sexta-feira, 6 de maio de 2016



A Escravidão negra em Porto Feliz


               A memória, como construção coletiva, permite o diálogo entre as gerações; ou, se preferir, entre passado e presente. É indiscutível o fato de que não há pessoa que viva em sociedade que não esteja em contato com outras de diferentes gerações. A partir da preservação da memória estabelece-se o diálogo que vai amalgamar os indivíduos a ponto de criar uma identidade comum, despertando assim o sentimento de pertencimento àquela comunidade.
               Em Porto Feliz, desde o ano de 1952, foi oficializada a Semana das Monções, a qual, geralmente – com algumas exceções em alguns anos – é comemorada com desfile histórico e, ainda, com encenações que remontam à época das epopeias monçoeiras.
               Duas dessas encenações teatrais despertaram a minha atenção: a de 2008, com o tema “O Milagre da Monção” e a de 2012, com o título “A Lenda”. Ambas trazem duas histórias do arcabouço lendário da cidade, reforçando assim o aspecto da preservação da memória. Porém, a memória, como bem nos ensina o historiador Jacques Le Goff é, por definição, ideológica. Desse modo, o brilho das épicas monções – tema principal das referidas encenações – ofusca outros tidos como secundários, como, por exemplo, as relações de uma sociedade escravocrata.
               Com efeito, o texto de “O Milagre da Monção” trata do episódio em que o mestre de tripulação Manoel Portes foi letalmente golpeado remeiro Apolinário. Na agonia final, Manoel Portes Machado que era “homem religioso” pede que chamem Frei Galvão para que possa confessar. Só que o futuro santo brasileiro estava distante daquele local. Mesmo assim, apareceu “milagrosamente” e deu a confissão e bênção para o moribundo. Já o texto de “A Lenda” conta sobre as famosas canoas fantasmas que, segundo contavam, assombravam o rio Tietê naquelas épocas.
               Mas por que Apolinário golpeou o mestre Manoel Portes? O próprio texto, assim como a tradição oral, explica: Manoel Portes costumava castigar severamente seus escravos e empregados. No texto em questão, o “homem religioso” oferece uma escrava sua de “estimação”, a negra Conceição, para o Capitão, enaltecendo as qualidades da moça: “boa paridêra, ancas largas...”. Apesar de não ficar claro se Apolinário era escravo ou trabalhador livre, isso pouco ou nada altera o fato de tratar desumanamente seus escravos. O historiador Taunay, em publicação nos Anais do Museu Paulista, datada de 1949, chama Apolinário de “caboclo”. No entanto, João Campos, no seu livro Maniçoba, Araritaguaba, Porto Feliz explica que o local onde ocorreu o crime ficou conhecido por Potunduva, que em tupi significaria: local onde um negro matou um mestre monçoeiro. O fato é que todas as fontes dizem que Manoel Portes Machado era tido como homem rude, violento e colérico que castigava tanto brancos como negros da mesma forma.
               Sobre as canoas fantasmas, diz a tradição oral que navegavam durante a noite pelo rio, com tripulantes que pareciam estar alheios a este mundo, eis que não respondiam aos chamados de pessoas que estavam em outras canoas ou às margens do rio Tietê. Há uma possibilidade dos tripulantes dessas misteriosas canoas serem, em verdade, negros quilombolas, ou seja, fugitivos, que se aproveitavam da escuridão noturna para buscar alimentos nas plantações dos sítios e fazendas na beira do rio. De fato, como ensina o professor João Campos, ainda no século XVIII, havia em Porto Feliz (antiga Araritaguaba) dois Quilombos, destruídos por volta de 1777. Ainda segundo o mesmo professor, tais quilombos tinham mais de 30 anos de existência, o que recua a data para a década de 1740!
