As Monções
F. Nardy Filho
O dia da partida de uma monção era dia de festa em Araritaguaba. Desde o
clarear do dia era grande o movimento e a azafama no porto; as canoas e batelões,
onde tremulavam bandeiras multicores, recebiam .o carregamento que deveriam
conduzir: mantimentos para a jornada, outras gêneros e artigos que seriam
vendidos nas minas; era um contínuo vaivém de carregadores do povoado para o
horto conduzindo cargas para o embarque. Pilotos, proeiros e remadores em seus
postos, prontos para a viagem, esperam o chefe, oficiais, soldados e os mais
que seguirão na expedição.
Na pequena e pobre igreja matriz o vigário celebra a santa missa
implorando a proteção de Deus e da Senhora da Penha e Boa Viagem para os que
vão partir. Finda a missa descem todos ao porto, indo na frente o chefe da
expedição e o vigário. Chegando ao porto todos se ajoelham e, com as faces
voltadas para o rio, recitam a ladaínha de N . Senhora, finda a qual dá-se o
embarque. Feito o embarque, o vigário procede à benção da monção; os remadores,
erguendo os remos, os cruzam no ar; da terra e das canoas estrugem tiros de
arcabuzes, rufam os tambores, é o sinal da partida; seguros por mãos vigorosas
os remos ferem as águas, vozerio de gente que se despede, vozes que invocam as
bençãos do céu, e lá vão as canoas pondo-se em movimento, seguindo na frente a
canoa chefe. A alegria da partida, o desejo de irem a essas famosas minas lhes
fazem esquecer a distância a vencer, os sofrimentos e trabalhos que os esperam,
os rios que terão de transpor, a ferocidade cios índios que encontrarão pelo
caminho; nada, nada faz arrefecer o seu entusiasmo, e seguem em demanda do
sertão à procura das minas. Navegam durante o dia e ao cair da tarde fazem
terra, onde os cozinheiros preparam-lhes o jantar, que também lhes servirá de
almoço no dia seguinte.
Cerca de quinhentas e trinta léguas têm eles de percorrer rio dorso (das
águas até Cuiabá. Nas cachoeiras, as canoas descem seguras por cordas que as
desviam da impetuosidade das águas, enquanto as cargas são conduzidas pelas
margens nos ombros dos tripulantes. Nos baixios são as canoas que são
arrastadas, acontecendo, não raro, ser um ou mais dos tripulante que, de dentro
da água, puxarei as canoas arrastadas pela correnteza. Nos saltos, tais como o
Avanhandava, Itapura e outros, é feita a varação, sendo as canoas arrastadas
por terra.
Assim descem o Tietê, seguem pelo Paraná, chegam ao Pardo; ai o trabalho
é dobrado e dois meses gastam na difícil e laboriosa subida desse rio. Chegando
a Camapuã, se não havia correspondência de monções que permitisse aos viajantes
continuarem a viagem nas canoas elos que se dirigiam em sentido contrário,
cedendo-lhes em troco as suas, faziam a varação ou baldeação das canoas por
terra, o que era feito, de preferência, à noite, em grandes carros de duas ou
três rodas, puxados, aos primeiros tempos, por escravos e índios e mais tarde
por juntas de bois. Se o tempo era propicio para que aproveitassem os xarieis,
ai, não raro, os esperavam os ferozes paiaguás .
Baldeadas as canoas para o Coxim, vencidas as cachoeiras deste rio,
chegavam ao Taquari e daí por diante, a não ser o risco de algum ataque dos
índios, a viagem se tornava mais suave. Feliz a monção que em sua rodada por
essas quinhentas e trinta léguas só teve ele lutar com os obstáculos que os
rios lhes opunham e não foram assoladas pelas febres, nem atacadas pelos índios
das margens desses rios.
Juzarte, em seu “Diário de Navegação”, assim nos descreve essas viagens,
referindo-se a que ele fez a Iguatemi: “Durante a viagem se costuma cozinhar à
noite, o que se há de comer no outro dia. Navega-se comumente das oito da manhã
às cinco da tarde. Uma das maiores canoas se arma em guerra, e que serve de
Capitânia e ao mesmo tempo de Guia. Cada canoa leva uma distância de cinqüenta
braças uma da outra, procurando sempre manter a mesma linha, seguindo todas a
canoa guia”.
E ao entardecer, o Sol doira o cimo das árvores, cujas sombras,
refletindo nas águas do rio, se alongam até a margem oposta; Araritaguaba,
tranqüila, sem rumores, sem outras galas daquelas com que a pródiga natureza a
dotara, se prepara para o repouso da noite: pela sua única rua não se nota
movimento algum, faz tudo em um grande silêncio como se fosse um lugar deserto,
uma povoação abandonada.
