sexta-feira, 3 de junho de 2016



As Monções


F. Nardy Filho

O dia da partida de uma monção era dia de festa em Araritaguaba. Desde o clarear do dia era grande o movimento e a azafama no porto; as canoas e batelões, onde tremulavam bandeiras multicores, recebiam .o carregamento que deveriam conduzir: mantimentos para a jornada, outras gêneros e artigos que seriam vendidos nas minas; era um contínuo vaivém de carregadores do povoado para o horto conduzindo cargas para o embarque. Pilotos, proeiros e remadores em seus postos, prontos para a viagem, esperam o chefe, oficiais, soldados e os mais que seguirão na expedição.
Na pequena e pobre igreja matriz o vigário celebra a santa missa implorando a proteção de Deus e da Senhora da Penha e Boa Viagem para os que vão partir. Finda a missa descem todos ao porto, indo na frente o chefe da expedição e o vigário. Chegando ao porto todos se ajoelham e, com as faces voltadas para o rio, recitam a ladaínha de N . Senhora, finda a qual dá-se o embarque. Feito o embarque, o vigário procede à benção da monção; os remadores, erguendo os remos, os cruzam no ar; da terra e das canoas estrugem tiros de arcabuzes, rufam os tambores, é o sinal da partida; seguros por mãos vigorosas os remos ferem as águas, vozerio de gente que se despede, vozes que invocam as bençãos do céu, e lá vão as canoas pondo-se em movimento, seguindo na frente a canoa chefe. A alegria da partida, o desejo de irem a essas famosas minas lhes fazem esquecer a distância a vencer, os sofrimentos e trabalhos que os esperam, os rios que terão de transpor, a ferocidade cios índios que encontrarão pelo caminho; nada, nada faz arrefecer o seu entusiasmo, e seguem em demanda do sertão à procura das minas. Navegam durante o dia e ao cair da tarde fazem terra, onde os cozinheiros preparam-lhes o jantar, que também lhes servirá de almoço no dia seguinte.
Cerca de quinhentas e trinta léguas têm eles de percorrer rio dorso (das águas até Cuiabá. Nas cachoeiras, as canoas descem seguras por cordas que as desviam da impetuosidade das águas, enquanto as cargas são conduzidas pelas margens nos ombros dos tripulantes. Nos baixios são as canoas que são arrastadas, acontecendo, não raro, ser um ou mais dos tripulante que, de dentro da água, puxarei as canoas arrastadas pela correnteza. Nos saltos, tais como o Avanhandava, Itapura e outros, é feita a varação, sendo as canoas arrastadas por terra.
Assim descem o Tietê, seguem pelo Paraná, chegam ao Pardo; ai o trabalho é dobrado e dois meses gastam na difícil e laboriosa subida desse rio. Chegando a Camapuã, se não havia correspondência de monções que permitisse aos viajantes continuarem a viagem nas canoas elos que se dirigiam em sentido contrário, cedendo-lhes em troco as suas, faziam a varação ou baldeação das canoas por terra, o que era feito, de preferência, à noite, em grandes carros de duas ou três rodas, puxados, aos primeiros tempos, por escravos e índios e mais tarde por juntas de bois. Se o tempo era propicio para que aproveitassem os xarieis, ai, não raro, os esperavam os ferozes paiaguás .
Baldeadas as canoas para o Coxim, vencidas as cachoeiras deste rio, chegavam ao Taquari e daí por diante, a não ser o risco de algum ataque dos índios, a viagem se tornava mais suave. Feliz a monção que em sua rodada por essas quinhentas e trinta léguas só teve ele lutar com os obstáculos que os rios lhes opunham e não foram assoladas pelas febres, nem atacadas pelos índios das margens desses rios.
Juzarte, em seu “Diário de Navegação”, assim nos descreve essas viagens, referindo-se a que ele fez a Iguatemi: “Durante a viagem se costuma cozinhar à noite, o que se há de comer no outro dia. Navega-se comumente das oito da manhã às cinco da tarde. Uma das maiores canoas se arma em guerra, e que serve de Capitânia e ao mesmo tempo de Guia. Cada canoa leva uma distância de cinqüenta braças uma da outra, procurando sempre manter a mesma linha, seguindo todas a canoa guia”.
E ao entardecer, o Sol doira o cimo das árvores, cujas sombras, refletindo nas águas do rio, se alongam até a margem oposta; Araritaguaba, tranqüila, sem rumores, sem outras galas daquelas com que a pródiga natureza a dotara, se prepara para o repouso da noite: pela sua única rua não se nota movimento algum, faz tudo em um grande silêncio como se fosse um lugar deserto, uma povoação abandonada.
