As espantosas viagens das Monções(*)
Há nos nossos fastos nacionais uma série de fatos
constituidores de impar episódio na História Universal; os designados pelo nome
genérico de Monções. E, com efeito, as espantosas jornadas fluviais do Paredão
de Araraitaguaba a Cuyabá não encontram similares em outra região do Globo.
Mais extensas viagens fluviais se realizaram, no próprio
Brasil, embora não tão seguida e regularmente, nem organizadas sob um regime ao
mesmo tempo comercial e militar. Assim, na Amazônia, mas em águas inteiramente
livres, desembaraçadas de impecilhos à navegação, como também se dá no
Mississipi.
As monções cuiabanas, parece-nos inútil recordá-lo, tinham
que superar pavorosos obstáculos, nos rios encachoeirados, atravessar, em
percurso de milhares de quilômetros, terras inóspitas habitadas por nações
gentias belicosíssimas como os payaguás, guaycurus e cayapós, índios que com a
mais notável bravura e a mais justa das pertinácias defendiam os seus chãos.
Acresce a esta circunstância que os dois extremos do enorme itinerário eram os
únicos núcleos de civilização a pontuar a intérmina e aspérrima via
perlustrada.
Nada mais evocativo do que o modo pelo qual os primeiros
moradores de Cuyabá designaram o Tietê e S. Paulo: rio de Povoado e Povoado.
Retirar-se para Povoado; no dizer singelo dos documentos
setecentistas era expressão sinônima de partir para S. Paulo. Esquadrilhas de
canoas e canoões maiores e menores, sulcaram o Tietê e o Paraná no século XVII
e muitas delas entraram pelos leitos de rios matogrossenses em expedições de
que ficaram inapagáveis nos fastos bandeirantismo como por exemplo as de André
Fernandes, Francisco Pedroso Xavier, Gaspar de Godoy Colaço, Braz Mendes Paes e
tantos outros.
A seus êmulos sobreleva Pascoal Moreira Cabral, o grande
fronteiro do Mboteteú e descobridor do Cuyabá, em sua longa permanência, depois
de 1.680, às margens do Miranda, vedando o eventual passo dos castelhanos para
o norte.
Das viagens monçoeiras seiscentistas a bibliografia é até
agora muito escassa. Pensamos que o mais velho documento de relato da jornada
até hoje desvendado haja sido a narrativa do Capitão General do Paraguay, Dom
Luis de Céspedes Xeria (que aliás apenas navegou no Tietê e no Paraná) em
1.628. Assinalado pelo sábio Padre Pablo Pastells, como existente, no Archivo
General de Indias, em Sevilha, fizemo-lo copiar e o traduzimos, assim como, em
1.922, publicamos a reprodução do curiosíssimo mapa a ele anexo.
Com todas as grosseiras inexatidões e fantasias que o
caracterizam é, contudo, preciosíssimo. E constitue, provavelmente, a mais
velha carta até hoje conhecida de roteiro no interior profundo do Brasil.
Descoberto o ouro cuyabano, fundado e mantido – verdadeiro
prodígio de dispêndio de energia, coragem, tenacidade e espírito de sacrifício
- o arraial e a Vila Real do Senhor Bom Jesus do
Cuyabá, começa realmente a surgir a literatura monçoeira,
sob a forma das narrativas dessas espantosas viagens em que – Senhor -
apostrofava um de tais viandantes ao Rei Dom José I, os vassalos da conquista
da América, em nada ficam a dever aos da conquista do Oriente".
Destes relatos foram vários impressos como os do Conde de Azambuja,
Francisco José de Lacerda e Almeida, Diogo de Toledo Lara e Ordonhes, João
Antonio Cabra I Camelo, o patético relatório de Teotonio José Juzarte e alguns
estrangeiros de pequeno vulto como o de D. Manuel de Flores, recolhido por Juan
Francisco Aguirre.
Ao relatório de José Custodio de Sá e Faria reveste
extraordinária secura, incompreensível por parte do homem superiormente dotado
quanto este celebrado oficial general setecentista.
Deu-nos Sergio Buarque de Holanda em 1.945 o bello e
brilhante volume Monções, estendendo a sua inspeção a todo o Brasil. Pensamos
que por ordem cronológica seja, até hoje, o depoimento de Cabral Carmelo a mais
antiga das narrativas vultosas de viagens monçoeiras.
(*) Monções Cuyabanas no século XVIII – Tomo 11 - Afonso E.
de Taunay – capítulo V – pg 29, 30 e 31 – Imprensa Oficial do Estado – Edição
do Museu Paulista – 1.950
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