sexta-feira, 6 de maio de 2016



Música e negritude em Porto Feliz


A história da música em Porto Feliz está intimamente ligada a dos negros. Não apenas no aspecto em que se apresenta nas demais localidades, ou como diria o saudoso amigo e pesquisador Abel Cardoso Júnior, “a cultura africana é inegável na música popular brasileira”.1
Em Porto Feliz, em relação à História da música nessa cidade, a presença negra não está apenas na influência cultural, mas, sobretudo na participação dos músicos e maestros.
Uma passagem pitoresca, relatada pelo historiador Romeu Castelucci com o título “A primeira notícia sobre música em Porto Feliz” ilustra os primórdios dessa participação dos negros na história da músi- ca ao informar que em 2 de maio de 1820, conforme registrado em ata pelo cirurgião Francisco Alvares Machado de Vasconcelos, chegou à Vila de Araritaguaba o primeiro piano da localidade, sendo este “carregado por 38 negros africanos da Guiné, que vinham cantando...”.2 Curiosa a sutileza do detalhe: os negros não apenas carregaram o pri meiro piano da cidade – como foram obrigados a fazer dada a condição de escravizados – , mas realizaram a tarefa “cantando”, como é comum em muitas etnias africanas. Daí o mesmo historiador informar sobre a existência, no século XIX, de danças e músicas realizadas pelos negros porto-felicenses como o Batuque, o Jongo e a Congada.
Os porto-felicenses sempre apreciaram a música. Recorrendo ainda ao artigo de Romeu Castelucci, encontra-se que “As Bandas de Músicas funcionavam como verdadeiras escolas: as crianças frequentavam as casas dos maestros ou sedes de Bandas, para aprenderem música. O ensino de música não dependia de condição social do aprendiz, a intenção era a de formar o maior número de músicos para que as Bandas não acabassem e também para manter a rivalidade entre as corporações”.3
Ao que parece, havia uma paixão dos porto-felicenses pela música, o que motivou a criação de corporações musicais (Bandas), conjugada com o interesse dos negros pela mesma arte e, ainda, o acesso facilitado ao ensino e aprendizagem da música. Talvez seja essa a justificativa da participação em massa dos negros na História da Música em Porto Feliz. Afinal, há um número considerável de maestros e excelentes músicos ne- gros nos Anais da História. Entende-se aqui por negro todo aquele que possui afrodescendência, ou seja, aqueles que o IBGE categoriza como “pretos” e “pardos”.
Por volta de 1860, o ne- gro porto-felicense Benedito de Arruda Pais transfere-se para a cidade de Tatuí, onde alguns anos depois funda uma escola de música e forma um elevado nú- mero de músicos de qualidade. Mestre Benedito, como era conhecido, tinha “a sua escola na terceira casa, das que ficavam logo abaixo do Teatro São Martinho (hoje, Banco Itaú) na Rua José Bonifácio”.4 Esse porto- felicense “muito fez pela cultu- ra musical” de Tatuí.5
O historiador tatuiense Renato Ferreira de Camargo afirma, sobre Benedito de Arruda Pais, que este era músico muito bom que “não só executava esplendidamente as peças de que se encarregava [...]; mas também produzia composições que eram bastante apreciadas, especialmente do gênero sacro”.6 Onde estariam as partituras de suas composições? Será que estão em algum arquivo em Tatuí?