Um tiro de arcabuz vem quebrar esse silêncio; logo outro e mais outro se
fazem ouvir, e, como por encanto, aquela povoação, que parecia deserta, se
anima, de todas as casas abrem-se as portas, seus moradores aparecerem e todos,
pressurosos, volvem suas vistas para o rio.
Lá ao longe, na curva do rio, se avista uma canoa que, a força de remos,
vem subindo o rio; logo outra, outra mais, enfim, dezenas de canoas e batelões
demandavam a povoação. É uma monção que volta do Cuiabá. Da frota continuam os
tiros que são agora respondidos por outros, com que os de terra saúdam a
expedição que chega.
Aflui o povo de Araritaguaba ao porto e em todos os semblantes se vê
estampada a ansiedade. Chega a monção ao porto, abicam as canoas à terra.
graças aos céus partem dos que chegam e por entre alegre e festiva saudação
desembarcam os viajantes. Tez tisnada pelo Sol, barba e cabelos crescidos,
vestes encardidas, são logo cercados pelos que os esperam. Todos querem saber
noticias dos seus que há muito andam pelas minas; para uns há notícias alegres
e alviçareiras, os seus estão bons, foram felizes e pretendem voltar na próxima
monção; para outros noticias tristes, dos seus de há muito não se sabe, talvez
hajam morrido ou andem por longe. Outros mais felizes, recebem em seus braços
entes queridos que há muito não viam, e esse aglomerado de povo se agita, aqui
em risos e alegria, ali em prantos e lamentos; e lá do alto da povoação o
pequeno sino da matriz, chama o povo à oração e todos, os que vieram e os que
foram esperá-los, se encaminham à igreja onde, aos pés da Virgem, uns vão
render graças pelo êxito da viagem e outros vão rezar pelos seus mortos. No dia
seguinte, Araritaguaba amanhece movimentada; logo pela manhã começa a descarga;
do porto, nas barrancas do rio, na rua, nas casas, grupos animados, uns
cantando, outros ouvindo a história desse fabuloso Cuiabá.
Araritaguaba, pobre e quieta, torna-se por alguns dias cheia de
movimento e rica, o ouro corre como dinheiro, e dos que chegam todos querem
ostentar mais riqueza.
Porém, nem todas as monções tinham esse alegre e festivo retorno;
muitas eram desbaratadas, destroçadas nas cachoeiras e então os remanescentes
dessas expedições tornavam a Araritaguaba e sua chegada ao porto causava dó e
tristeza, porque só tristeza e luto trazia às famílias dos que partiram; de
dezenas de canoas que partiram, poucas conseguiram tornar, sem mesmo atingir o
fim da viagens; outras se despedaçaram, seus tripulantes morreram afogados ou trucidados
pelos índios, ou, então, pereceram vítimas das febres e da fome. Partiram
alegres, cheios de esperanças, e tornam, bem menos da metade, em frangalhos,
doentes e famintos, sem terem tido a dita de pisarem nessas maravilhosas terras
do Cuiabá.
As mais antigas expedições que nos consta terem partido de Araritaguaba
ou porto de Pirapitingui, como também era chamado, foram: a de Clemente Alvares
e Cristóvão de Aguiar (1609) , a de Luiz de Céspedes (1628) , a de André
Fernandes (1629) , a de Pedro Fernandes (1648) , a de Francisco Xavier Pedroso
(1670) , a de André Ferraz Parreiras e Jerônimo Ferraz (1680) .
.A última monção particular de que há lembrança, segundo nos conta o
saudoso Dr. Cesário Mota Júnior (1), foi a de Fermino Ferreira, e à qual já nos
referimos numa destas nossas crônicas. As principais e mais importantes
expedições que partiram de Araritaguaba foram: a em que seguiu Rodrigo Cézar de
Menezes (1726), a que levou o ouvidor geral Dr. José Gonçalves Pereira e
formada de 100 canoas ( 1735 ) , a que levou o primeiro capitão-general de Mato
Grosso, Dom Antonio Rolim de Moura ( 1750 ). Porém, a nosso ver, as mais
importantes e numerosas expedições que partiram de Araritaguaba, foram as que
levaram por fim a fundação de Iguatemi e foram as de João Martins de Barros e
André Dias de Almeida ( 1766-1767 ).
( 1 ) Em “Porto Feliz e as Monções para Cuiabá”, publicado em quatro
partes na Gazeta de Piracicaba, de 21, 23, 28 e 30/12,/1883 e reproduzido no
Almanaque Literário de São Paulo para 1884, publicado por José Maria Lisboa,
ano VII, pp. 131-151 .
OBS- artigo publicado no Estado de São Paulo em 14/10/1945
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