Reminiscências de Porto Feliz-1931
Vicente Themudo LessaPela terceira vez visitei Porto Feliz a longos intervalos (1917, 1922, 1931).
Como das outras duas vezes, um dos meus primeiros cuidados foi descer ao porto geral, cumprindo um dever cívico. Era a hora do crepúsculo, que convidava a meditar. E meditei na epopéia do século XVIII traçada pelos paulistas de antanho, quando dali se abalavam a devassar os sertões de Mato Grosso. Iam em busca de aventuras e de ouro e diamantes. Eram as monções célebres que o pintor paulista Almeida Junior imortalizou na tela. Eram também expedições comerciais, partindo as caravanas em diversos batelões que desciam pelo grande rio paulista até a sua foz. Levavam consigo os produtos do mundo civilizado que permutavam por metais preciosos.
Do Tieté deslizavam para o cauduloso Paraná e dai embicavam pelo rio Pardo até o varadouro de Camapuã, de onde faziam baldeação para o Coxim e o Taquari; deste último iam ter pelo Paraguai ao São Lourenço e por fim ao Cuiaba, até a localidade deste nome.
Uma viagem redonda, dizem as cronicas, levava até dois anos. Havia muito a enfrentar: penosas baldeações de um rio para outro, transposição de cachoeiras, febres, indios selvagens, animais bravios, dificuldades sem conta. Iam os ousados bandeirantes descobrindo novas terras e introduzindo nelas a civilização.
A abertura dos rios Paraná e Paraguai ao comércio das nações facilitou o intercâmbio entre o Rio de Janeiro e Cuiabá e pôs termo as monções de Porto Feliz a Mato Grosso. O estabelecimento da colonia militar de Itapara e a escolha do porto de Piracicaba, como ponto de embarque e fornecimento para a nova colonia, foram o último golpe dado ao comércio de Porto Feliz.
O professor Jaco Vieira de Almeida, falando a respeito das monções de Porto Feliz, assim se expressa: ''Estas viagens fluviais a Cuiabá continuaram até pelo ano de 1836, mais ou menos, em que terminaram, ou porque as febres intermitentes dizimassem as tripulações ou porque se abriram comunicações mais faceis e mais rápidas pelo rio da Prata. Estas comunicações se tornaram mais frequentadas depois que os pequetes a vapor sulcaram as águas do Parana e do Paraguai, matando definitivamente as monções históricas".
Atualmente, o comércio de Mato Grosso pelo rio da Prata entrou em franco declínio com a inauguração da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Mais facilmente serve para isso o porto de Santos. Em 1920 tive ensejo de travar conhecimento com o vasto território matogrossense e com os rios Paraná e Paraguai, penetrando até Corumbá, na fronteira boliviana. Quão diferente dos tempos dos bravos pioneiros que levaram meses e anos na fastidiosa peregrinação. Em poucos dias vinguei quase e a mesma travessia, graças ao século de progresso em que vivemos.
No tempo das monções, Porto Feliz atendia pelo seu primitivo nome de Araritaguaba, que Martias assim interpreta: "Sítio onde as araras pousam para comer". De fato, araras e outros pássaros de bico redondo vinham ali beliscar o lagedo arenoso e salitrado. João Mendes lastima a mudança do nome nos seguintes termos: "Em verdade, pouco critério mostrou, em 13 de outubro de 1.797, quem tirou ao lugar do lindo nome Araritaguaba para substitui‑lo pelo de Porto Feliz, sem embargo de ter sido nos velhos tempos, para os exploradores e negociantes, o início e o termo de grandes riscos e fadigas, nas viagens de ida e volta com destino aos sertões de Mato Grosso e Goias"
Em boa hora foi inaugurado, em 1920, no porto geral, o monumento comemorativo do arrojado feito daqueles pioneiros da civilização.
Sólida muralha guarnecida de parapeito dá início a escadaria que, do nível de um largo, desce por muitos metros até as ribas do Tietê, escada que é atenuada por muitos patamares, em lanços sucessivos, tornando mais fácil o acesso. Era então Secretário de Estado o Dr. Cândido Mota, ilustre filho de Porto Feliz, e as centenas de contos que nisso foram gastos, por certo, não tiveram mau emprego.