Em 1846, durante a visita do Imperador D. Pedro II à cidade – o monarca visitou vári- as localidades da região nesse ano, como Sorocaba e a Real Fábrica de Ferro de Ipanema – este foi saudado pela Banda da Guarda Nacional, que o historiador Romeu Castelucci considera como provavelmente a primeira corporação musical da cidade. Um fato curioso, narrado pelo historiador porto-felicense: “Entre as décadas de 1920 e 1930, como nos relatou o músico Alvize Mieto, contava-se que o imperador ao ser saudado pela Banda de Música da Guarda Nacional, havia se referido a Banda ‘como a Banda dos Negritos’, pois era formada em sua maioria por músicos da raça negra, e também pelos uniformes de cor negra”.7 Seja como for, tendo ou não o Imperador cometido tal descortesia, o que sobressai é a memória, ou ao menos o imaginário construído, da presença maciça de negros nas Bandas de Música de Porto Feliz. Isso pode ser visto nas fotos antigas como uma da Corporação Musical União Porto-Felicense, fundada no dia 13/03/1898.8
A Banda da Guarda Nacional foi substituída, por volta de 1869, pela Banda Euterpe. É possível que tivesse em seus quadros, como na sua antecessora, um elevado núme- ro de músicos negros. O fato é que a Banda Euterpe existiu até a década de 1960 e um de seus músicos era o negro Benedito Toledo Viegas, conhecido como Toledinho, cuja participação se deu da década de 1920 ao fecha- mento da Banda. Toledinho foi o último regente da Banda Euterpe (deusa da música) na década de 1960.
Em 1898 surge a Corporação Musical Banda União Porto-Felicense que tem entre seus fundadores o músico Francisco de Arruda Campos, o Chico da Cristina. 9 Francisco de Arruda Campos era também ator e contrarregras do Grupo Teatral “Flor de Samburá”, segundo a pesquisadora Sonia Belon. Numa foto famosa, datada de 20 de agosto de 1902, veem-se vári- os músicos negros dessa Banda, tais como Manoel José de Calasans (provavelmente era o regente, pois segura uma batu- ta), Abraão Ferraz, Paulino Ipolito de Aguiar, Izaque Sam- paio, Pedro Martins de Arruda, Lourenço de Almeida Neves, Augusto Liza de Oliveira e José Rodrigues do Nascimento, o popular Zé de Lúcia que foi tam- bém ator, contrarregras, sorve- teiro e o primeiro taxista da cidade. A Corporação Musical União Porto-Felicense continua em atividade e tem a sua sede na rua Dr. Alvim, nº 90.
No início do século XX, a Banda União tocou nos entreatos de uma peça teatral do grupo “João Caetano”, de Porto Feliz, no dia 13 de maio. Na ocasião foi encenado um drama escrito pelo porto-felicense Theophilo Motta.
“Espectaculo
Vamos dar aos nossos leitores, mais detalhada notícia sobre o espectaculo dado pelo grupo “João Caetano” na noite de 13 do corrente.
Salienta-se, principalmente, a excellente corporação musical “União Porto Felicense”, que tocou, durante os entre-actos, bellissimas peças de seu repertório, dentre as quaes, a phantasia da Opera Ernani, de J. Verdi, e a cavatina Coração de ouro, atrahindo, assim, o impertinente auditório [...]”.10
Em 11 de outubro de 1909 foi fundada a Banda Estrela São Benedito, cujo maestro era Zé Urbano, tendo durado a corporação mais de 30 anos. Não se sabe pelo menos este autor desconhece, se Zé Urbano era negro. No entanto, o nome da Banda homenageia o mais popular santo negro reverenciado no Brasil.
Em 12 de dezembro de 1932 foi fundada a Corporação Musical “Bandeirante”, em ati- vidade até hoje. O maestro dessa Banda era o músico negro Voltaire Torres, que tem, entre outras de seu vasto currículo, a composição da música do Hino da Escola “Coronel Esmédio”.11 Infelizmente, não se pôde encontrar maiores informações sobre esse importante maestro, mesmo este autor tendo recorrido a diversas fontes. A Banda Bandeirantes teve, também, em seus quadros o músico negro José de Arruda Campos, o Sansão.12
Mais ou menos nessa mesma época, ou seja, década de 1930, surgiu a Orchestra Jazz Bataclan. Era uma espécie de banda de baile e, como era o costume da época, era chamada de Jazz. Esse Jazz era composto por 10 a 12 músicos. Foi fundado pelo já citado Zé de Lúcia, que foi o seu diretor em 1932.13 Uma nota do jornal O Porto Feliz citava a Orchestra Ba-ta-clan:
“Orchestra Ba-ta-clan
Pelo jovem Eduardo Pottel foi offerecido á armoniosa e popular Orchestra Ba-ta-clan uma Surdina, para o Quidão, no Piston, fazer “o choro nas noites enluaradas”.
