domingo, 15 de maio de 2016



O sertão do medo

A viagem de Juzarte em 1979 começando em Porto Feliz....

Relato tenebroso sobre uma colônia em expansão

JOHN M. MONTEIRO

Em agosto de 1769, na remota praça militar de Nossa Senhora dos Prazeres do Iguatemi, o militar português Teotônio José Juzarte teve a boa fortuna de avistar um espetacular cometa, cuja "cauda muito comprida" atravessava a madrugada e iluminava o céu do sertão. O grande cometa daquele ano, "descoberto" pelo astrônomo francês Charles Messier e objeto da observação do capitão James Cook nos longínquos mares do Sul, também foi o sinal sob o qual nasceu uma das principais figuras da era das revoluções: Napoleão Bonaparte.
Mas, na fronteira tensa entre as Américas portuguesa e espanhola, esse evento astronômico foi de impacto menor. Para Juzarte, que o registrou em seu "Diário da Navegação do Rio Tietê, Rio Grande, Paraná e Rio Iguatemi", o cometa foi "digno de ponderação" e certamente serviu para distraí-lo e aos demais habitantes da praça do constante medo provocado por ameaças mais imediatas.
Leitura cativante, o "Diário da Navegação" narra as peripécias e sofrimentos dos homens, mulheres e crianças que partiram de Araritaguaba (atual Porto Feliz) no dia 13 de abril de 1769, na expedição que levava soldados, povoadores e suprimentos para a recém-fundada praça de Nossa Senhora dos Prazeres, às margens do rio Iguatemi e na boca de um vasto sertão, tão hostil quanto desconhecido. Os primeiros dois meses e dois dias, tempo gasto na viagem fluvial, ganharam um registro diário, documentando o duro cotidiano do "sertão oculto e habitado por muito gentio". O restante da obra oferece um breve resumo mensal dos fatos notáveis ocorridos na praça de Iguatemi ao longo dos quase dois anos em que Juzarte permaneceu naquele "apavorante presídio", nas palavras do historiador paulista Afonso Taunay.

Sob encomenda

Reeditada na coleção uspiana "Brasil 500 Anos", a obra de Juzarte não é um diário no sentido estrito do termo. O "Diário da Navegação" foi escrito sob encomenda, seguindo as recomendações explícitas do capitão-general de São Paulo, d. Luís Antônio de Souza Botelho e Mourão, o Morgado de Mateus. Tudo indica que Juzarte escreveu seu "Diário" depois de regressar a São Paulo, talvez a partir da memória, talvez a partir de anotações esparsas.
Os indícios aparecem no próprio manuscrito do Museu Paulista, que, aliás, não é original, pois não está escrito com a letra do autor. Nas primeira páginas, o texto anuncia a extensão total da viagem e, ademais, menciona-se o autor enquanto sargento-mor, cargo ao qual Juzarte foi nomeado apenas em 1773, ou seja, quatro anos após o início do "Diário".
Não é de estranhar esse fato, considerando-se as condições da viagem. As cachoeiras, a chuva, o bolor e os bichos mostravam-se impiedosos com o papel, sem falar dos equipamentos e das pessoas. Numa passagem curiosa do "Diário", Juzarte dá a entender que os viajantes tomavam cuidados especiais com o papel. A certa altura, num pouso à margem do rio Pardo, a expedição topou com umas "cartas de uns cuiabanos (...), as quais costumam deixar dentro em uma cava que se faz de uma grossa árvore (...), de sorte que outro viandante, que passa, as conduz".
O "Diário" vem salpicado de muitos outros detalhes fascinantes, permitindo vislumbrar aquilo que Sérgio Buarque de Holanda chamou de "civilização adventícia", cujo caráter móvel deixava rastros antes de povoados fixos. Em sua descrição da partida da expedição, Juzarte demarca claramente a ruptura entre o povoado e o sertão. Consolidada nas representações iconográficas posteriores de Adrien Taunay, Hercules Florence e Almeida Júnior, a partida da monção da vila de N.S. Mãe dos Homens de Araritaguaba constituía um evento solene.
"A este tempo todas as pessoas estão confessadas e sacramentadas, porque daqui para baixo não há mais igrejas, nem sacramentos", escreve o sargento-mor. Todos os viajantes e os moradores da vila se ajoelhavam "sobre o barranco do rio", enquanto se entoava a ladainha de Nossa Senhora. Já os "homens de mareação" ficavam nas canoas, "cada um no seu lugar, e os remos alvorados com as pás para o ar". Em seguida, o pároco benzia cada canoa, davam-se "muitas salvas de espingarda" e a primeira canoa partia, "levando a sua bandeira larga". Afastando-se a primeira canoa 150 braças rio abaixo, partia a segunda e assim por diante as demais 34 embarcações, carregadas de quase 800 pessoas, que "a pouca distância se acham em um sertão onde não há mais que a Divina Providência".

