos mais brilhantes membros do grupo morrer afogado. Triste fim para uma expedição que pretendia conhecer, catalogar, de certa forma dominar, a natureza americana.
Durante muito tempo os pesquisadores não tiveram acesso aos documentos produzidos pela expedição. Por mais de 100 anos este material ficou guardado, em São Petersburgo, Rússia, para onde foi enviado em 1830 gerando uma aura de mistério, adequada a produção da memória.. Foi somente no início deste século que este material foi redescoberto, e passou a ser foco não só de análise como de uma polêmica empenhada por parte dos historiadores.
Os membros do grupo que percorreu o interior brasileiro variaram no decorrer do tempo. Inicialmente J. M. Rugendas (pintor), Edouard Ménétriès (zoólogo), Ludwig Riedel (botânico), Nester Rubtsov (astrônomo), seguidos de pessoal de apoio, homens escravos ou livres, além do próprio Langsdorff, médico por formação. Mais tarde participariam também Hercules Florence e Aimé-Adrien Taunay (pintores).
Por que “Expedição Langsdorff”?
Memória lembrada e memória esquecida
Os historiadores costumam fazer referência aos naturalistas
e viajantes do século XIX em bloco. Spix e Martius, Saint-Hilaire, o Príncipe
de Wied-Neuwied. Referimo-nos as suas viagens pelos nomes dos naturalistas
participantes. Mas existe algo de fascinante em relação a como nomear a
`Expedição' Langsdorff.
Previamente ao nome de seu líder, surge a classificação
`expedição'. O que sugere uma idéia errônea: que durante 8 anos ininterruptos
os valentes expedicionários mantiveram-se lutando contra a natureza inóspita,
coletando novas espécies e transformando-se em Bandeirantes do século XIX. É
muito comum, inclusive, lermos referências as datas da `Expedição' como
iniciada em 1822 e terminada em 1929. Existem muitas formas de se construir a
memória, uma das mais perigosas ocorre quando o pesquisador apaixona-se em
demasia pelos `protagonistas'. A paixão é essencial para o historiador, mas em
excesso transforma-se em veneno e turva-lhe a visão.
O Barão, na verdade, foi o líder de diversas `expedições',
que em seu conjunto formam a Expedição Langsdorff.
Realizou inicialmente duas viagens breves para a região das
Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em 1926, após esta experiência inicial, parte
através de São Paulo até Porto Feliz e Cuiabá. Os viajantes fizeram o antigo
caminho dos bandeirantes, seguindo viagem pelo rio Tietê onde visitaram
diversas vilas e fazendas.
Durante esse período inicial, o trajeto passa por áreas com
populações que de uma forma ou de outra podiam dar suporte aos viajantes.
Durante todo o seu diário referente a esta fase, Langsdorff poderá reclamar dos
preços abusivos dos mantimentos que adquire. Ainda bem! Pois ele se ressentiria
justamente disto, quando já seguindo na última e mais desastrosa de suas
viagens ele não encontra ninguém para extorqui-lo. Quanto mais despovoada a
área onde estão, maiores serão os problemas. Quando `sozinho' frente a
natureza, será o desastre.
Neste sentido é interessante observar que as expedições
embora ofereçam um só saber como resultado fracassaram nos lugares onde a
natureza permaneceu como enigma. onde a história natural não deu conta da
natureza.
Conclusões
A Expedição Langsdorff é um momento significativo da
História Brasileira e Americana. Através dos documentos criados pela expedição,
temos a possibilidade de reconstruir uma relação típica de viajantes do XIX com
a natureza e do americano frente a esses estrangeiros cuja narrativa fascina os
leitores do final do século XX. Resta saber por que?
Por que este olhar contribui para o desenvolvimento da
ciência?
Ou por que descreve o interior do Brasil?
Ou ainda, por que a natureza vence a arrogância da ciência e
do cientista?
Talvez o significado para a memória brasileira do material
produzido pelos viajantes seja menos o que eles viram ou realizaram em nome da
ciência. Talvez a herança possa ser resgatada pelo reverso, ou seja, sobrou
muito do que imaginaram, do não viram ou não registraram em seus diários.
Talvez os carrapatos, o índio morto durante a expedição, ou os delírios
causados pela febre e pela perda da memória do chefe da expedição possam
significar mais, significar que a natureza venceu. Venceu este homem que
procurou obsessivamente, o visível ainda que morto, empalhado. Sobrou muita
tragédia. Sobrou restos de memória nos espaços interrompidos, censurados,
denegados dessa narrativa de viagem. Sobrou folhas secas, desenhos, pinturas,
catalogadas em dois grandes eixos: das semelhança e das diferenças formadores
da memória ocidental. Mas o que sobrou mesmo foi a episteme classificatória,
mapas de memórias no Ocidente, forjados em parte por um homem que perdeu a
memória.
(*) Daniel Afonso de André - Centro Virtual de Estudos
Humanísticos
Universidade de
São Paulo (2001)
Nenhum comentário:
Postar um comentário