Um tiro de arcabuz vem quebrar esse silêncio; logo outro e mais outro se fazem ouvir, e, como por encanto, aquela povoação, que parecia deserta, se anima, de todas as casas abrem-se as portas, seus moradores aparecerem e todos, pressurosos, volvem suas vistas para o rio.
Lá ao longe, na curva do rio, se avista uma canoa que, a força de remos, vem subindo o rio; logo outra, outra mais, enfim, dezenas de canoas e batelões demandavam a povoação. É uma monção que volta do Cuiabá. Da frota continuam os tiros que são agora respondidos por outros, com que os de terra saúdam a expedição que chega.
Aflui o povo de Araritaguaba ao porto e em todos os semblantes se vê estampada a ansiedade. Chega a monção ao porto, abicam as canoas à terra. graças aos céus partem dos que chegam e por entre alegre e festiva saudação desembarcam os viajantes. Tez tisnada pelo Sol, barba e cabelos crescidos, vestes encardidas, são logo cercados pelos que os esperam. Todos querem saber noticias dos seus que há muito andam pelas minas; para uns há notícias alegres e alviçareiras, os seus estão bons, foram felizes e pretendem voltar na próxima monção; para outros noticias tristes, dos seus de há muito não se sabe, talvez hajam morrido ou andem por longe. Outros mais felizes, recebem em seus braços entes queridos que há muito não viam, e esse aglomerado de povo se agita, aqui em risos e alegria, ali em prantos e lamentos; e lá do alto da povoação o pequeno sino da matriz, chama o povo à oração e todos, os que vieram e os que foram esperá-los, se encaminham à igreja onde, aos pés da Virgem, uns vão render graças pelo êxito da viagem e outros vão rezar pelos seus mortos. No dia seguinte, Araritaguaba amanhece movimentada; logo pela manhã começa a descarga; do porto, nas barrancas do rio, na rua, nas casas, grupos animados, uns cantando, outros ouvindo a história desse fabuloso Cuiabá.
Araritaguaba, pobre e quieta, torna-se por alguns dias cheia de movimento e rica, o ouro corre como dinheiro, e dos que chegam todos querem ostentar mais riqueza.
Porém, nem todas as monções tinham esse alegre e festivo retorno; muitas eram desbaratadas, destroçadas nas cachoeiras e então os remanescentes dessas expedições tornavam a Araritaguaba e sua chegada ao porto causava dó e tristeza, porque só tristeza e luto trazia às famílias dos que partiram; de dezenas de canoas que partiram, poucas conseguiram tornar, sem mesmo atingir o fim da viagens; outras se despedaçaram, seus tripulantes morreram afogados ou trucidados pelos índios, ou, então, pereceram vítimas das febres e da fome. Partiram alegres, cheios de esperanças, e tornam, bem menos da metade, em frangalhos, doentes e famintos, sem terem tido a dita de pisarem nessas maravilhosas terras do Cuiabá.
As mais antigas expedições que nos consta terem partido de Araritaguaba ou porto de Pirapitingui, como também era chamado, foram: a de Clemente Alvares e Cristóvão de Aguiar (1609) , a de Luiz de Céspedes (1628) , a de André Fernandes (1629) , a de Pedro Fernandes (1648) , a de Francisco Xavier Pedroso (1670) , a de André Ferraz Parreiras e Jerônimo Ferraz (1680) .
.A última monção particular de que há lembrança, segundo nos conta o saudoso Dr. Cesário Mota Júnior (1), foi a de Fermino Ferreira, e à qual já nos referimos numa destas nossas crônicas. As principais e mais importantes expedições que partiram de Araritaguaba foram: a em que seguiu Rodrigo Cézar de Menezes (1726), a que levou o ouvidor geral Dr. José Gonçalves Pereira e formada de 100 canoas ( 1735 ) , a que levou o primeiro capitão-general de Mato Grosso, Dom Antonio Rolim de Moura ( 1750 ). Porém, a nosso ver, as mais importantes e numerosas expedições que partiram de Araritaguaba, foram as que levaram por fim a fundação de Iguatemi e foram as de João Martins de Barros e André Dias de Almeida ( 1766-1767 ).

( 1 ) Em “Porto Feliz e as Monções para Cuiabá”, publicado em quatro partes na Gazeta de Piracicaba, de 21, 23, 28 e 30/12,/1883 e reproduzido no Almanaque Literário de São Paulo para 1884, publicado por José Maria Lisboa, ano VII, pp. 131-151 .
OBS- artigo publicado no Estado de São Paulo em 14/10/1945

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