Medo e morte
Em contraste com a ordem do ritual da partida, a desordem da viagem fluvial transparece nos inúmeros desafios e tribulações que enchem as páginas do "Diário".
Assolados pela fome, acometidos pelas doenças, assediados pelos bichos e ameaçados pelo índios, os navegantes dos rios Tietê, Paraná e Iguatemi conviviam intensamente com o medo e a morte. A natureza, nesse relato, longe de exuberante e admirável, antes se mostra tenebrosa e abominável: são as cachoeiras que afogam os homens, as nuvens de insetos que deixam as vítimas "como se tivessem bexigas", os índios que meteram tantas flechas num menino que "parecia um São Sebastião". Os nomes das corredeiras e cachoeiras, frequentemente em tupi, denotam a força bruta da natureza ou encapsulam a memória de vítimas passadas: Avaremanduava é traduzido por Juzarte como "Onde foi a pique um jesuíta", Ixaxiririca é a "Água que ferve", Anhangaratá é o "Canal do Inferno", Putunduva é "Onde a vista se faz escura".
Outras guardavam simplesmente o nome daqueles que também foram a pique: Dugarcia, Matias Peres e Cachoeira do Cubas vêm com a anotação de que se "perdeu este homem nela".
O autor faz uma pequena digressão sobre a cachoeira de Avaremanduava, reveladora dos laços que os paulistas e os índios da expedição mantinham com o passado, em que a relação com o sertão mesclava história e misticismo. Segundo contaram a Juzarte, o jesuíta acidentado teria sido "um religioso de virtude chamado o p. José de Anchieta, o qual andava catequizando aos índios". Achando que o Abaré havia se afogado, despacharam um mergulhador índio para resgatar o corpo. Chegando ao fundo, achou o padre "vivo sentado numa pedra rezando no seu breviário, e por isso ficou o nome a esta cachoeira de Abaramanduaba".
Para além das cachoeiras, a morte rondava a expedição de maneira constante. No dia 15 de abril, por exemplo, segundo o sargento-mor, "amanhecemos como quem passou uma noite tão tenebrosa e perigosa, e achamos uma criança morta à qual se deu sepultura no mato, amanhecendo uns com fome e todos molhados de chuva". Mais adiante, já às margens do Iguatemi, a narrativa de Juzarte ganha dramaticidade ao relatar o terrível ciclo de doenças, fome e pragas de bichos que agravava a situação.
Em agosto de 1769, o precário acampamento foi atacado por uma sequência de seis "imundícias": primeiro "uma quantidade de ratos", depois pulgas, terceiro "uns bichos grandes felpudos, nojentos e muito moles", quarto uma "imensidade de baratas", quinto grilos que "roeram e despedaçaram com grande estrago toda a roupa de todos os povoadores" e, finalmente, nuvens de gafanhotos que "escureciam o sol", à semelhança de "coisas sobrenaturais". Nessa conjuntura, a fome chegou a um ponto crítico: "a ração não excedia a um prato de feijão para dez dias para cada pessoa, e outro de milho, e nada mais". Nessas condições, seis meses após partir de Araritaguaba, haviam morrido 37 pessoas e mais de 60 encontravam-se gravemente doentes.
Outra ameaça que rondava a expedição era o permanente espectro de um ataque indígena. Mas, se Juzarte evoca com habilidade o pavor que se tinha dos índios, a descrição dos povos nativos em si é decepcionante, muito inferior a outros relatos coevos. O "Diário" faz menção casual da presença de índios Cauã (caiová) e Cavaleiros (guaicuru) nas imediações de Iguatemi, porém quando descreve em maiores detalhes os aspectos dos índios inimigos, parece tratar-se de grupos "coroados" (kaingang, ofaié ou caiapó do sul), pois "têm na cabeça uma coroa à semelhança de Frade Bento". Ao que parece, Juzarte só conhecia os índios da expedição, em sua maioria bororos, grupo que havia se juntado aos paulistas desde a década de 1730 para combater os caiapós; muito provavelmente, era do ponto de vista desses bororos que vinha a imagem dos bárbaros inimigos. De qualquer modo, o contato com vestígios de roupas "com as roturas das flechas e também untadas de sangue" foi próximo o suficiente para o sargento-mor.