A poucos metros do local da partida das expedições, ergue‑se hoje vistosa coluna rósea, em cujo pedestal se lê: "Daqui partiu a monção para o interior do Brasil no seculo XVIII". Mais abaixo um verso de Bilac:
"E subjugando o olvido atraves das idades,
Violador dos sertões, plantador de cidades,
Dentro do coração da Pátria viverás".
Ao alto da coluna destaca‑se uma esfera armilar, dentro da qual arde uma lâmpada, complemento da iluminação que segue pela barranca do rio.
Deveria ser,porém, não uma fraca lâmpada qual se mostra ali, mas um foco intenso a indicar o local de tão assinaladas tradições.
O rio ali expande‑se, volvendo‑se em curvas de águas vivas. Mais elevado deveria ter sido então o seu nível naqueles dias.
Há ainda algumas testemunhas do passado. Anoso pé de guacucata, tendo a base calçada de tijolos para conservá‑lo, poderia dizer alguma coisa das últimas monções. Parte de um batelão que por muitos anos serviu de cocho numa fazenda, é, agora, exposto num galpão protegido por uma rede de arames.
Quando ali estive pela vez primeira, estava exposto aos curiosos e então medi‑lhe o diametro considerável, de um tronco só, e nele mesmo penetrei, transportando‑me em espírito às eras em que o fluvial veículo da civilização deslizava‑se movimentado pelo grande escoadouro paulista. Pena é que nenhuma placa ali afixada explique ao forasteiro o papel um dia assinalado ao ve-lo ali formidável. E o viandante que prossegue ao longe da montante do rio até o Engenho Central, caminha maravilhado acompanhando o alpestre paredão que Ihe fica a cavalheiro, em eminencia consideravel, no qual vinham as araras bicar.
A certo trecho a piedade catalica abriu na penedia uma gruta de Lourdes, onde os devotos se vem prostrar a cada instante. Em frente, qual adarve de castelo ou fortaleza, uma plataforma de cimento armado foi erguida sobre o rio, que dali pode ser devidamente apreciado. Certamente o trecho do monumento à gruta é o passeio mais pitoresco da velha Araritaguaba. Sente‑se o mortal aniquilado ante a formidavel mule que Ihe fica sobranceira. De outro lado, empolga‑o a venerada tradiçao do denedo dos aventureiros do século XVIII. Finalmente, ha a eloquência silenciosa do Tieté. Sem linguagem nem fala, suas águas ramosas vão recordando a epopéia do passado.
Para dar uma idéia do Porto Feliz antigo, do tempo dos capitães‑mores, cumpre reproduzir uma cena da partida das monções. Descreve‑a Estevam Leno Pourroul, um dos beneméritos fundadores desta casa (o autor refere‑se ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo) no seu curioso livro Hércules Florence, citando o testemunho de autoridades. Ouçamos uma delas, o Dr. Cesário Mota Junior: "Determinada a época da monção reiuna, o capitão‑mor ordenava o recrutamento dos tripulantes; organizado em quadro, tinham estes autorização para tirar das lojas o que precisassem, até uma certa quantia. Junto ao porto, chamado geral, havia um vasto rancho no qual eram guardadas as can oas e batelões, sendo este de grande capacidade; alguns comportavam quinhentas arrobas de carga. Chegado o dia. afluia ao porto enorme multidão de povo. Os camaradas se dividiam em pilotos, sub‑pilotos, proeiros, remadores ou cargueiros; destes muitos não inspiravam confiança pelo que eram conduzidos acorrentados para as canoas. O capitão‑mor e todas as pesscas gradas da freguesia ali se achavam. O sacerdote também comparecia. Os remadores levantavam os ramos em forma de cruz, o padre revestido das sagradas insígnias procedia à benção da monçao. Tiros, salvas, etrugiam os ares.
Os navegantes entoavam uma canção tristemente monótona e as canoas se afustavam, deixando muitos corações de mãe a estalar de cuidados, muitos olhos rasos de lágrimas, muitos lábios a murmurarem orações da Virgem Mãe dos Homens pelo feliz e pronto regresso dos viajantes".
Por sua vez, o exímio poeta Vicente de Carvalho celebrou a Partida da Monção, poesia de que destacamos os seguintes fragmentos:
"Ei‑las, as toscas naus de borda rastejante
Na flor das águas, naus de estreitos rios quietos,
Ei‑las, prestes a abrir para o sertão distante,
Para assombros de glória, o seu voo insetos.
