sexta-feira, 22 de abril de 2016


Porto Feliz: As espantosas viagens das Monções(*)



Há nos nossos fastos nacionais uma série de fatos constituidores de impar episódio na História Universal; os designados pelo nome genérico de Monções. E, com efeito, as espantosas jornadas fluviais do Paredão de Araraitaguaba a Cuyabá não encontram similares em outra região do Globo.
Mais extensas viagens fluviais se realizaram, no próprio Brasil, embora não tão seguida e regularmente, nem organizadas sob um regime ao mesmo tempo comercial e militar. Assim, na Amazônia, mas em águas inteiramente livres, desembaraçadas de impecilhos à navegação, como também se dá no Mississipi.
As monções cuiabanas, parece-nos inútil recordá-lo, tinham que superar pavorosos obstáculos, nos rios encachoeirados, atravessar, em percurso de milhares de quilômetros, terras inóspitas habitadas por nações gentias belicosíssimas como os payaguás, guaycurus e cayapós, índios que com a mais notável bravura e a mais justa das pertinácias defendiam os seus chãos. Acresce a esta circunstância que os dois extremos do enorme itinerário eram os únicos núcleos de civilização a pontuar a intérmina e aspérrima via perlustrada.
Nada mais evocativo do que o modo pelo qual os primeiros moradores de Cuyabá designaram o Tietê e S. Paulo: rio de Povoado e Povoado.
Retirar-se para Povoado; no dizer singelo dos documentos setecentistas era expressão sinônima de partir para S. Paulo. Esquadrilhas de canoas e canoões maiores e menores, sulcaram o Tietê e o Paraná no século XVII e muitas delas entraram pelos leitos de rios matogrossenses em expedições de que ficaram inapagáveis nos fastos bandeirantismo como por exemplo as de André Fernandes, Francisco Pedroso Xavier, Gaspar de Godoy Colaço, Braz Mendes Paes e tantos outros.
A seus êmulos sobreleva Pascoal Moreira Cabral, o grande fronteiro do Mboteteú e descobridor do Cuyabá, em sua longa permanência, depois de 1.680, às margens do Miranda, vedando o eventual passo dos castelhanos para o norte.
Das viagens monçoeiras seiscentistas a bibliografia é até agora muito escassa. Pensamos que o mais velho documento de relato da jornada até hoje desvendado haja sido a narrativa do Capitão General do Paraguay, Dom Luis de Céspedes Xeria (que aliás apenas navegou no Tietê e no Paraná) em 1.628. Assinalado pelo sábio Padre Pablo Pastells, como existente, no Archivo General de Indias, em Sevilha, fizemo-lo copiar e o traduzimos, assim como, em 1.922, publicamos a reprodução do curiosíssimo mapa a ele anexo.
Com todas as grosseiras inexatidões e fantasias que o caracterizam é, contudo, preciosíssimo. E constitue, provavelmente, a mais velha carta até hoje conhecida de roteiro no interior profundo do Brasil.
Descoberto o ouro cuyabano, fundado e mantido – verdadeiro prodígio de dispêndio de energia, coragem, tenacidade e espírito de sacrifício - o arraial e a Vila Real do Senhor Bom Jesus do
Cuyabá, começa realmente a surgir a literatura monçoeira, sob a forma das narrativas dessas espantosas viagens em que – Senhor - apostrofava um de tais viandantes ao Rei Dom José I, os vassalos da conquista da América, em nada ficam a dever aos da conquista do Oriente".
Destes relatos foram vários impressos como os do Conde de Azambuja, Francisco José de Lacerda e Almeida, Diogo de Toledo Lara e Ordonhes, João Antonio Cabra I Camelo, o patético relatório de Teotonio José Juzarte e alguns estrangeiros de pequeno vulto como o de D. Manuel de Flores, recolhido por Juan Francisco Aguirre.
Ao relatório de José Custodio de Sá e Faria reveste extraordinária secura, incompreensível por parte do homem superiormente dotado quanto este celebrado oficial general setecentista.
Deu-nos Sergio Buarque de Holanda em 1.945 o bello e brilhante volume Monções, estendendo a sua inspeção a todo o Brasil. Pensamos que por ordem cronológica seja, até hoje, o depoimento de Cabral Carmelo a mais antiga das narrativas vultosas de viagens monçoeiras.


(*) Monções Cuyabanas no século XVIII – Tomo 11 - Afonso E. de Taunay – capítulo V – pg 29, 30 e 31 – Imprensa Oficial do Estado – Edição do Museu Paulista – 1.950

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