Emocionante aventura

Ao cabo dessa "viagem tão impertinente, tão perigosa e tão dilatada", o leitor se sente recompensado por ter acompanhado o sargento-mor numa emocionante aventura pela acidentada e encachoeirada história da expansão territorial. Esta nova edição, organizada pelo historiador portofelicense Jonas Soares de Souza e por Miyoko Makino, do Museu Paulista, traz ainda uma reprodução integral do manuscrito, complementado pelo antes inédito "Plano em Borrão de Todos os Rios e Todas as Cachoeiras", elaborado por Juzarte para acompanhar o seu "Diário". Documento insólito, o "Plano em Borrão" inclui mais de 50 estampas aquareladas, esmiuçando o curso dos rios entre Araritaguaba e Iguatemi.
As primeiras estampas são de grande interesse, pois identificam um número considerável de sítios espalhados ao longo do rio Tietê, demarcando a marcha do povoamento. Também cabe destacar o valor estético e iconográfico das últimas duas estampas, onde a cartografia dos rios é enquadrada por uma borda cuidadosamente estilizada e digna de um estudo à parte.
Esta nova edição do "Diário da Navegação" representa uma sensível melhora em relação às edições anteriores, inclusive a versão publicada em 1999 pela Editora da Unicamp, que, apesar de organizada pelo mesmo Jonas Soares de Souza, foi elaborada de maneira pouco cuidadosa. A transcrição foi revista, retificando os erros e a falta de consistência ortográfica que maculam as outras edições, o que torna a leitura mais fácil e agradável. Ainda assim, persistem algumas imperfeições. Os critérios adotados para a atualização da ortografia e da gramática (sobretudo na supressão e acréscimo de vírgulas) são pouco claros.
É estranha, por exemplo, a opção pela grafia "Gatemi" em vez de "Iguatemi", quando todos os outros nomes no "Diário" são atualizados e padronizados. Na página 81, a compreensão é prejudicada quando se lê "erramos só nove pessoas com três tiros", onde no manuscrito aparece "éramos só nove pessoas com três tiros" (pág. 313). A exemplo das edições anteriores, esta também ressente-se da falta de mais notas explicativas (há apenas uma no fim do "Diário"), situando personagens, lugares, eventos, povos indígenas e outros detalhes.
Finalmente, apesar do capricho na apresentação visual do texto e na reprodução de imagens, a editora cometeu dois deslizes sérios que atrapalham a apreciação da obra. Primeiro, deixou de identificar a autoria da "Apresentação" e do pequeno estudo final sobre "As Imagens de um Rio - Tietê". Mais grave, enxertou incorretamente as notas do estudo final bem no meio da transcrição do "Diário da Navegação" (pág. 31), o que deve confundir o leitor desavisado. De qualquer modo, nesses tempos em que se retoma a velha e boa tradição de transcrever e editar documentos manuscritos, a nova edição do relato de Teotônio José Juzarte é "digna de ponderação", como diria o sargento-mor.

John M. Monteiro é professor no departamento de antropologia da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Negros da Terra" (Companhia das Letras).
Diário da Navegação
Teotônio José Juzarte -
Edusp/ Imprensa Oficial do Estado

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