               Maus tratos, existência de quilombos, castigos severos... são indícios de tensionamentos dentro de uma sociedade escravocrata. No entanto, tais indícios seriam frágeis se não fossem escorados em outras fontes que corroborassem a existência de tensões sociais inerentes de relação entre escravizados e senhores. Por definição, a escravidão por si só já denota uma violência desmesurada: a simples ideia de que uma pessoa pode se tornar dona e senhora de outra é, no mínimo, execrável. Entretanto, para a própria sobrevivência desse sistema, criaram-se outros mecanismos de ordem prática, ideológica e de controle. Dessa forma, o uso da violência física; as práticas discriminatórias e a difusão de ideias preconceituosas; assim como a emissão de Posturas municipais e uso da força policial para repressão de negros livres e escravizados é algo, infelizmente, esperado dentro da organização escravista.
               Desse modo, as notícias de violência que permeiam a história da escravidão negra em Porto Feliz são esperadas. Por volta de 1728 o Padre Visitador Miguel Dias Ferreira repreendeu a José Cardoso Pimentel[1] por este alugar os escravos da Capela de Nossa Senhora da Penha para trabalhar como mineiros em Cuiabá, em trabalho desgastante e que punha em risco a vida dos mesmos. Isso atesta Francisco Nardy Filho no seu livro Porto Feliz – Apontamentos Históricos (p. 20). O mesmo padre Miguel Ferreira foi Comissário do Santo Ofício (Inquisição) designado para apurar a denúncia de um morador de Araritaguaba que fora acusado de praticar, como ativo, a sodomia com escravos negros. O pesquisador Luiz Mott, que trouxe à lume os documentos desse processo da Inquisição, comemora chamando o acusado de “sodomita reinol praticante da democracia racial em pleno período escravigista”. É preciso deixar claro, entretanto, que ao escravo não cabia escolha. Desse modo, a suposta democracia racial perde o sentido semântico, pois não havia liberdade de escolha: aqueles negros eram obrigados a serem sodomizados pelo seu senhor!
               Ao adentrar o século XIX, mais precisamente na época do Natal de 1809, ocorreu uma enorme insubordinação de escravos de Porto Feliz, Sorocaba, Itu, São Carlos e Itapetininga. o Capitão-mór de Itu, Vicente Costa Taques Góes e Aranha, comunicou, em 12 de fevereiro de 1809, ao capitão general França e Horta a sedição dos escravos “fugindo a seus senhores e em quilombos e em quadrilhas, armados de flexas e outras armas, atacaram os viandantes, as fazendas, matando e praticando outros insultos dentro da Villa e até mesmo formaram uma sedição na noite de Natal” (Cruzeiro do Sul, 13 fev 1935, p. 1). Em 1821, cidadãos de Porto Feliz oficiam ao Senado, preocupados com a possível insurreição de escravos porque os princípios liberais, “estas máximas de liberdade mal entendidas, e alteradas se tem infelizmente difundido pela clase desgrasada mas formidável de nossos escravos q. ensaiam o momento de se tornarem livres” (Documento em cópia Xerox pertencente ao acervo do Arquivo Público Municipal de Porto Feliz).
               O historiador Jonas Soares de Souza atesta que, devido às péssimas condições de trabalho forçado e de violências contra a escravaria, “as revoltas tornaram-se frequentes quando a busca de maximização dos lucros em curto prazo levou o senhor de engenho a explorar exaustivamente a mão-de-obra escrava”.[2] E segue listando os alertas de revoltas em 1803, 1808, 1829... Martim Francisco de Andrada, irmão de José Bonifácio, ficou admirado ao “ouvir contar os castigos, e mau trato, que sofre por parte dos senhores” os escravos de Porto Feliz e Itu.[3]
               Por volta de 1879, o escravizado Adão, fugindo do fazendeiro Francisco Gonçalves de Oliveira, acabou por matá-lo a facadas. Em 1887, Bartholomeu, escravo de Horácio Nobre de Almeida, fugiu de Porto Feliz e se entregou à polícia de Sorocaba. Em seu depoimento, alegou que seu senhor estava de mudança para Piracicaba e que declarara aos seus cativos que aqueles que não quisessem acompanhá-lo poderiam buscar outro comprador ou apresentar o valor da indenização. Aparentemente, num segundo momento, de acordo com o relato de Bartholomeu, o seu senhor faltou ao cumprimento da promessa que fizera de dar por escrito o consentimento para aquele dos seus escravos que não quisesse acompanhá-lo, pudesse procurar comprador. Em novembro de 1888, seis meses depois da “Abolição”, a negra Benedicta era obrigada a trabalhar, praticamente sem remuneração, em uma propriedade em Porto Feliz, onde dormia num quarto trancado, acorrentada à cama!