- O Snr. João Gastardelli, commerciante nesta praça, offereceu, a bella marcha (1 – 2
          3) que obteve o 1º prêmio.
-          O Snr. Vicente Pellicieri, a marcha “A turma la de casa”.
-          E pelo Zé de Lucia, o mentor, a alma e vida, esteio e estuque, alicerce... etc e tal, dessa apreciada orchestra, foram, offerecidos os sambas: “Cordeaes saudades” e “Eu me illudi”.”14
Zé de Lúcia nasceu em 19 de agosto de 1889 e ganhou o apelido devido ao fato de ser a sua mãe a ex-escravizada Lúcia. Daí o nome Zé de Lúcia. Seu nome completo era José Rodrigues do Nascimento e na juventude foi sacristão. Dizem que era bastante brincalhão o que lhe rendeu muitas histórias algu- mas das quais foram registradas pelo jornalista e cronista Sabino José de Melo. Diz a memória popular que certa vez, enquanto ainda era sacristão, recebeu uma quantia em dinheiro para deixar a corda do sino para fora do campanário durante a noite. Assim fez e aquele que fez a encomenda amarrou um pedaço de carne na ponta da corda, pedaço esse que foi disputado pelos cães vadios que ao puxarem a carne faziam soar o sino, acordando a população. Zé de Lúcia, após descoberta a sua participação no episódio, foi castigado com palmatoadas do vigário.
José Rodrigues do Nascimento faleceu em 17 de outubro de 1972, aos 83 anos de ida- de.
Em 1938 surge um grupo musical de baile e festas formado por Romário Antônio Bar- bosa, seu irmão Tate, Cidico, Borrachinha, Benedito Cristalino e João Xará. Desses, com certeza, eram negros pelo menos Romário, Tate e João Xará. Este último era guarda da Estrada de Ferro Sorocabana e “nas horas vagas cortava e ensebava varas de pescar”.15
Romário Barbosa participou da Banda Bandeirantes, formando novos e excelentes músicos. Por sua vida dedicada à música empresta o seu nome para a Escola Municipal de Música desde 1999. Romário Antonio Barbosa nasceu em Capivari no dia 29 de maio de 1913. Era filho de Luiz Antonio Barbosa e de Benedita Rosalina de Melo Barbosa. Teve seu interesse pela música despertado aos 20 anos de idade, tendo se firmado na carreira musical aos 40 anos. Mesmo depois de aposentado, ensinava gratuitamente música para jovens, sendo certo que chegou a formar mais de 1500 músicos em Porto Feliz.16 Dentre eles, o violonista Benedito Mariano de Campos, que iniciou suas aulas de violão aos 12 anos de idade. Formado em violão erudito pelo Conservatório de Tatuí e técnico instrumentista pelo Conservatório Santa Cecília de Campinas, foi diretor da Escola Municipal de Música “Romário Antonio Barbosa” em 2009.
Romário Barbosa tinha predileção por dobrados e marchas carnavalescas. Foi casado com Lucila Alves Barbosa. Faleceu em 18 de fevereiro de 1999, aos 85 anos de idade.
Atribui-se a ele a seguinte frase: “A música é tudo na vida da humanidade. A música faz sorrir; A música faz chorar; a música traz lembranças; a música faz tudo no coração da gen- te; a música é tudo para a gente; a música para mim é a vida inteira que Deus nos deu; Alegria para mim é estar escrevendo música”. Atualmente, a Banda União tem um integrante em comum com a Bandeirantes: Antonio Viana, o Dén-Dén, que com uma flauta de plástico participa das apresentações das corporações musicais. Só que toca de uma forma diferente. É que o Dén-Dén encosta a flauta no queixo e emite o som com a boca. Antonio Viana é negro e foi criado pela Salvatina da Tenda de Umbanda “Vovó Catarina”.