Ao largo enfim Clarins e buzinas atroam.
E as canoas, na paz da manhã cor de rosa.
Pairam por um momento em pleno rio;
aproam para o sertão.
E rompe a marcha vagarosa.
Longe, na solidão do campo undoso e verde,
o rio serpenteia. Em cada contorção.
Mais se afasta.
E a fugir, pouco a pouco se perde
No majestoso, vago, infinito sertão...
O malogrado poeta Baptista Cepellos, em Os Bandeirantes, assim descreve a expedição:
"Abre‑se como um lírio, a manhã vaporosa... Aos poucos vão surgindo, em vago lineumento, As montanhas, além, num fundo cor de rosa, Que ourela a umbria azul do raro firmamento.
Ei‑los que vão partir: e chegado o momento,
E cada embarcação parece uma ave ansiosa,
Sacudindo a caricia amoravel do vento
A vela que espaneja ufana e aventurosa
Ei‑los que vão partir, os ousados paulistas
Rasgando nos sertões um sulco de bravura
E desfraldando no ar o pendão da conquistal
E serena, no céu, entre as névoas espessas,
Desce a luz da manhã, como a benção da Altura,
Nimbando‑lhe de glória as altivas cabeças"
Entre os antigos moradores de Porto Feliz conta‑se o Paulista Alvares Machado, hábil cirurgião e veemente parlamentar. Foi deputado geral em três legislaturas e presidente do Rio Grande do Sul.
Bateu‑se com denedo na campanha de maioridade. Sua filha única desposou‑se com o viajante e cientista Hércules Florence, que deixou grande descendencia.
Não é sem interesse mencionar a entrada do primeiro piano na vila que era naquele tempo, acontecendo o evento registrado xistosamente por Alvares Machado e tal documento é relatado pelo historiador pernambacano Dr. Pereira da Costa em sua Encyclapediana Brasileira. Por ser original, reproduzirei essa página: "Ainda pelos anos de 1820 a condução de um piano para qualquer cidade do interior não era uma questão de nonada, tal a dificuldade dos meios de transporte. Por esse tempo, a vila de Porto Feliz, em São Paulo, foi dotada com um desses instrumentos, senão o primeiro que ali chegava, ao menos um dos poucos que passava a possuir. O dia da chegada do piano a Porto Feliz, ou por outra, o da sua entrada solene, foi um dia de verdadeira festa popular. Para dar uma idéia ligeira desse fato, basta a transcrição do seguinte e curioso assento, escrito pelo próprio punho do notável e espirituoso cirurgião Francisco Alvares Machado de Vasconcelos, nome assaz e respeitado: "No dia 2 de maio /1820), terça‑feira, pelas onze horas chegou a esta vila o forte piano. Já pela manhã o povo concorria em reboliço, e, trans malhado pelas ruas em que devia chegar, já se aparavam as paciências quando ali chegou um silaia que anunciava a chegada. Deram‑se as ordens, todos guardaram seus lugares, todos ficaram atentos. Apareceu o primeiro objeto. Era uma besta russa que vinha carregada com viveres e couro para abarracar o piano no caso de chuva; tudo era muito volumoso e pesado.
"Avistou‑se o desejudo andor. Vinha carregado por trinta e oito africanos de Guiné, que vinham cantando, com duas bandeiras ornadas de flores; repicaram os sinos e descarregaram‑se as ronqueiras que foram respondidas pelo TICO e dois bombeiros que marchavam vagarosamente na retaguarda. Desceram o piano e por um instinto maquinal disseram os cargueiros a uma voz: "Chegou o piano" e o povo entusiasmado de alegria, repetiu: ''Chegou o piano, Chegou o piano".
"Epoca memorável e que é digna de aniversário e por isso formamos este assento para a memória dos vindouros nesta vila de nossa Senhora Mãe dos Homens de Porto Feliz. E por ser verdade assinamos nós três intendentes das novidades interessantes. Teixeira ‑ Sousa—Vasconcelos".
Já Iá se vão 111 anos, por coincidencia completados no dia em que terminei estas linhas.
(*) Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol XXX, 1931/1932, Gráfica Paulista 1935 ‑ pp. 77‑82.
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