               De onde procediam os escravos de Porto Feliz? Documentos dão conta de várias localidades. Da Guiné consta ser o velho gentio João, escravo de Joaquim Barbosa Neves, conforme a carta de liberdade, por testamente, emitida em 20 de maio de 1829, cuja cópia está no Arquivo Público de Porto Feliz. Os escravos que constavam no processo de Inquisição de 1741 eram procedentes de Angola, Congo e Benguela, segundo Luiz Mott. Um escravo, artista plástico que pintou quadros de arte sacra, chamado Alécio, tinha por apelido o nome Guiné. Local de origem? Alécio, que morava em Itu, pintou quadros representando a Última Ceia e As bodas de Caná, em 1857.
               Em que trabalhavam? Nas monções e na produção de açúcar dos engenhos, certamente. Alguns foram alugados ou vendidos para trabalharem nas minas de Cuiabá. Mas muitas pessoas obtinham boa renda alugando seus escravos, especialmente para a Câmara, com o fito de realizar obras públicas. Manoel, escravo de Maria Antonia, recebeu por serviços feitos na rua Sorocaba e na rua das Lages, em 1851. No ano de 1878, João, escravo de Anna Lisboa, prestou diversos serviços na rua Fresca, na rua Alegre, no Pátio da Penha; por carpir  ruas municipais. Cezário, escravo de Américo Boaventura, recebeu pagamento da Câmara por roçar o paredão. Todos esses serviços autorizados pela Câmara, cujos recibos emitidos à época pertencem hoje ao Acervo do Arquivo Público Municipal.
               O problema de mão-de-obra na lavoura parece estar ligado a uma mentalidade conservadora. Em 1874 o Palácio do Governo de São Paulo emitiu uma circular em que pedia informação sobre terrenos que poderiam servir para o estabelecimento de colonos, “estando demonstrada pela experiência a vantagem de collocar-se o inmigrante em terras situadas nas proximidades das principaes vias de communicação e dos grandes mercados ou centros populosos” (Documento do Arquivo Público Municipal de Porto Feliz). Parece que pouco foi feito para a fixação dos colonos na cidade, com exceção da colônia belga em 1887. Em 1888, a Câmara de Porto Feliz lamentava-se de não existir uma lei de locação de serviços que garantisse ao locador a permanência de braços. Por outro lado, admitia que os lavradores lutaram contra as aspirações dos abolicionistas e agora tinham de lutar contra especuladores dos contratos de locação de trabalho (Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Porto Feliz, datada de 04 de junho de 1888).
               A população escravizada de Porto Feliz em números: No ano de 1776 eram 807 escravos; em 1792, 856; em 1798, 1241; 1805, 1985; 1815, 2752; 1822, 3227; 1829, 4928; 1835, 4171; 1843, 4122; 1854, 1567; 1872, 1547; 1886, 594. Em 1822, a população escrava era praticamente a metade da população total. De 7575 pessoas que habitavam Porto Feliz naquela época, 3227 eram escravos.
               Por outro lado, escravizados de Porto Feliz utilizavam de estratégias de mobilidade social (casamentos, obtenção de vantagens em testamentos, negociações etc.), procurando sair da condição de escravizado. O tema foi amplamente estudado por Roberto Guedes Ferreira em seu livro Egressos do Cativeiro e em diversos artigos e apresentações em Seminários e afins.
              

               Carlos Carvalho Cavalheiro
08.01.2013.


[1] Filho de Antonio Cardoso Pimentel
[2] SOUZA, Jonas Soares de. A Cidade e o Rio – Araritaguaba, o Porto Feliz. Itu (SP): Ottoni, 2009, p. 138.
[3] Idem.

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