José Aparecido Ferraz, nascido a 8 de outubro de 1931, também participou de bandas de baile, sendo baterista. Ao mesmo tempo, participou de rodas de batuque e de capoeira.17 Outro músico, multi-instrumentista, foi Gumercindo Henrique Souza. Baixista, baterista e trombonista, Gumercindo participou da Banda Prateada e da Banda União. Nasceu em 22 de março de 1916 e faleceu em 20 de novembro de 1960. Era casado com Lázara Paes Henrique.18 Mais recentemente, em dezembro de 2013 faleceu o professor Marco Leite que dava aulas de teclado na Escola Coronel Eugênio (Bairro Bambu) e no Conservatório de Salto. Na escola do Bambu, o professor Marco Leite formou um Coral do qual participaram as alunas Corina, Lia e Elisa que hoje formam o internacionalmente conhecido conjunto “Choro das Três”. Segundo depoimento delas, foi o professor Marco Leite quem as  encaminhou para  a música:
“A história desta família mudou graças a um professor voluntário, o querido Marco Leite, que se dispôs a ensaiar um coral com a turma da primeira série onde a Corina (irmã mais velha) estudava. A Corina tinha 7 anos e estava sendo alfabetizada... mas eram as aulas de coral que ela esperava ansiosamente toda semana. No ano seguinte ela pediu a seus pais que queria estudar música. Começou a estudar flauta doce na escola muni- cipal de música da cidade e seu pai, Eduardo - que havia deixado o pandeiro após terminar a escola comprou um instrumento novo para tocar com a sua filha”.19
O professor Marco Leite reforça a tradição da ligação entre a população negra e o desenvolvimento da música na cidade de Porto Feliz.
É impossível registrar aqui neste artigo todos os músicos afrodescendentes de Porto Feliz, mas esta relação serve para mostrar o quão importante foi a participação dos negros nessa história. Em Porto Feliz, a história da música e dos negros é indissociável.


Carlos Carvalho Cavalheiro
16.01.2014

Notas:

1 Documentário “Cantos da Terra”, BRA, 2003. Dir. Adilene Cavalheiro e Carlos Carvalho Cavalheiro.
2 Material pertencente ao acervo do Museu Histórico e Pedagógico das Monções.
3 Idem.
4 CAMARGO, Renato Ferrei- ra de. Memórias de Tatuí. São Paulo: João Scortecci Editora, 1997, p. 38.
5 Idem.
6 Idem, p. 46.
7 A Primeira Banda de Mú sica em Porto Feliz. Material
datilografado pertencente ao acervo do Museu Histórico e Pedagógico das Monções.
8 Conforme página virtual da Corporação no Facebook. Para Romeu Castelucci, a Banda foi fundada em 29 de junho de 1898. CASTELUCCI,     Romeu.
Efemérides de Porto Feliz. Itu: Ottoni, 2000, p. 60.
9 Entrevista com Maria Apa- recida Coelho de Oliveira Casti- lho, bisneta de Chico da Cristi- na, realizada no dia 27 nov 2013.
10 O Araritaguaba, 26 maio 1907, p. 2.
11 Tribuna das Monções – Especial Centenário da EMEF. Coronel Esmédio, 26 abr 2008,
p. 2.
12 Entrevista com Maria Apa- recida Coelho de Oliveira Casti- lho, neta de Sansão, realizada no dia 27 nov 2013.
13 O Porto Feliz, 02 abr 1932,
p. 3.
14 O Porto Feliz, 12 mar 1932,
p. 2.
15 Entrevista com Rita de Cássia Camargo Pires realiza- da no dia 27 nov 2013.
16 D’AMBROSIO, Oscar (Org.). Conto, canto e encanto com a minha história... Porto Feliz – Terra das Monções. São Paulo: Noovha América, 2008, p. 70.
17 Entrevistas realizadas em 02 nov 2006 e em 07 set 2009.
18 Entrevista com Lázara Paes Henrique realizada em 17 dez 2008.
19 Disponível em: http:// ww w.chorodas3.com.br/
#!quemsomos. Acessado em 18 jan 2014.

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